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Dominação e diagnóstico da modernidade

2 DOMINAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

2.1 Dominação e diagnóstico da modernidade

Poucas tarefas mobilizaram com tanto empenho intelectual e paixão o engenho humano ao longo da história do pensamento político, filosófico e social como a de compreender de que forma e por que se estruturam relações sociais que submetem homens e mulheres a relações desiguais e de obediência: relações de sujeição do corpo, da vontade, das ideias. Por que as relações de sujeição perduram no tempo e espaço? O que as dota dessa força e capacidade? A partir de que meios e vínculos essas relações adquirem conteúdos morais, políticos e econômicos que se sobrepõem e moldam as vontades na história? O que mantém e justifica e legitima o domínio dos homens sobre os homens e as obrigações políticas, sociais, culturais e econômicas que o acompanham? Como as formas de dominação se adaptam, contribuem e refletem os imperativos de produção e reprodução da ordem social, política e econômica de uma sociedade?

Para dar conta do enigma da construção social da dominação e da produção da sua eficácia uma plêiade de modelos teóricos e conceitos foram construídos e elaborados; poder, autoridade, violência, coerção, contrato social, classes, servidão voluntária, propriedade, natureza humana, política, todos são conceitos que, em certa medida, foram criados para tentar explicar o fundamento das relações de dominação entre os homens.

Lembremo-nos das palavras da filósofa Hannah Arendt: “poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem” (ARENDT, 1994, p. 183).

E, assim, responder as perguntas lançadas há quase um século por Max Weber: “Quando e por que os homens obedecem? Sobre que justificação íntima e sobre que meios exteriores repousam esse domínio?” (WEBER, 1982, p. 99).

O problema da dominação, isto é, das formas históricas de exercício e modos de legitimação da sujeição e governo dos homens, desponta como uma das questões mais

prementes e caras ao pensamento sociológico. Dos clássicos aos contemporâneos, o conceito e o tema da dominação é uma das principais chaves de inteligibilidade de que os sociólogos lançam mão para entender, em suas singularidades históricas, culturais, econômicas e políticas, uma organização social dada. Não é gratuito que Max Weber, talvez sociólogo que mais atenção tenha dado ao problema dominação, tenha dito que a dominação é um dos elementos mais importantes da ação social, uma vez que, em suas próprias palavras:

Todas as áreas da ação social, sem exceção, mostram-se profundamente influenciadas por complexos de dominação. Num número extraordinariamente grande de casos, a dominação e a forma como ela é exercida são o que faz nascer, de uma ação social amorfa, uma relação associativa racional, e noutros casos, em que ocorre isso, são, não obstante, a estrutura da dominação e seu desenvolvimento que moldam a ação e, sobretudo, constituem o primeiro impulso, a determinar, inequivocamente, sua orientação para um ‘objetivo’ (WEBER,1999, p. 187).

Compreender a dominação é, também, compreender como é possível que um conjunto de relações sociais desiguais e os modos de agir, pensar e sentir correlatos a essas relações possam perdurar no tempo e no espaço com relativa estabilidade. Ou seja, o próprio segredo da continuidade da vida social possui no conceito de dominação um dos seus ingredientes imprescindíveis e mais importantes.

Foucault também está de acordo com respeito ao potencial heurístico do conceito de dominação para descortinar as fundações do edifício social:

[...] o que torna a dominação de um grupo, de uma casta ou de uma classe, e as resistências ou as revoltas às quais ela se opõe um fenômeno central na história das sociedades é o fato de manifestarem, numa forma global e maciça, a escala do corpo social inteiro, a integração das relações de poder com as relações estratégicas e seus efeitos de encadeamento recíproco (FOUCAULT, 1995, p. 249).

Desse modo, entende-se porque, não por acaso, as análises e pesquisas sociológicas, históricas e filosóficas utilizem, recorram e reavaliem constantemente o conceito de “dominação”.

À título de ilustração, vejamos, muito esquematicamente, como os clássicos da sociologia trataram da dominação enquanto um conceito-chave para desvendar a realidade social a fim de que se possa evidenciar, rapidamente, a importância dessa temática em seus respectivos esquemas teóricos e diagnósticos da modernidade.

Em Karl Marx, a chave para explicar a sociedade capitalista passa necessariamente por compreender e desvelar como a dominação econômica, social e política se exercem dissimulando os mecanismos econômicos e as relações sociais que a mantém inquestionada e em funcionamento no que tange as suas relações de produção e políticas vigentes. Os conceitos de fetichismo da mercadoria, ideologia e de mais-valia ou a crítica às crenças burguesas nas liberdades individuais como direitos universais do homem ganham o seu verdadeiro sentido crítico e sociológico quando entendidos sob o pano de fundo acima (MARX, 1985; 1991).

Na sociologia de Durkheim, a própria natureza coercitiva dos fatos sociais que se impõem como exteriores ao indivíduo são responsáveis por submetê-los e integrá-los de diversas formas à sociedade, quer seja pela força moral e o “conformismo lógico” da consciência coletiva e suas categorias de pensamento quer, nas sociedades diferenciadas modernas, por meio da solidariedade social da divisão do trabalho e a sacralização do indivíduo pelo “individualismo moral” (DURKHEIM, 1999).

Na obra de Georg Simmel, a singularidade da forma de vida moderna passa pelo desvendar da natureza ambígua da dominação moderna exercida sobre os indivíduos, suas associações e sobre a cultura objetiva e subjetiva. Se, por um lado, o dinheiro e a divisão do trabalho redundaram num ganho de liberdade individual e afirmação subjetiva em relação aos constrangimentos sociais das relações pessoais do medievo, por outro, eles produziram a intelectualização da vida e a objetificação das relações sociais e dos conteúdos culturais em função de critérios cada vez mais quantitativos, generalizadores, impessoais e abstratos (SIMMEL, 2005).

Max Weber, como dito anteriormente, foi o sociólogo que mais atenção e reflexão dispensou sobre o tema da dominação, construindo, inclusive, tipologias conceituais para analisar suas formas de exercício e legitimação no real21. Essas tipologias o orientaram decisivamente em suas investigações históricas comparativas e em suas análises políticas. Se tomarmos seu diagnóstico sobre as condições modernas, ou, sobre a cultura moderna, encontraremos o predomínio da “dominação racional-legal”, fruto do processo de racionalização instrumental que submeteu todas as esferas da existência à autonomização e as relações humanas à disposição metódica do cálculo e do formalismo, cuja burocracia moderna e a empresa capitalista moderna são as expressões típicas (WEBER, 2004).

21Weber lista três tipos de dominação: “dominação tradicional”, “dominação carismática” e “dominação

racional-legal”. Para maiores detalhes ver: WEBER, Max. “Os três tipos de dominação legítima”. In COHN, Gabriel (Org.) Sociologia: Max Weber. São Paulo. Ática, 2003.

Em comum, todos esses tratamentos sociológicos da dominação mantém uma mesma e única convicção, qual seja: a de que a dominação no mundo moderno estrutura-se de modo opaco, o que torna, por conseguinte, o exercício das forças e racionalidades envolvidas processos impessoais, intransparentes e inconscientes ao sentido comum. Por isso, cada um dos clássicos representa um enorme esforço analítico e teórico para revelar e articular o que subjaz, como causa estruturante, inconsciente e finalidade última inconfessável da dominação nas sociedades modernas.

As relações de produção e a dominação de classe, em Marx; o lugar do indivíduo e do trabalho na sociedade moderna, em Durkheim; a implantação da economia monetária ou o incremento da divisão do trabalho, em Simmel; e, por último, as consequências não- intencionais de uma ética do trabalho desdobrada do protestantismo ascético, em Max Weber.

Marx, Durkheim, Simmel e Weber, cada qual ao seu modo, trazem à luz o segredo das formas de dominação nas sociedades modernas a partir do nexo significativo, ou, para usar uma formulação weberiana, a conexão de sentido que elas revelam entre dimensões do mundo social e o engendramento de formas sociais de dominação.

Desse modo, respectivamente, a análise da economia capitalista e suas relações de produção revela o nexo entre dominação econômica, política e ideológica e classe social. A análise do “individualismo moral” e da divisão do trabalho a relação entre moral e diferenciação social. A análise do dinheiro revela o nexo entre economia e intelectualização da vida. E, por último, a análise do protestantismo ascético e seu ethos revela o nexo entre religião, capitalismo moderno e racionalização da vida.

Os clássicos de uma disciplina como a sociologia cumprem as importantes funções de inspirar, fundamentar e balizar as argumentações e avaliações teóricas contemporâneas. Os clássicos não são referências vazias ou pura exibição livresca (ALEXANDER, 1999).

Portanto, se começamos pelos clássicos, a propósito da dominação, é porque neles encontramos parâmetros nos quais a originalidade, o vigor e a engenhosidade teórica e conceitual de um novo empreendimento interpretativo da realidade social podem ser avaliados e confrontados em suas características próprias, fazendo notar, inclusive, aspectos ignorados ou pouco observados em razão da luz própria que os clássicos possuem e projetam22.

22

Os clássicos iluminam os contemporâneos e, no mesmo gesto, deixam-se avivar e renovar para novos descobrimentos e retornos pelos olhares contemporâneos. É por isso que, conforme Jeffrey Alexander, os

Assim, como então abrir mão dos clássicos, se eles constituem fonte de fecundidade teórica e representam um verdadeiro farol para as discussões e avaliações contemporâneas da disciplina? No que tange à discussão teórica, começar por suas formulações sobre determinado tema significa esclarecer para nós mesmos o tipo de questões que enfrentaremos no decorrer da análise e da pesquisa. Dito de outro modo, os clássicos nos servem para formular, de maneira mais elaborada e exata, as perguntas que até então se encontravam confusas e dispersas. Com efeito, as formulações e intuições dos clássicos com respeito à dominação nos auxiliam nos questionamentos que endereçaremos ao pensamento de Foucault a esse propósito.

Qual o lugar de Foucault no pensamento social, no tocante à problematização e à análise da dominação social?