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A eficácia das normas constitucionais segundo a classificação de José

3. A POSITIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: SUA PROTEÇÃO NA

3.1. A proteção da saúde no direito brasileiro

3.1.1. A eficácia das normas constitucionais segundo a classificação de José

Antes de estudarmos a eficácia dos dispositivos constitucionais que asseguram o direito à saúde, é necessário expor, ainda que brevemente, a classificação de José Afonso da Silva a esse respeito. Acreditamos que a classificação de José Afonso da Silva seja a que melhor se encaixa ao sistema constitucional brasileiro.

54 SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Ob. cit., p. 30.

55 “O TCF asseverou várias vezes que os direitos fundamentais, como normas objetivas, estatuem igualmente

uma ordem axiológica que vale como decisão constitucional fundamental para todas as áreas do Direito, e que, por isso, os direitos fundamentais não são apenas direitos de resistência (Abwchrrechte) do cidadão contra o Estado (BVerfGE 21, 362 [372] com outras referências). Quanto mais fortemente o Estado moderno se inclina à seguridade social e ao fomento cultural dos cidadãos, mais aparece, no contexto da relação entre cidadãos e Estado, a exigência complementar pela outorga de direito fundamental da participação (grundrechtliche Verbürgung der Teilhabe) em prestações estatais, ao lado do postulado original da garantia de direito fundamental da liberdade em face do Estado.”

56 Também nesse sentido entende o professor Vidal Serrano Nunes Junior: “O que se pode demarcar de tal

orientação jurisprudencial é que a teoria da reserva do possível não foi concebida para mitigar obrigações mínimas do Estado para com obrigações sociais essenciais, que, caudatárias da dignidade humana, não encontram possibilidade de restrição válida. Com efeito, em nenhum momento pensa-se na reserva do possível como instrumento de limitação do direito de acesso à assistência à saúde ou à educação básica, mas sim como instrumento conformador de demandas sociais, que, embora inerentes ao bem-estar social e necessárias à realização da personalidade, não se situam nesse limiar mínimo.” E, mais a frente, o professor conclui com brilhantismo: “concatenando-se a análise do direito positivo brasileiro aos pressupostos de realidade aos quais é aplicado, temos que a teoria da reserva do possível – em regra, evocada como argumento fazendário para objetar a realização de direitos essenciais à dignidade -, é de aplicação excepcional, circunscrita a discussões atinentes à realização de direitos sociais que extrapolem o conceito de mínimo vital e que não estejam incorporados por normas constitucionais atributivas de direitos públicos subjetivos a seus destinatários.” (NUNES JR., Vidal Serrano. Ob. cit., p. 176 e 196).

Segundo o autor, as normas constitucionais dividem-se em normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limita.

É importante frisar que, para José Afonso da Silva,

A orientação doutrinária moderna é no sentido de reconhecer eficácia plena e aplicabilidade imediata à maioria das normas constitucionais, mesmo a grande parte daquelas de caráter socioideológico, as quais até bem recentemente não passavam de princípios programáticos. Torna-se cada vez mais concreta a outorga dos direitos e garantias sociais das constituições57.

De fato, ao conferir eficácia plena às normas constitucionais, o Estado garante a proteção dos direitos fundamentais de seus cidadãos de forma mais incisiva. Os direitos e garantias sociais não ficam protegidos apenas na teoria. Em caso de descumprimento de algum deles, o Estado-juiz pode agir com mais rapidez.

As normas de eficácia plena são justamente essas normas de aplicabilidade imediata. Não há necessidade de auxílio de lei para exprimir seu completo significado. Essas normas já contêm todos os elementos e requisitos necessários para sua incidência direta.

Alguns exemplos de normas de eficácia plena estão contidos nos artigos 1º58, 4459, 7660 e 226,

§1º61.

O mesmo autor, analisando a Constituição Federal, sintetiza as características das normas de eficácia plena, afirmando que possuem essa eficácia as normas constitucionais que:

a) contenham vedações ou proibições; b) confiram isenções, imunidades e prerrogativas; c) não designem órgãos ou autoridades especiais a que incumbam especificamente sua execução; d) não indiquem processos especiais de sua execução; e) não exijam a elaboração de novas normas legislativas que lhes completem o alcance e o sentido, ou lhes fixem o conteúdo, porque já se apresentam suficientemente explícitas na definição dos interesses nelas regulados62.

57 Da SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed. São Paulo: Malheiros Editores,

2012, p. 87.

58 “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do

Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)”.

59 “Art. 44. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e

do Senado Federal.”

60 “Art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.” 61 “Art. 226. § 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.”

Já as normas constitucionais de eficácia contida são aquelas que fazem clara referência ao legislador ordinário como aquele que cumprirá a função de “restringir-lhes a

plenitude da eficácia”63. Ou seja, o legislador ordinário irá restringir o alcance dessas normas.

Um exemplo de norma de eficácia contida é o artigo 5º, XIII, que dispõe que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” (grifos nossos).

Ou seja, o legislador ordinário criará as qualificações profissionais necessárias a cada profissão, restringindo o alcance da norma contida na primeira parte do dispositivo (“é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão”). Estas normas, assim como as normas de eficácia plena, também têm aplicabilidade direta e imediata, uma vez que, para gerar efeitos, não ficam condicionadas a uma norma posterior, mas ficam dependentes de limites que serão impostos posteriormente.

José Afonso da Silva explica que algumas normas têm sua eficácia contida em razão dos “fins gerais e sociais do Estado moderno. Mas este, ao limitar a autonomia dos sujeitos privados, visa, essencialmente, a tutelar a liberdade de todos, de modo a que o

exercício dos direitos por uns não prejudique os direitos dos demais”64.

Quanto às normas constitucionais de eficácia limitada, segundo José Afonso da

Silva65, podem ser de dois tipos: 1) as definidoras de princípio institutivo ou organizativo; e 2)

as definidoras de princípio programático.

As normas definidoras de princípio institutivo são aquelas que indicam uma legislação posterior que irá completar seu significado. Como exemplo, temos o artigo 33 da Constituição Federal, que dispõe: “A lei disporá sobre a organização administrativa e judiciária dos Territórios.” Ou seja, o dispositivo constitucional prevê a existência de Territórios. Porém não o faz de maneira pormenorizada, cabendo à legislação inferior fazê-lo.

José Afonso da Silva assim as define:

63 Idem, p. 102. 64 Idem, p. 112. 65 Idem, p. 116.

São, pois, normas constitucionais de princípio institutivo aquelas através das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de estruturação e atribuições de órgãos, entidades ou institutos, para que o legislador ordinário os estruture em definitivo, mediante lei66.

As normas definidoras de princípio programático, por sua vez, são aquelas relacionadas aos princípios de direitos econômicos e sociais contidos na Constituição Federal. Dizem respeito tanto aos direitos dos trabalhadores como à estrutura da economia e ao estatuto dos cidadãos.

Uma Constituição que contém normas programáticas é chamada de constituição

dirigente67, pois busca, além de resguardar o presente, realizar um programa social para o

futuro, indicando os fins e objetivos do Estado. De fato, essas normas são o próprio conteúdo social das constituições.

Pontes de Miranda conceitua as normas programáticas como sendo aquelas

(...) em que o legislador, constituinte ou não, em vez de edictar regra jurídica de aplicação concreta, apenas traça linhas diretoras, pelas quais se hão de orientar os poderes públicos. A legislação, a execução e a própria justiça ficam sujeitas a esses ditames, que são como programas dados à função legislativa. (...) as Constituições contemporâneas receberam a sugestão da necessidade, por todos sentida, de se inserir nos textos constitucionais alguma coisa que dissesse para onde se vai e como se vai68.

Para José Afonso da Silva,

muitas normas são traduzidas no texto supremo apenas em princípio, como esquemas genéricos, simples programas a serem desenvolvidos ulteriormente pela atividade dos legisladores ordinários. São estas que constituem as normas constitucionais de princípio programático (...)69.

A Constituição Federal de 1988 está repleta de normas programáticas. Estas se concentram, principalmente, nos Títulos VII e VIII, podendo, todavia, aparecer em outros

66 Idem, p. 123.

67 “(…) a lei fundamental aproxima-se dum plano, em que a realidade se assume como tarefa tendente à

transformação do mundo ambiente que limita os cidadãos. Deste modo, a definição, a nivel constitucional, de tarefas econômicas e sociais do Estado, corresponde ao novo paradigma da constituição dirigente, embora se possa e deva discutir qual a “causa” deste “novo caráter” dos textos constitucionais.” (CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1982, p. 169).

68 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. 2ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

1970, p. 126 e 127.

pontos. São exemplos os artigos 17070 (norma contida no Título VII) e 19371-72 (norma contida no Título VIII).

Umas das questões mais polêmicas com relação às normas programáticas é a

respeito de sua juridicidade. Alguns autores73 negam juridicidade a esta norma. No Brasil,

porém, esta doutrina já está superada. Autores como Pontes de Miranda74, José Afonso da

Silva75, dentre outros, defendem a juridicidade dessas normas.

José Afonso da Silva sintetiza a aplicabilidade das normas programáticas da seguinte forma:

em conclusão, as normas programáticas têm eficácia jurídica imediata, direta e vinculante nos casos seguintes: I – estabelecem um dever para o legislador ordinário; II - condicionam a legislação futura, com a consequência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem; III – informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica, mediante a atribuição de fins sociais, proteção dos valores da justiça social e revelação dos componentes do bem comum; - IV – constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; - V – condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiciário; VI – criam situações jurídicas subjetivas, de vantagem ou de desvantagem (...)76.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, em famoso acórdão da lavra do Min. Celso de Mello, tratando especificamente do direito à saúde, assim se manifestou sobre a aplicabilidade das normas programáticas:

70 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios (...)”.

71 “Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça

sociais.”

72 Sobre os artigos 170 e 193 da Constituição Federal, transcritos acima, José Afonso da Silva nos ensina que

“esta é uma determinante essencial que impõe e obriga que todas as demais regras da constituição econômica sejam entendidas e operadas em função dela.” (Ob.cit., p. 139).

73 De acordo com José Afonso da Silva, Del Vecchio entende que as normas programáticas “impõem dever

propriamente moral, antes que jurídico.” (Idem, p. 149).

74 “As regras jurídicas programáticas são suscetíveis de cogência, desde logo, se o contrário não se conclui da

Constituição que a contém. Por isso mesmo, onde o princípio foi estabelecido suficientemente, se há de entender já inserto no sistema jurídico.” (MIRANDA, Pontes de. Ob.cit., p. 127)

75 “Ora, se elas impõem certos limites à autonomia de determinados sujeitos, privados ou públicos, se ditam

comportamentos públicos em razão dos interesses a serem regulados, nisso claramente se encontra seu caráter imperativo – imperatividade que se afere nos limites de sua eficácia, mas sempre imperatividade. (...) Significa que o fato de dependerem de providências institucionais para sua realização não quer dizer que não tenham eficácia. Ao contrário, sua imperatividade direta é reconhecida, como imposição constitucional aos órgãos públicos.” (Da SILVA, José Afonso. Ob.cit., p. 150 e 151).

o caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado77.

Os chamados instrumentos de eficácia das normas programáticas são meios de se

assegurar o cumprimento dos direitos fundamentais. Segundo José Afonso da Silva78 são dois

esses instrumentos: 1) o art. 5º, §1º79 da Constituição Federal; e 2) o mandado de injunção.

O artigo 5º, § 1º da Constituição Federal estabelece que as “normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Como vimos no capítulo anterior, os direitos sociais integram a chamada segunda dimensão dos direitos fundamentais. Portanto, eles também possuem aplicação imediata. No entendimento de José Afonso da Silva, essa norma significa que:

elas são aplicáveis até onde possam, até onde as instituições ofereçam condições para seu atendimento. Em segundo lugar, significa que o Poder Judiciário, sendo invocado a propósito de uma situação concreta nelas garantida, não pode deixar de aplicá-las, conferindo ao interessado o direito reclamado, segundo as instituições existentes80.

Ou seja, as normas programáticas que deveriam mas não foram complementadas por políticas públicas poderão ter sua incidência requerida em juízo. O Poder Judiciário, dessa forma, determinará o cumprimento dessas normas.

Nelson Nery Júnior tece os seguintes comentários sobre o artigo 5º, § 1º, de nossa Constituição:

O texto constitucional é por demais claro e evita a perenidade das normas programáticas no tocante aos direitos e garantias fundamentais. Todo e qualquer direito previsto na CF 5.º pode ser desde já invocado, ainda que não exista norma infraconstitucional que o regule (...)81.

77 STF, AG no RE n.º 271.286 – RS, rel. Min. Celso de Mello, j. 12 de setembro de 2000. 78 Da SILVA, José Afonso. Ob.cit., p. 161.

79 Que dispõe que: “Art. 5º. (...) § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação

imediata.”

80Da SILVA, José Afonso. Ob.cit., p. 161.

81 NERY JUNIOR, Nelson, Rosa Maria de Andrade Nery. Constituição Federal comentada e legislação

O outro instrumento de eficácia das normas programáticas, é o mandado de

injunção, previsto no artigo art. 5º, LXXI82. Esse instrumento constitucional tem como

objetivo garantir a concretização dos direitos e liberdades previstos na Constituição Federal.

O mandado de injunção tem dupla função83: a primeira, declarar a omissão inconstitucional; a

segunda, suprir essa omissão, tornando-se o mandado de injunção instrumento de eficácia das normas programáticas.

Sobre o mandado de injunção, Maria Cecília Cury Chaddad esclarece que:

buscou-se, assim, criar uma garantia funcional para suprir, através do Poder Judiciário, a carência de norma regulamentadora que viabilizasse o exercício de direitos, isto é, de uma forma para obtenção de uma ordem judicial com o fito de evitar que a inércia ou omissão do poder competente impedisse o gozo de direito ou liberdade constitucionalmente garantidos, mas dependentes de regulamentação84.

3.1.2 A saúde como um bem jurídico e a eficácia das normas que lhe dizem