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Poder e cotidiano: a sociedade como arquipélago de poderes

2 DOMINAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

2.4 Poder e cotidiano: a sociedade como arquipélago de poderes

Temos, nesse ponto em particular, uma importante contribuição sociológica oferecida por Foucault, qual seja, a do tratamento do cotidiano a partir das relações de poder que o constituem e atravessam a vida dos indivíduos, inclusive nos espaços mais recônditos da intimidade. Ou seja, não se trata, como costumeiramente nas sociologias de matriz fenomenológica, de pensar o cotidiano a partir do papel das interações sociais e significações subjetivas compartilhadas pelos indivíduos para construir e manter como realidade coerente a vida corrente. Em Foucault, temos uma problematização política da vida cotidiana, trazendo à luz os poderes, as estratégias anônimas e os dispositivos locais que percorrem, individualizam e estruturam a vida diária, acossando as condutas corporais, as emoções e as relações dos indivíduos. Em vez de uma intersubjetividade formada unicamente por relações de sentidos, estoques de conhecimento, tipificações, o cotidiano ou o social é mantido por uma intersubjetividade estratégica de afrontamentos entre indivíduos, instituições, mecanismos e saberes.

É por meio e em função de práticas e mecanismos de poder que vão agindo sobre as ações que vai se constituindo, anonimamente, relações de poder, saberes, enunciados, discursos e instituições que vão modelando experiências específicas da loucura, da doença, da punição, da sexualidade, desdobrando na realidade social formas de sujeitos, o paciente, o anormal, o delinquente, o perverso, o operário, o aluno. O estudo detalhado do cotidiano

como uma malha e um diagrama das relações de poder significa um tratamento dos processos e mecanismos sociais que incidem sobre os indivíduos, as racionalidades que o produzem como objeto de discursos e saberes especializados e que o modelam, em suas condutas e individualidade, para se adaptar uma situação estratégica dominante.

Trata-se, com efeito, de uma concepção do social enquanto uma rede estratégica- relacional de poderes e forças imanentes que fisgam, unem e opõem os indivíduos entre si, em níveis diferentes, a partir de certos domínios institucionalizados e das relações sociais cotidianas, não, obviamente, sem determinada margem de ação e resistência dos próprios indivíduos, pois é por meio da ação e reação deles que a rede de poderes se torna uma malha social viva, que se expande, se contrai, se transforma, se estabiliza. A sociedade, longe de ser um corpo unitário na qual se exerce um poder único e central, é, na verdade, sustenta Foucault, “um arquipélago de poderes diferentes” que se coordenam entre si, se misturam, se hierarquizam e permanecem, também, em sua especificidade(FOUCAULT, 2012, p. 173).

Com efeito, há dois aspectos relevantes que é preciso destacar na concepção foucaultiana de sociedade, os quais justificam um pequeno parêntese: primeiro, ela se opõe à concepção de sociedade das teorias do contrato social26, uma vez que nestas temos a ideia de uma suspensão provisória e de apaziguamento da guerra e do enfrentamento entre as forças em favor da legitimidade da soberania – do poder constituído e constituinte exercido através das instituições políticas presentes – a qual permitiria e garantiria a existência relativamente pacífica dos indivíduos e da própria sociedade.

Portanto, nas perspectivas do contrato, seria a trégua, e não a guerra, que instauraria e manteria a ordem social. Para Foucault, é exatamente o enfrentamento contínuo das forças que é o motor do poder político e da ordem social, pois as forças e seus choques produzem realidades, táticas, arranjos e rearranjos na forma de grupos, instituições, ideias,

26 A oposição e as críticas de Foucault às teorias do contrato social (Hobbes, Bodin, Rousseau) vão além da

concepção subjacente de sociedade dessas teorias, que aqui destaco em virtude da importância do conceito de sociedade para a sociologia. Em linhas gerais, Foucault condena nessas teorias um conjunto de equívocos teóricos e filosóficos que enviesaram o entendimento e a análise do poder, sobrevalorizando os aspectos da soberania ligados à representação, à legitimidade e à repressão do poder em detrimento de entendimentos e análises mais atentas ao funcionamento, aos instrumentos, procedimentos e à produtividade do poder. Foucault critica, ainda, nessas teorias o seu papel para legitimar, fundamentando filosoficamente um arcabouço jurídico, a dominação política. Por fim, o autor de Vigiar e Punir estabelece uma relação de afinidade entre essas teorias e as mudanças das formas de punição (o encarceramento) e da imagem do criminoso - visto cada vez mais como um inimigo da sociedade cuja conduta infratora rompeu o pacto social da paz civil, de modo que a sociedade possui, com efeito, o direito de preservar a ordem, encarcerando todos aqueles que ameaçam a integridade da sociedade, portanto, do contrato social. Para maiores detalhes ver, respectivamente: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro. Graal, 1979 e FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis. Vozes, 2004.

conhecimentos, organizações. Disso decorre, a importância da investigação histórica, porque “apenas os conteúdos históricos podem permitir descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as ordenações funcionais ou as organizações sistemáticas tiveram como objetivo justamente mascarar” (FOUCAULT, 1999, p. 11).

Ao contrário do famoso aforismo de Clausewitz, para o filósofo francês, a política que “é a guerra continuada por outros meios”, e não o contrário. Desse modo, a sociedade existe como uma espécie de guerra permanente, ora mais ruidosa ora mais silenciosa, ora mais evidente ora mais sutil. Guerra e enfrentamento das forças que o poder político tem como função não suspender e, com isso, fazer reinar a paz na sociedade, senão “reinserir perpetuamente essa relação de força, [...], reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos de uns e de outros”. De sorte que, as lutas políticas e sociais, o surgimento e desaparecimento de sistemas políticos e econômicos, a instauração de normas e as transformações institucionais e culturais são, a um só tempo, produtos das relações de força e suas variações, são resultados dos enfrentamentos a propósito do poder, com o poder, pelo poder, são continuações da guerra, cristalizações de vitórias passadas e provisórias e reviravoltas de derrotas anteriores (FOUCAULT, 1999, p. 23).

Para Foucault, portanto, “as relações de poder se enraízam profundamente no nexo social; e que elas não reconstituem acima da ‘sociedade’ uma estrutura suplementar com cuja obliteração radical pudéssemos talvez sonhar” (FOUCAULT, 1995, p. 245).

Segundo, a noção de sociedade como rede móvel de poderes que atravessam o tecido social e constituem uma forma específica de sociedade, tecendo múltiplas relações que se interconectam e fisgam os indivíduos, possui inegável semelhança com a concepção de sociedade de um importante sociólogo, Norbert Elias. Para Elias (1994, p. 21-2), a sociedade é também uma rede, uma teia de laços invisíveis que conectam os indivíduos entre si; uma rede de interdependências e relações móveis que conformam os comportamentos, as expectativas, o caráter e os destinos dos indivíduos. Nas interdependências que conectam os indivíduos entre si – laços de família, laços de propriedade, laços de trabalho -, definindo suas posições, expectativas e funções, os equilíbrios de poder da sociedade constituem mecanismos e relações fundamentais.

Compreende-se, então, como a concepção de sociedade em Foucault deriva do modo pelo qual o filósofo analisa e concebe as relações de poder27, cujas análises e proposições metodológicas e teóricas tornaram Foucault mundialmente famoso como um teórico inovador nesse campo de estudo28. Disso depreende-se, como exigência e consequência lógica do seu esquema analítico das relações de poder, uma concepção de sociedade definitivamente não-substancialista; a sociedade, ou melhor, o social consiste numa rede de relações de força instáveis, capilares e microscópicas que alcançam e constituem a família, as relações sexuais, escolares, de trabalho, de vizinhança, etc..

A sociedade é uma rede de poderes diversos em que todos os indivíduos sofrem a ação do poder29, ainda que, a depender das situações e do momento, uns sofram mais diretamente a ação do poder e outros o exerçam como um canal e instrumento. Por isso, como foi dito diversas vezes, “o poder se exerce mais do que se possui” (FOUCAULT, 2004, p. 29).

Isto porque o poder circula incessantemente pelos indivíduos, quer eles estejam submetidos quer eles estejam submetendo outrem: “o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles [...] o poder transita pelo indivíduo que ele constituiu” (FOUCAULT, 1999, p. 35).

27 Embora tenhamos assinalado várias similaridades entre Weber e Foucault quanto às conexões entre as

relações de poder e a vida social, e o próprio Foucault incluiu-se numa tradição de pensamento que tem o sociólogo alemão com um dos expoentes, foi em outro pensador social alemão que Foucault buscou a inspiração para abordar o poder em termos do funcionamento dos seus mecanismos positivos e capilares na vida social; Karl Marx. Mais precisamente, de acordo com o próprio, no livro II de O Capital: “Em suma, o que podermos encontrar no livro II de O Capital, é, em primeiro lugar: não existe um poder, mas muitos poderes. Poder quer dizer formas de dominação, formas de sujeição, que funcionam localmente, por exemplo, no ateliê, no exército, em uma propriedade de tipo escravagista ou em uma propriedade onde há relações servis” (FOUCAULT, 2012, p. 172). No mesmo texto, Foucault continua: “O que eu gostaria de fazer, retomando o que está no livro II de O Capital e afastando tudo o que foi acrescentado, reescrito em seguida sobre os privilégios do aparelho de Estado, a função da reprodução do poder, o caráter da superestrutura jurídica, é tentar ver como é possível fazer uma história dos poderes no Ocidente e, essencialmente, dos poderes tais como foram investidos na sexualidade (FOUCAULT, 2012, p. 175).

28 Os famosos postulados da analítica do poder apresentados nos textos da coletânea Microfísica do Poder,

eis alguns: 1) O postulado da não-localização: o poder se exerce a partir de múltiplos pontos e em meio a relações desiguais e móveis. 2) O poder é imanente: As relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimentos, relações sexuais), mas lhes são imanentes. 3) Não-titularidade: o poder não possui um titular (classe ou instituição), as relações de poder vem de baixo, são capilares. 4) O poder é produtivo: as relações de poder constituem e produzem realidades e objetos mais do que reprimir realidades e objetos já dados. 5) O poder não é dualístico: não se apoia em oposições binárias do tipo dominantes/dominados. Para maiores detalhes ver a coletânea de textos organizada por Roberto Machado: FOUCAULT, Michel .Microfísica do poder. Rio de Janeiro. Graal, 1979 e FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade – A vontade de saber. Rio de Janeiro. Graal, 1988.

29Na prisão e no manicômio, “guardas e detentos” e “médicos e internos” estão submetidos a determinados

procedimentos de poder disciplinar e de normalização específicos e comuns, não obstante a desigualdade, a hierarquia e as desvantagens.

A tese da sociedade como rede de poderes capilares e diversos é bastante explícita na citação abaixo, a respeito dos investimentos de poder sobre a sexualidade das crianças e as recomendações de Foucault quanto ao modo de analisá-los:

Partir-se-á, portanto, do que se pode chamar de ‘focos locais’ de poder-saber: por exemplo, as relações que se estabelecem entre penitente e confessor, ou fiel e diretor de consciência; aí, e sob o signo da ‘carne’ a ser dominada, diferentes formas de discurso – exame de si mesmo, interrogatórios, confissões, interpretações, entrevistas – veiculam formas de sujeição e esquemas de conhecimentos, numa espécie de vaivém incessante. Da mesma forma, o corpo da criança vigiada, cercada em seu berço, leito ou quarto por toda uma ronda de parentes, babás, serviçais, pedagogos e médicos, todos atentos às mínimas manifestações de seu sexo constitui, sobretudo a partir do século XVIII, outro ‘foco local’ de poder-saber (FOUCAULT, 1988, p. 94).

Ao pensar a sociedade em função de “focos locais” de poder-saber, Foucault nos ensina, com efeito, a considerar que o poder e, por que não, o político, instala-se na vida cotidiana, numa gama variada de situações e de relações sociais, e não somente ou principalmente no aparelho do Estado e nas instituições gerais da sociedade. Nesse sentido, por exemplo, uma questão aparentemente tão individual e desinteressada, de um ponto de vista político, como a adoção de crianças pode ser abordada pela ótica das relações de poder, pois ela envolve a atuação de diferentes profissionais, saberes e instituições, a expertise de médicos, pedagogos, assistentes sociais, psicólogos, o jogo entre a legislação e a autorização de juízes, promotores, a mediação de instituições como família, escola, orfanatos, hospitais. Ou, ainda, um ato íntimo como cirurgias de transgenitalização30, que, em última instância, deveria dizer respeito apenas ao indivíduo, estar enredado numa rede de poderes no interior da qual, especialistas, protocolos, pareceres, laudos psiquiátricos, endocrinológicos, psicológicos e jurídicos decidirão o futuro da cirurgia almejada, portanto, da vida e da identidade do próprio indivíduo.

Temos, portanto, um conceito, ou melhor, uma forma de abordagem da sociedade em que esta é interpretada a partir da heterogeneidade dos focos de exercício do poder- saber sobre os indivíduos e sua vida cotidiana e em ligação e implicação com situações estratégicas mais amplas.

30 A transgenitalização consiste num procedimento cirúrgico de alteração do sexo genital de nascença para o

sexo desejado. Pode ser tanto a transformação do fenótipo masculino em feminino (neocolpovulvoplastia), quanto do fenótipo feminino para o masculino (neofaloplastia). O processo é marcado por acompanhamentos e diagnósticos multidisciplinares, médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo, assistente social, psicoterapias. Para maiores detalhes ver: ARAN, M. “A Transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero”. Ágora – Estudos em Teoria Psicanalítica, v.9, 2006.

O grande mérito teórico da analítica dos poderes de Foucault reside em sua capacidade de reconstruir historicamente, de modo minucioso e positivo, as relações tecidas entre racionalidade e estruturas políticas e institucionais na composição das formas de exercício do poder. De maneira que, a descrição do funcionamento das relações de poder e dos mecanismos de dominação e de sujeição dos indivíduos ganha vida e corpo em domínios e contextos sociais de interação concretos formados por agentes localizados e submetidos a uma situação estratégica mais ampla: acumulação da força de trabalho, medicalização da sociedade, normalização e disciplinamento das condutas. Desse modo, o tratamento das formas de dominação ao mesmo tempo em que proporciona o estudo micro e em ato do exercício do poder, conforme racionalidades variadas e específicas31 – racionalidade judiciária, médica, política, religiosa -, possibilita sua articulação com níveis macrossociológicos, tais como a emergência do sistema capitalista e do industrialismo ou a formação do indivíduo moderno e do Estado moderno com seus aparelhos de poder e burocracia e a gestão política da sociedade.

A noção de poder incide exatamente no plano cotidiano do mundo social, isto é, sobre os diversos domínios da vida imediata dos indivíduos. É esta dimensão que interessa prioritariamente, porque nela o que está em jogo não é exatamente a dominação econômica que separa o indivíduo do que ele produz ou a dominação social de classe, étnica, religiosa que priva os indivíduos de direitos e recursos materiais e ideais escassos relevantes, mas sim “a forma de individualização que liga o individuo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros” (FOUCAULT, 1995, p. 235).