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1 AFINIDADES ELETIVAS: FOUCAULT E A

1.2 Questão de método

Se há diversos pontos de cruzamento entre Foucault e a sociologia, são inúmeras, também, as vias para percorrê-los e cartografá-los em suas afinidades e distanciamentos.

Para traçar as linhas de comparação entre um e outra, abordar as relações entre o pensamento foucaultiano e a sociologia para compreender as possíveis contribuições e afinidades e as incompatibilidades e déficits em relação a nossa área, poderíamos recorrer a diversas ancoragens e a pontos de apoio analíticos.

Por exemplo, eleger uma subárea da sociologia a partir da qual tentar-se-ia situar Foucault no quadro interpretativo da sociologia; a sociologia do conhecimento, a sociologia histórica, a sociologia das organizações, a sociologia da modernidade, etc.. Ou, ainda, seguir uma proposta metateórica segunda a qual abordaríamos os pressupostos ontológicos e epistemológicos tácitos sobre a natureza da realidade, da ação, do sujeito, do conhecimento a fim de apreender o “esquema explicativo básico” do programa de investigação foucaultiano. Por último, seria possível, também, empreender uma investigação sobre as condições institucionais e os fatores sociais e políticos pelos quais Foucault e seus conceitos adentraram no campo da sociologia – quer dizer, uma sociologia da difusão, recepção e institucionalização no campo intelectual sociológico de seu pensamento que identifique, com indicadores empíricos, os atores e rede de atores desse processo de transferência e acomodação.

Evidentemente, cada uma dessas possibilidades de interpretação comporta suas pertinências, riscos e insuficiências. Cada uma delas abre-nos perspectivas e limites sobre a obra, a abordagem foucaultiana e o problema de suas relações teóricas, analíticas e disciplinares com a sociologia. Elas constituem olhares e entradas a partir dos quais se pode se aproximar e investigar o problema dessas relações com diferentes rendimentos e potenciais interpretativos e analíticos. Contudo, não adotaremos integralmente nenhuma delas – muito embora, reconheçamos que tais entradas, tomadas de maneira integral ou combinadas, resultem como imprescindíveis e instigantes para compreender a um só tempo a natureza do problema acima e o poder de atração, fascínio, hostilidade e intimidação intelectual que Foucault e sua abordagem exercem no campo da sociologia.

Para tratar e discutir as relações teóricas de afinidade e distanciamento e de contribuição e déficit entre Foucault e sociologia, nos propomos a realizar uma leitura de seu pensamento que privilegie, em sua obra, o tratamento e a discussão de problemáticas, temas e conceitos sociológicos, ou, pertencentes e afins ao patrimônio dessa disciplina. Nesse sentido, trata-se de identificar e discutir como Foucault, em sua obra, aborda alguns dos temas e questões consagrados ou debatidos na sociologia. Esta será a estratégia analítica para abordar o seu pensamento.

Portanto, uma aproximação entre Foucault e a sociologia, o estabelecimento de um diálogo crítico entre este autor e esta tradição de pensamento e disciplina, passa necessariamente pela questão de identificar e argumentar como este autor enfrentou questões e lançou mão de aportes consagrados na disciplina – ainda que sem a intenção de fazê-lo ou com declaração explícita de herança ou interlocução. Será a partir e mediante essa estratégia de abordagem e comparação que as diferenças significativas, os impasses teóricos e as convergências analíticas serão identificados, estudados e relacionados.

Nossa aproximação entre Foucault e a sociologia é, com efeito, temática e teórica. Entretanto, na vasta, agitada e difusa constelação da sociologia, o que privilegiar como corpus de problemas e conceitos sociológicos “consagrados”? Ao falarmos de sociologia, com tanta naturalidade e convicção, esquecemos que estamos nos referindo a um campo discursivo extremamente heterogêneo, atravessado por uma diversidade de teorias, enfoques teóricos, escolas, tradições, epistemologias e metodologias concorrentes. Fato constatável, aliás, pela série de antinomias que configura o espaço epistemológico da sociologia: holismo/individualismo, racionalismo experimental/interpretativismo, estrutura/ação, objetivismo/subjetivismo, macro/micro, quantitativo/qualitativo

A sociologia é uma ciência que, desde sua infância, luta pela consolidação de sua identidade epistemológica; uma “ciência condenada à eterna juventude”, no dizer de Max Weber, ou, conforme o gosto de Bourdieu e companhia, uma “ciência como as outras”, mas que enfrenta obstáculos peculiares para ser reconhecida como as demais. Apesar de todos os esforços teóricos de reconstrução, unificação e síntese18, a sociologia continua a ser um campo discursivo multiparadigmático e plural19. Com o agravante de ser hoje muito mais fragmentado do que no período clássico e pós-clássico da disciplina. A ciência da sociedade caracteriza-se pela existência de diferentes correntes teóricas e diferentes tradições nacionais, modos de fazer sociologia e campos de especialidade. Isso significa que o seu caráter pluriparadigmático e seu estado de fragmentação colocam, de maneira premente e ininterrupta, o problema de sua unidade.

18 De Talcott Parsons com A Estrutura da Ação Social ao assim chamado “novo movimento de síntese”, com

Pierre Bourdieu, Anthony Giddens e Jürgen Habermas, temos diferentes empreendimentos intelectuais que tentaram lidar com a pluralidade do legado sociológico clássico e moderno.

19 Essa variedade de paradigmas pode ser observada na disciplina em diferentes períodos e na existência de

diferentes marcos explicativos sobre a vida social: paradigmas sistêmicos, funcionalistas e estruturais; paradigmas hermenêuticos e interacionista; paradigmas utilitarista e racionais, paradigmas dialético, paradigma pragmáticos, etc..

Os investimentos intelectuais que tentaram conferir alguma estabilidade e composição teórica, epistemológica e disciplinar à ciência do mundo social contribuíram, por conseguinte e de uma só vez, para manter sempre aceso o debate teórico na disciplina, portanto, alimentar sua reflexividade sobre si mesma, como também para a construção de “mapas teóricos”, “marcos conceituais básicos” e “princípios” dedicados a organizar e integrar, em alguma medida, o patrimônio de conhecimentos, pensadores e obras da sociologia. Sem o auxílio desses “mapas teóricos” e “marcos conceituais básicos”, e a reflexividade resultante, nossa tarefa de definir um espaço analítico de problemas e conceitos a partir do qual empreender uma aproximação entre Foucault e a sociologia seria muito mais difícil e ingrata.

Entre esses investimentos de redução da complexidade teórica da sociologia, cumpre destacar duas estratégias analíticas: uma de caráter mais abstrato-formal e outra mais temática. Em linhas gerais, a primeira, mais contemporânea, tem como representante os trabalhos de Jeffrey Alexander (1995) cujo mote é a reconstrução multidimensional da teoria sociológica em função da articulação dos pressupostos ontológicos e epistemológicos subjacentes às tradições teóricas e suas respectivas formas de tratamento do que Alexander intitula como os dois problemas fundamentais da sociologia, quais sejam: o problema da “ordem” e da “ação”.

A segunda, mais clássica, refere-se aos estudos de Robert Nisbet (1969) para quem as tradições de pensamento se organizam em torno de um núcleo de ideias, valores e questões fundamentais que perduram e atravessam diferentes teorias e autores, conferindo a estes últimos um grau de coerência, pertencimento e continuidade. Esse núcleo fundamental de “ideias-elementos” combina uma tensão entre valores, preocupações e conceitos que, em sociologia, formam, conforme Nisbet, a base do pensamento sociológico. Essas “ideias-elementos” são: comunidade, autoridade, status, o sagrado e alienação, estas são as inquietações essenciais que formam a tradição sociológica clássica para Nisbet, isto é, Alexis Tocqueville, Karl Marx, Émile Durkheim, Georg Simmel e Max Weber (NISBET, 1969, p. 18).

Tomaremos, como modelo, a inspiração de Nisbet, mas sem tomar de empréstimo as “ideias-elementos” em sua integralidade, as quais ele definiu enquanto as inquietações morais e filosóficas mais essenciais durante o período formativo da sociologia clássica. De nossa parte, elegemos uma das inquietações temáticas e teóricas mais profundas da

sociologia, a qual, a nosso ver, cumpre a generalidade, a continuidade e a relevância na história da disciplina, a saber: a dominação nas sociedades modernas.

Mais do que definir ou identificar um núcleo essencial da sociologia e de sua unidade, essa “ideia-elemento”, a dominação, nos auxiliará no que diz respeito ao conjunto de interrogações que lançaremos ao pensamento de Foucault para pensar as relações teóricas com a sociologia, assim como, sobretudo, nos servirá como vetor pelo qual discutiremos sua obra para amarrar algumas das possíveis contribuições do autor para o conhecimento sociológico.

Trata-se, com efeito, de uma leitura sociologicamente orientada do programa de investigação foucaultiano acerca do exercício da dominação nas sociedades modernas. Tomamos de empréstimo a noção de programa de investigação da epistemologia histórica das ciências de Imre Lakatos. Com ela, pretendemos definir as pressuposições básicas e as regras metodológicas principais que presidem e organizam uma grande orientação intelectual de investigações variadas, no caso, aquelas presentes na obra de Foucault no tocante à temática das formas de dominação na sociedade moderna. Entre outras coisas, a noção de programa de investigação é relevante para nossas finalidades porque, conforme Lakatos, ele é formado por aquilo que o autor intitula de heurística negativa e heurística

positiva, isto é, por regras metodológicas e supostos tácitos que servem para orientar os

caminhos a serem evitados e os que devem ser seguidos, respectivamente, nas análises e verificações (LAKATOS, 1989).

Especialmente a heurística negativa é bastante clara nos postulados pelos quais Foucault define como não pensar e abordar o poder. O conceito de Lakatos nos servirá, com efeito, para delimitar dentro da obra e das pesquisas de Foucault as principais linhas de inteligibilidade de construção, análise e explicação do objeto – dominação -, isolando-o, em certa medida, de outros objetos, temáticas e problemas. Ou seja, numa mesma disciplina e autor podem existir diferentes programas de investigação. Em Foucault, por exemplo, poder-se-ia falar num programa de investigação da emergência das formas de saber, da constituição do sujeito, das relações de poder, etc..

Nesse sentido, não analisaremos o pensamento de Foucault como um todo, senão uma orientação específica de investigação, a qual pela consistência lógica e continuidade de axiomas, aportes conceituais, regras metodológicas e recortes empíricos, logicamente encadeados entre si, sobre um conjunto similar de problemas, caracterizam um programa de pesquisas, que, aqui, intitularemos como programa de investigação das formas de

dominação na sociedade moderna. O nosso recorte e interpretação da obra e do esquema teórico do autor obedecerá, portanto, essa estratégia de análise e de delimitação teórico- temática. Com isso, acreditamos subsidiar ainda mais a compreensão conforme a qual nosso tratamento dos textos e conceitos foucaultianos orienta-se, em última análise, por uma perspectiva operatória, ao invés de completamente hermenêutica e exegética. Nosso propósito é de avaliação de seu instrumental analítico enquanto uma “caixa de ferramentas” aptas para abordar problemas sociológicos específicos.

Como dito na introdução, esperamos com tal exercício avançar nos primeiros passos para um empreendimento maior de avaliação e entendimento, teoricamente mais apurado e consistente da seguinte questão: como e de que modo os trabalhos e o modelo analítico de Foucault contribuem para pensar e explicar problemas e questões de interesse sociológicos? De que maneira, sua obra e seus conceitos iluminam algumas das principais preocupações da sociologia e se relacionam com os esquemas conceituais desta?

A análise do tema da dominação constitui um primeiro tratamento dessas questões, congruente, desse modo, com o formato e limites de uma dissertação.

Em última análise, não se trata de responder se Foucault faz ou não sociologia ou de definir os fundamentos de uma “sociologia foucaultiana” nem de buscar o seu lugar nesse campo, quer seja em suas especialidades ou tradições teóricas. Dito de outro modo, em vez do lugar de Foucault na sociologia, interessa-nos questionar e analisar em quais problemas, aportes e supostos podemos apreender intersecções e pontos de encontro com a sociologia.

Não nos propomos a mais uma empreitada em busca da cidadania foucaultiana na ordem do saber. Porém, tais ressalvas não nos desautorizam a refletir sobre uma possível perspectiva sociológica em Foucault ou mesmo das afinidades de sua obra e abordagem com determinadas formas de pensar e fazer sociologia.

Por último, provavelmente um “foucaultiano” nos censurasse com a acusação de que existe, de modo sutil, um ar de “disciplinamento”, uma tentativa disfarçada de cunho normalizador, de enquadrar e encerrar um pensamento complexo em uma identidade homogênea, ainda que por meios indiretos e propósitos escolásticos. O que, irremediavelmente, nos alertaria este “foucaultiano” bem intencionado, seria contraditório, ou, talvez, até mesmo “criminoso”, realizar contra um pensador que não cessou de lutar, teórica e politicamente, contra as “polícias do discurso” e contra as implicações políticas e

morais da noção de autor, negando, reiteradamente, os rótulos propostos de filósofo e historiador20 (FOUCAULT, 1996; 2009).

A essas censuras caberia invocar tão somente as palavras iniciais do seu biógrafo mais atento, Didier Eribon:

Foucault questionou a noção de autor? Sim. [...]. Entretanto ele mesmo não podia se abstrair da sociedade em que vivia: como todo mundo, estava sujeito a essas ‘funções’ que descreveu. Portanto, assinou seus livros, relacionou-os uns com outros através de um conjunto de prefácios, artigos, palestras que se empenhavam em reconstituir a coerência ou a dinâmica de sua pesquisa, de uma etapa a outra; aceitou o jogo do comentário, participando de colóquios dedicados a seu trabalho, respondendo a objeções, críticas, leituras errôneas ou corretas. Em suma, Michel Foucault é um autor, criou uma obra sujeita ao comentário (ERIBON, 1990, p 11).

O trabalho de argumentação discursiva e teórica sobre autores, teorias e programas intelectuais não se reduz a uma vaidade diletante e escolástica ou a um exercício disciplinar, uma forma de controle e de domesticação do pensamento e do discurso. Não. A construção e a produção de conhecimentos, de novos conceitos e perspectivas, reclamam necessariamente esforços intelectuais que se voltem para a interpretação, análise, persuasão dos programas de investigação e esquemas analíticos de que dispomos. Nesse sentido, queremos crer, esta dissertação é um pequeno esforço para fazer com que Foucault e o seu pensamento continuem a “falar”, e através de novos idiomas; um pequeno esforço, portanto, para continuar o trabalho de “imaginar Foucault”, na bela expressão de Maurice Blanchot.

20 Por diversas vezes, em entrevistas, introduções e prefácios, Foucault jogava contra as tentativas de situá-lo

em rótulos e classificações disciplinares. No encerramento da introdução de A Arqueologia do Saber, ele arremata: “Vários, como eu, sem dúvida escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo; é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever” (FOUCAULT, 2008, p.20). Noutras ocasiões, Foucault se autointitulou, não sem ironia e provocação, como “jornalista”, “professor”, “escritor” e, retomando a metáfora explosiva de Nietzsche do filósofo-dinamite, afirmou que era “(...) uma espécie de pirotécnico.

Considero os meus livros como minas, pacotes de explosivos... Espero que sejam!” (FOUCAULT, 2006, p.