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2 DOMINAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

3.2 Conhecimento e sociologia

O tema do conhecimento - em sua relação com a natureza da vida social e com as instituições de uma sociedade - não é exatamente uma novidade no pensamento sociológico – sendo inclusive matéria de uma especialidade própria, a sociologia do conhecimento que estuda as bases sociais das formas de conhecimento, dos sistemas de ideias, da prática e produção científica (MATTEDI, 2004, p. 45).

Para além do aspecto mais especializado da sociologia do conhecimento, este tem sido abordado e concebido de diferentes formas na sociologia a depender das tradições

teóricas e escolas sociológicas. Por exemplo, nas sociologias de tradição fenomenológica, interacionista e etnometodológica enfatiza-se o conhecimento como um elemento central para a reflexividade dos atores, a continuidade das interações sociais e o compartilhamento intersubjetivo dos sentidos das ações32. Outras tradições de sociologia, mais próximas à filosofia social e política, introduzem o problema do conhecimento nos marcos de uma teoria crítica da sociedade. Desse modo, importa discernir os atributos, as orientações práticas e supostos sobre a teoria e a pesquisa que revelem o caráter crítico-emancipatório do conhecimento ou o seu papel reificador-instrumentalizador em relação à dominação social (HORKHEIMER, 1980).

Próximos e mesmo ligados a esta tradição da teoria crítica frankfurtiana, outros sociólogos, como Pierre Bourdieu e Jürgen Habermas enfatizam o enraizamento do conhecimento numa constelação de interesses que transcendem o meramente cognitivo e expressam bem mais do que a busca desinteressada do conhecer. Interesses que revelam, respectivamente, a luta por prestígio, reconhecimento e celebridade, e, no segundo, a própria concepção de ciência em jogo33 (BOURDIEU, 2003; HABERMAS, 1987).

Encontramos ainda na sociologia, autores que destacam o caráter relacional do conhecimento como instrumento de força e poder nas organizações e instituições e como recurso escasso influente na distribuição de poder, prestígio e status em uma sociedade (WEBER, 1982; MILLS, 1981).

Com a perspicácia habitual, Bourdieu percebe como o conhecimento constitui a base ideológica e arbitrária da dominação no capitalismo tardio. É em referência ao saber e ao conhecimento (capital cultural) que os aspectos simbólicos de legitimação, classificação e mascaramento das desigualdades socioeconômicas e de estima social e dos privilégios

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Concebido como repertórios de sentidos e significados contextuais e intersubjetivamente compartilhados pelos atores, como “estoques de conhecimento” tipificados por instituições e indexados nas próprias situações sociais, o conhecimento é definido e abordado, nessas perspectivas sociológicas, pelo seu duplo papel nas interações: 1) monitoramento reflexivo e coordenação das expectativas e dos sentidos das situações sociais e das próprias ações dos atores ao permitir a “antecipação” das intenções, das motivações, das sequências da ação; 2) o conhecimento é condição pela qual os próprios atores sustentam e compartilham uma compreensão intersubjetiva sobre as circunstâncias em que estão enredados na vida social. Para maiores detalhes sobre essas escolas sociológicas e sua abordagem sobre o conhecimento, ver os artigos “Interacionismo simbólico” e “Etnometodologia” da coletânea Teoria Social Hoje. Anthony Giddens& Jonathan Turner (Org.). São Paulo. Unesp, 1999.

33 Habermas distingue três tipos de “interesse do conhecimento”: o interesse técnico, o interesse prático e o

interesse emancipatório. Cada tipo ou orientação de interesse corresponde a enfoques científicos particulares, respectivamente, elenca-os Habermas: empírico-analítico, histórico-hermenêutico e enfoque crítico. No primeiro enfoque, importa o controle técnico do mundo a partir da identificação de leis universais; no segundo, a compreensão interpretativa dos sentidos da realidade em vista da intersubjetividade que a constitui, e, por último, a ciência crítica é aquela que revela as formas de dominação e exploração, fazendo da reflexão sistemática um movimento responsável e autônomo de emancipação (HABERMAS, 1987, p. 217).

sociais ganham sentido sociológico e explicativo na modernidade tardia, segundo o sociólogo.

Para Bourdieu, saber e conhecimento constituem ideologias de justificação moral e sistemas de classificação social e lógica do mundo e da realidade, abraçando, assim, o melhor da sociologia das religiões de Weber e Durkheim. Esses elementos simbólicos, ideológicos e lógicos do saber são normativos, não apenas em seus efeitos, como sugere Foucault, mas também em sua gênese, funcionamento e apropriação social. Eles não derivam da natureza do próprio saber e do conhecimento nem unicamente de seu lugar estrutural nas sociedades modernas, mas são o produto de lutas e conflitos sociais em torno da construção e imposição de sentidos legítimos sobre o mundo social, uma vez que, saber e conhecimento, e as instituições em que estes estão incorporados, constituem, nas sociedades modernas, verdadeiros sistemas de categorias de percepção e esquemas de pensamento e apreciação por meio dos quais se consagra e se sanciona realidades, hierarquias e diferenças (BOURDIEU,2007, p. 206).

Outro importante sociólogo, Norbert Elias, concebeu o conhecimento nos marcos de uma concepção teórica que enfatiza seus atributos simbólicos e o pano de fundo normativo em que se inscreve. Para Elias, o conhecimento diz respeito aos significados sociais dos símbolos e sistemas de significação construídos pelos homens, os quais são dotados da capacidade de funcionar como meios de orientação, comunicação e regulação. Estes últimos estão, por seu turno, profundamente interligados às relações políticas e sociais, instituições, aos largos processos históricos de desenvolvimento civilizatório, aos equilíbrios de poder entre os estratos sociais e ao tipo de figuração de uma sociedade (ELIAS, 1994, p. 55).

Para além dos diferentes tratamentos teóricos, podemos afirmar que o problema do conhecimento assume na sociologia uma dimensão de diagnóstico das mudanças societárias. É o caso do debate sociológico travado ao longo das décadas de 1960 e 1970 com respeito à emergência da assim chamada sociedade pós-industrial. Na esteira de outros autores como Claus Offe e Jurgen Habermas34, sociólogos como Daniel Bell destacavam a perda da centralidade da categoria trabalho na organização social e a ascensão do conhecimento como o marco organizador da produção e estruturação da vida

34 Para maiores detalhes da crítica desses autores a chamada “sociedade do trabalho” ver: OFFE, Claus.

Trabalho: A Categoria Chave da Sociologia? In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Vol. 4, l989; HABERMAS, Jurgen. A Nova Intransparência: A Crise do Estado de Bem Estar Social e o Esgotamento das Energias Utópicas. In: Revista Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, Nº l8, l987.

econômica, social, política e cultural das sociedades ocidentais do pós-guerra. Segundo Bell, na sociedade ocidentais do pós-guerra, o conhecimento e a informação e a ciência e a técnica tornam-se progressivamente os eixos aglutinadores dos conflitos e das disputas sociais35, e não mais o trabalho, a propriedade e a luta de classes. Dessa maneira, a explicação das relações de dominação na sociedade pós-industrial descura da teoria do valor-trabalho para uma teoria do valor-conhecimento (BELL, 1974).

Mais recentemente, o conhecimento reaparece na retomada do debate acerca da modernidade e da caracterização da natureza das mudanças societárias e culturais experimentadas pelas sociedades contemporâneas. Tal mote é especialmente tratado nas obras dos sociólogos Ulrich Beck e Anthony Giddens sobre a assim chamada “modernização reflexiva36”.

Ulrich Beck alerta sobre como as consequências da modernização, dirigida por uma lógica de desenvolvimento e produção de riquezas pautada no crescimento econômico e na racionalidade científica, conduziu a sociedade a uma necessidade social, política e econômica cada vez maior de reflexividade, isto é, de tematizar a si mesma como tentativa de maximizar o controle e de enfrentar os riscos e os impasses ecológicos, químicos, nucleares e genéticos gerados pela própria sociedade industrial.

Nesse sentido, na sociedade de risco diagnosticada por Beck, o conhecimento perito é alçado ao mesmo tempo como um agente e um objeto da reflexividade sobre como identificar, prevenir, tratar e indenizar os riscos cientificamente e tecnologicamente produzidos. Outro fato que atesta a importância assumida pelo conhecimento radica na inversão entre a lógica de produção da riqueza e a lógica de produção de riscos; ora, se antes os poderes econômicos e políticos presidiam a lógica da produção dos riscos, na sociedade de risco eles passam a então, irremediavelmente, a depender dela, a ter que inevitavelmente operar segundo a sua distribuição e lógica de prospecção (BECK, 2011).

Giddens, por sua vez, define o conhecimento enquanto uma propriedade e uma atividade constitutivas da vida social humana, de sua continuidade e transformação. Para o sociólogo britânico, as pessoas são capazes de interpretar e reinterpretar suas ações.

35Interessante notar, inclusive pelo período, como no estudo de Bell deparamos com um diagnóstico

semelhante ao realizado por Foucault acerca dos espaços, questões e relações em que se travariam os antagonismos sociais e políticos, quais sejam, as relações de poder envolvendo o conhecimento técnico e especializado em estratos intelectuais de científicos, profissionais liberais e técnicos; médicos e pacientes, juízes e réus, burocratas e clientes, professores e alunos.

36 Para maiores detalhes ver: BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony & LASH, Scott. A modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo. Unesp, 1997.

Embora mais conhecido pela relevância que atribui à reflexividade como propriedade e capacidade humana inescapável dos próprios indivíduos, Giddens não deixa de empregá-la em sua caracterização da modernidade tardia. Entre os traços fundamentais da modernidade, Giddens refere-se ao que intitula de reflexividade institucional: “o uso regularizado de conhecimento sobre as circunstâncias da vida social como elemento constitutivo de sua organização e transformação” (GIDDENS, 2002, p.26).

Em outras palavras, significa que as atividades sociais das instituições e as ações dos indivíduos se tornam bem mais suscetíveis de avaliação e revisão à luz de informações e conhecimentos renovados sobre estas próprias atividades e ações do que em comparação aos modos preestabelecidos de conduta sancionados pela tradição ou limitados pela natureza em períodos societários anteriores à modernidade. Por exemplo, as pessoas que decidem casar conhecem a alta taxa de divórcio na atualidade e empregam tal informação para modelar os seus projetos pessoais e os arranjos conjugais e amorosos que desejam construir ou manter com outras pessoas (GIDDENS, 1991, p. 45; 49).

A maneira pela qual Foucault concebe o conhecimento segue um caminho bem diferente dos propósitos de elaboração de um diagnóstico macrosociológico com respeito a grandes mudanças nas tendências estruturais da organização social. Se, nos passos de Nietzsche, Foucault considera que há um vínculo essencial e estratégico entre conhecimento e vida em sociedade este vínculo não é o da reflexividade, ele não consiste na inteligibilidade inerente às interações sociais e nem ao efeito capacitador das decisões dos indivíduos. O conhecimento também não é um simples recurso escasso pelo qual se luta, mais um meio e instrumento na distribuição e equilíbrios de poder de uma sociedade. Igualmente, Foucault distancia-se das perspectivas orientadas e movidas por viés que insere o conhecimento no tribunal da razão crítica, julgando o seu estatuto emancipatório ou o reificador quanto às relações de dominação numa sociedade.