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Saber-Poder e a aceitação da produção da verdade

4 CIÊNCIAS HUMANAS: A SOCIOGÊNESE DA

5.4 Saber-Poder e a aceitação da produção da verdade

Nos estudos histórico-empíricos de Foucault, constata-se o empoderamento do saber nas sociedades modernas. Como dito nos capítulos anteriores, em última análise, não se trata do papel do saber aplicado na produção industrial capitalista ou na dinâmica do mercado nem o saber como fator explicativo de mudanças societárias de largo alcance, tampouco o saber como fundamento para uma forma de ideologia individualista e meritocrática. O interesse de Foucault concentra-se, antes e fundamentalmente, no saber como base para o exercício da dominação social, notadamente, pelo seu papel na justificação e implantação do exercício do poder na vida cotidiana e na produção e legitimidade e da aceitabilidade de discursos de verdade que governam as condutas e os pensamentos humanos.

As relações entre poder, verdade e sujeito funcionam no interior de campos de saber e sistemas de conhecimento. São estes últimos que ensejam a aceitabilidade dos discursos e seu poder de verdade. Ao observarmos como Foucault constrói, paulatinamente, suas análises, podemos apreender esse ponto.

Inicialmente, as análises foucaultianas se debruçam, de modo empírico e provisório, sobre as conexões existentes e as afinidades eletivas entre mecanismos de coerção e conteúdos de conhecimento. Quer dizer, entre mecanismos de poder, que podem ser decretos, regulamentos, dispositivos materiais, normas, sanções, fenômenos de autoridade e conteúdos de saber, que podem ser teorias, corpus de fórmulas, categorias, conceitos, representações gráficas. Esses conteúdos de saber, seus enunciados, são abordados em função dos efeitos de poder de que são portadores e capazes considerados válidos e aceitos, como fazendo parte de um sistema de conhecimento definido como legítimo, portanto, autorizado.

Nesse sentido, dirá Foucault na conferência “O que é a crítica?”:

O que se busca então não é saber o que é verdadeiro ou falso, fundamentado ou não fundamentado, real ou ilusório, científico ou ideológico, legítimo ou abusivo. Procura-se saber quais são os elos, quais são as conexões que podem ser observadas entre mecanismos de coerção e elementos de conhecimento, quais jogos de emissão e de suporte se desenvolvem uns nos outros, o que faz com que

tal elemento de conhecimento possa tomar efeitos de poder afetados num tal sistema a um elemento verdadeiro ou provável ou incerto ou falso, e o que faz com que tal procedimento de coerção adquira a forma e as justificações próprias a um elemento racional, calculado, tecnicamente eficaz etc. (FOUCAULT, 1990, p. 13-4).

Os discursos de verdade, nas sociedades modernas, possuem nos conteúdos de saber um suporte na forma de um conjunto de coerções que operam como mecanismos de incitação, de validação e aceitação, pois admitidos que são enquanto conteúdos racionais, metódicos ou simplesmente científicos. Da mesma maneira, os discursos de verdade apoiam-se nos mecanismos de poder, enquanto um suporte de coações na forma de rituais, instrumentos objetivos, hierarquias, tecnologias características, capazes de garantir e fazer valer a aplicação e os objetivos dos conteúdos de saber em sistemas mais ou menos coerentes de conhecimento. A partir dessa rede de suporte, do nexo de saber-poder, conforme Foucault, pode-se descrever e compreender “o que constitui a aceitabilidade de um sistema, quer seja o sistema da doença mental, da penalidade, da delinquência, da sexualidade, etc. (FOUCAULT, 1990, p. 15).

A rede de suportes dos mecanismos de poder e dos conteúdos de saber assegura a institucionalização de verdades e, desse modo, sustenta a aceitabilidade de discursos de verdade, nos domínios em que eles são aceitos, pela força e reconhecimento da validade de seus próprios mecanismos de coerção e coação. Assim, as verdades podem se impor e funcionar gradativamentena vida cotidiana e nas instituições enquanto evidências constituídas e não-questionadas. A esse propósito, defende Foucault sobre os discursos de verdade: “e o que faz-se preciso ressaltar para apoderar do que pôde os tornar aceitáveis, é que justamente isso não vinha de si, não estava inscrito em nenhum a priori, não estava contido em nenhuma anterioridade” (FOUCAULT, 1990, p.15).

Por isso, a importância da investigação das condições históricas de emergência da rede institucional de suportes de saber-poder, pois são elas que mostrarão as condições de aceitabilidade conquistadas por um discurso de verdade:

Isso não ia, em absoluto, de si, que a loucura e a doença mental se superpusessem no sistema institucional e científico da psiquiatria; não era mais dado que os procedimentos punitivos, o aprisionamento e a disciplina penitenciária, viessem se articular num sistema penal; não era mais dado que o desejo, a concupiscência, o comportamento sexual dos indivíduos devessem efetivamente se articular uns sobre os outros em um sistema de saber e de normalidade chamado sexualidade. O reconhecimento da aceitabilidade de um sistema é indissociável do reconhecimento do que o tornava difícil aceitar: sua arbitrariedade em termos de conhecimento, sua violência em termos de poder,

logo sua energia. Então, necessidade de tomar sob sua responsabilidade essa estrutura, para melhor seguir os artifícios (FOUCAULT, 1990, p. 15-6).

Portanto, a análise da formação dos saberes a partir de suas relações com o exercício do poder completa-se com a análise do papel estratégico que o saber desempenha em relação à construção e legitimação do “regime de verdade” de uma sociedade como a ocidental moderna. O interesse e enfoque foucaultiano sobre as ciências humanas explica- se, entre outras coisas, pelo fato de que nestas o autor pode trabalhar, sem maiores sobressaltos, a articulação entre saber, exercício do poder e verdade, isto é, pode investigar o enraizamento das formas de conhecimento nas práticas de poder e instituições sociais e perseguir os efeitos funcionais na produção de um regime de verdade que objetivam o homem.

Saber e conhecimento são mais do que justificações racionais de relações de poder e discursos de verdade. Não apenas o apelo à força normativa, de que a verdade goza e suscita na cultura ocidental. São também as relações de força que o binômio saber-poder produzem, infligem e fixam na forma de procedimentos, rituais e enunciados. Os saberes produzem efeitos de poder, estatuem regras e normas em nome das quais e por meio da quais se busca governar as condutas das pessoas, classificá-las, domesticá-las e sujeitá-las a formas de identidade e comportamento.

Isso significa que o problema da aceitação das relações de dominação, em Foucault, não é resolvido exclusivamente pela legitimação ou pela desigualdade das forças ou de posse dos instrumentos administrativos de coerção nem na motivação subjetiva que elas cumprem nos dominados. Se, por um lado, o poder normativo do apelo à verdade e da justificação racional em geral e abstrato a que, culturalmente, se atribui e aos conhecimentos com pretensões científicas e aos quais eles reivindicam como monopólio e prerrogativa, cumprem um importante papel na produção da aceitação enquanto legitimação, por outro, não são suficiente para explicar o sistema de aceitabilidade de formas de dominação específicas, historicamente localizáveis no tempo e no espaço. Insistirá Foucault de que é preciso investigar, empiricamente, os suportes materiais das tecnologias de poder e dos enunciados de saber que asseguram e produzem, em seus efeitos de poder, os discursos de verdade.

Desse modo, temos, com efeito, os elementos principais que permitem responder por que colocamos o saber como a chave para entender o exercício da dominação em Foucault. Novamente: no que se refere ao exercício da dominação, qual é, então, no

pensamento do filósofo francês, a conexão de sentido que o saber revela? Nas sociedades estudadas por Foucault, as formas modernas de saber funcionam produzindo discursos de verdade que geram efeitos de poder sobre a vida dos indivíduos. O que o campo do saber revela são os nexos existentes entre poder e verdade. Dito de outro modo, como um discurso é investido historicamente de um poder de verdade na forma um sistema de coerções que operam num campo das relações e das condutas humanas através da instituição de regras, normas, critérios e mecanismos que procuram governar os modos de ser, agir e pensar dos indivíduos, constituindo-os como sujeitos.

Desse modo, se poder e verdade estão implicados nas formas de individualização e constituição dos modos de ser dos indivíduos, isso acarreta consequências políticas, éticas e filosóficas que, por sua vez, dirigem o problema da autonomia e da emancipação para uma outra dimensão do sujeito:

Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos deste ‘duplo constrangimento’ político, que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno (FOUCAULT, 1995, p.239).

A relação com a verdade, no pensamento de Foucault, constitui, também, o mote pelo qual ele concebe a própria natureza e definição da filosofia. Numa entrevista, sugere Foucault: “o que é a filosofia senão uma maneira de refletir, não exatamente sobre o que é verdadeiro e sobre o que é, mas sobre a nossa relação com a verdade”? (FOUCAULT, 2005d, p. 305).

Ou seja, não simplesmente a relação epistemológica ou analítica entre verdade e conhecimento, mas a relação ética e de poder que se estabelece historicamente entre verdade e sujeito:

É filosofia o movimento pelo qual, não sem esforços, hesitações, sonhos e ilusões, nos separamos daquilo que é adquirido como verdadeiro, e buscamos outras regras de jogo. É filosofia o deslocamento e a transformação dos parâmetros de pensamento, a modificação dos valores recebidos e todo o trabalho que se faz para pensar de outra maneira, para fazer outra coisa, para tornar-se diferente do que se é (FOUCAULT, 2005d, p.305).