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Fornecimento de medicamentos e outros insumos necessários

4. O DIREITO À SAÚDE NA JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA

4.5. Fornecimento de medicamentos e outros insumos necessários

4.5.1 Impossibilidade de alteração da prescrição médica pelo Poder Público

Especificamente sobre o fornecimento de medicamentos, há vários aspectos a serem considerados. Um deles é a impossibilidade de a autoridade pública, ré na demanda, contestar a prescrição médica. Esse é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

Outrossim, não cabe à autoridade coatora questionar o procedimento ou medicamento prescrito, uma vez que o profissional da área médica, além de ser responsável pelo tratamento recomendado, é a pessoa mais indicada para aferir qual a melhor forma de tratar as moléstias que acometem seus pacientes, levando em conta peculiaridades clínicas que não comportam discussão no âmbito deste mandado de segurança165.

Entendemos que, caso o magistrado profira decisão obrigando o Poder Público a fornecer o medicamento solicitado, deverá fazê-lo de acordo com a prescrição médica trazida aos autos. É que só o médico conhece as particularidades de cada paciente, sabe seu histórico médico e quais drogas lhe são compatíveis. Não cabe a ele (nem ao polo passivo da demanda) prescrever o melhor tratamento para o paciente. Também não caberia a outro médico, mesmo que perito do juízo, violar a independência funcional do colega.

4.5.2. Fornecimento de fraldas descartáveis e outros insumos necessários para a manutenção da saúde

Além de medicamentos, outros insumos são necessários para a manutenção da qualidade de vida e dignidade dos pacientes. O exemplo clássico é o fornecimento de fraldas descartáveis, tanto pediátricas quanto geriátricas. Há inúmeros casos de requisição desse tipo de insumo para os pacientes. A jurisprudência é praticamente unânime em deferir tais pedidos.

Nesse sentido:

165 TJSP, AI n.º 0088066-39.2012.8.26.0000, rel. Des. Amorim Cantuária, 3ª Câmara de Direito Público, j.

Descabe cogitar de que fraldas descartáveis não se enquadrem na espécie de insumos atinentes à saúde. A garantia constitucional à saúde assegura não apenas o acesso a medicamentos que visem à obtenção da cura das doenças, mas também, aos insumos que tenham o poder de amenizar os desconfortos e as dores decorrentes das moléstias. Dessa forma, é possível identificar o fornecimento de fraldas descartáveis como desdobramento do direito à saúde, constituindo medida de melhoria da qualidade de vida do enfermo, imprescindível na busca de bem-estar, conforto, e reintegração à vida social de forma digna e plena. Não equivale, portanto, a mero acessório de asseio pessoal166.

O STJ, em recurso que versava sobre o fornecimento de fraldas, atribuiu recentemente eficácia erga omnes em ação civil pública destinada a garantir o fornecimento de fraldas descartáveis a portadores de doenças que necessitem desse insumo e não tenham

condições de arcar com seu custo. Essa importante decisão foi unânime167.

Outro insumo comumente solicitado pelos pacientes é a dieta enteral168. O

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo refuta a tese da Fazenda Pública de que a dieta enteral não seja considerada alimento, e que, portanto, não deveria ser fornecida pelo Estado. Em decisão de lavra do Desembargador José Luiz Germano o TJSP assim se posicionou sobre o caso: “ora, é evidente que a alimentação especial devidamente prescrita por profissional

especializado, possui natureza medicamentosa”169.

Por fim, recentemente o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deu provimento a pedido de fornecimento de cadeira de rodas motorizada. De acordo com o

166 TJSP, Ap n.º 03715836020098260000, rel. Des. Aroldo Viotti, 11ª Câmara de Direito Público, j. 18.12.2012,

v.u.. No mesmo sentido: “E não se nega que cabe ao Estado prover o que for necessário para garantir o direito à saúde bem como a proteção e amparo aos portadores de deficiência A lei é ampla e nela se inclui o fornecimento de equipamentos que permitam ao deficiente a integração social” – (TJSP, AI n.º 731.150-5/8-00, rel. Des. Reinaldo Miluzzi, 10ª Câm. de Dir. Público, j. 25.02.2008, v.u.). Ainda nesse sentido: “Ademais, não merece prosperar a alegação que exclui o fornecimento de fraldas geriátricas, a pretexto de não ser um medicamento. Ora, a higiene reflete, indubitavelmente, na saúde do paciente, sendo insumo necessário à manutenção da própria higidez física, ao evitar a contaminação com fezes e urina. Trata-se, pois, de insumo de fundamental importância à prevenção de doenças, mormente no caso da apelada.” (TJSP, Ap. n.º 886.327-5/2-00, rel. Des. Fermino Magnani Filho, 5ª Câm. de Dir. Público, j. 30.11.2009, v.u..). Veja também: TJSP, Ap. n.º 0005584- 49.2011.8.26.0362, 11ª Câm. de Dir. Público, rel. Des. Aroldo Viotti, j. 2.4.2012, v.u.

167 “Desse modo, os efeitos do acórdão em discussão nos presentes autos são erga omnes, abrangendo a todas as

pessoas enquadráveis na situação do substituído independentemente da competência do órgão prolator da decisão. Não fosse assim, haveria graves limitações à extensão e às potencialidades da ação civil pública, o que não se pode admitir.”(STJ, Resp. n.º 1377400 – SC, 2ª Turma, rel. Min. OG Fernandes, j. 18 de fevereiro de 2014, v.u.).

168 A nutrição enteral é definida pelo art. 8º da Portaria n.º 120, de 14 de abril de 2009, do Ministério da Saúde,

como a “formula nutricional completa, administrada através de sondas nasoentérica, nasogástrica, de jejunostomia, ou de gastrotomia.”

169 TJSP, AP. n.º 0001916-27.2011.8.26.0053, rel. Des. José Luiz Germano, 2ª Câm. de Dir. Público, j. 15 de

entendimento do Desembargador Luís Francisco Aguilar Cortez, relator do caso, a enfermidade do paciente (tetraplégico) e sua atual condição clínica (desconforto na região dorsal e atrofia muscular generalizada, especialmente nas mãos) caracterizam a

excepcionalidade da situação e a necessidade do provimento do pedido170. Essa não é a

primeira decisão do TJSP nesse sentido. Em diversos casos semelhantes a Corte paulista entendeu que cadeiras de rodas motorizadas são necessárias e as mais adequadas ao estado de

saúde dos pacientes171.

4.5.3. Fornecimento de medicamentos de alto custo e tratamentos experimentais

Ainda, o STF já se manifestou em várias oportunidades sobre medicamentos e tratamentos de custo muito elevado e/ou que ainda não sejam registrados na ANVISA. Um caso interessante apreciado pelo STF no que se refere ao fornecimento de medicamentos foi a

Suspensão de Tutela Antecipada n.º 613172, relatado pelo Ministro Ayres Britto. Neste caso, o

Estado do Rio de Janeiro requereu a suspensão da tutela antecipada concedida pela 7ª Vara da Fazenda Pública do Rio de Janeiro/ RJ e mantida pela 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro/ RJ.

O autor, portador de Hemoglobinúria Paraxística Noturna (HPN)173, ajuizou ação

requerendo o fornecimento do medicamento “Eculizumabe” (Soliris). Este medicamento, que é considerado o medicamento mais caro do mundo, não é registrado na ANVISA e só pode ser encontrado no exterior. Porém, é o tratamento mais indicado para essa doença.

O Estado do Rio de Janeiro alegou que o fornecimento desse medicamento, imposto pelo TJRJ, poderia causar “grave lesão à ordem, saúde e economia públicas.” Aduzia, ainda, que o medicamento possui custo elevadíssimo, e que, mesmo assim, seria incapaz de curar a doença do autor, além de não estar incorporado ao padrão das unidades públicas, nem possuir autorização da ANVISA.

170 TJSP, AP. n.º 0040295-28.2012.8.26.0562, rel. Des. Luís Francisco Aguilar Cortez, 1ª Câm. de Dir. Público,

j. 28 de janeiro de 2014, v.u..

171 Ap. n.º 0008697-32.2007.8.26.0659, rel. Des. José Luiz Germano, j. 11 de fevereiro de 2014; Ap. n.º

0004776-49.2009.8.26.0189, rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, j. 11 de dezembro de 2013 e AI. n.º 0132473- 96.2013.8.26.0000, rel. Des. Luís Francisco Aguilar Cortez, j. 12 de novembro de 2013, todas do TJSP.

172 STF, STA n.º 613, Min. Ayres Britto, j. 10.10.12.

Todavia, sem esse tratamento, a doença pode desencadear anemia, trombose, insuficiência renal crônica, hipertensão pulmonar, insuficiência hepática, acidente vascular cerebral e a morte do paciente.

Em sua decisão, o Ministro Ayres Britto teceu a seguinte consideração: “no sopesar dos valores, portanto, a balança da justiça pende, a meu ver, para o lado da vida e saúde humanas, ainda que as lesões à ordem e economia públicas não sejam desprezíveis.”

No mesmo sentido é a Suspensão de Tutela Antecipada n.º 223174. Neste caso, foi

solicitado o pagamento, pelo Estado de Pernambuco, de um tratamento experimental que consistia em uma cirurgia de implante de marca-passo diafragmático muscular (MDM) que possibilitaria ao autor da demanda respirar sem a dependência de respirador mecânico. O procedimento, que custaria 150 mil dólares, ainda estava em fase experimental e não havia sequer sido aprovado pelo FDA (Food and Drugs Agency – órgão fiscalizador e regulador de medicamentos e alimentos dos EUA).

Os advogados do autor da demanda, além de alegarem a responsabilidade do Estado pela efetivação do direito à saúde e integridade física do autor, alegaram que houve responsabilidade civil do Estado de Pernambuco pela impossibilidade de o autor respirar sem aparelhos, já que ele havia sido vítima de assalto em um local considerado perigoso e sem a devida fiscalização por parte das autoridades públicas. Também neste caso, o STF decidiu pela manutenção da sentença que condenou o Estado a cobrir os custos necessários à cirurgia.

Outro pedido recorrente na Corte Estadual paulista é o de realização gratuita do exame de genotipagem. Esse exame, que deve ser feito por portadores do vírus do HIV, avalia o desenvolvimento da resistência aos medicamentos anti-retrovirais, tornando mais eficiente o tratamento do paciente. Geralmente, junto com o pedido de realização desse exame, é formulado o pedido de fornecimento de outra droga mais moderna, integrante da chamada “segunda geração do coquetel de medicamentos”.

174 STF, STA n.º 223, Min. Ellen Gracie, j. 12.03.08. No mesmo sentido é Suspensão de Tutela Antecipada n.º

198, que indeferiu o pedido do Estado do Paraná para suspender os efeitos de decisão que determinara o fornecimento de medicamento, orçado em mais de um milhão de reais anuais, à criança portadora de doença genética rara e degenerativa. O medicamento, de acordo com os atestados médicos fornecidos, era a única esperança de melhora para o paciente e a suspensão do tratamento poderia comprometer seu desenvolvimento físico. (STF, STA n.º 198, Min. Gilmar Mendes, j. 22.12.2008.)

Essa nova geração de tratamento já está registrada na ANVISA, e, de fato, tem se mostrado mais eficiente para o tratamento do HIV/AIDS. Todas as decisões encontradas

concedem o novo tratamento gratuitamente175. Ressalte-se que, no caso da AIDS, a Lei n.º

9.313/96 prevê, em seu artigo 1º, que “os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento.”

Assim, a negativa do Poder Executivo, tanto Municipal, Estadual ou Federal, em conceder gratuitamente essa nova geração de medicamentos anti-retrovirais é ilegal, além de ferir o princípio da eficiência, previsto no artigo 37, caput, da Constituição Federal, sendo, portanto, também inconstitucional.

Por fim, importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já concedeu provimento a pedido de custeio do valor gasto com passagens aéreas para tratamento médico

em São Paulo de cidadão vindo do Rio de Janeiro176.

No Capítulo 5 trataremos de caso semelhante, em que a Corte Constitucional da Colômbia, dez anos antes da decisão proferida pelo STF, determinou que o sistema de seguridade social do país pagasse tratamento médico nos Estados Unidos da América a garota que sofria de leucemia e que precisava de um transplante considerado complexo, impossível de ser realizado naquele país. Como veremos, além de pagar o tratamento, o governo colombiano foi condenado a pagar as despesas com transporte aéreo para a paciente e a um de seus genitores e a fornecer uma determinada quantia em dinheiro para cobrir eventuais despesas.

Podemos notar, então, que o STF está em sintonia com uma das Cortes Constitucionais mais garantistas da América Latina e do mundo. A diferença entre os dois casos residia na possibilidade de o Brasil fornecer o tratamento pleiteado. No caso da

175 Ver TJSP, Ap. n.º 348.286-5/0-00, 11ª Câm. de Dir. Público, rel. Des. Aroldo Viotti, j. 17.05.2008, v.u.;

TJSP, Ap. n.º 412.735-5/1-00, 3ª Câm. de Dir. Público, rel. Des. Antonio C. Malheiros, j. 07.10.2008, v.u.; e TJSP, A.I. n.º 743.327-5/9-00, 11ª Câm. de Dir. Público, rel. Des. Aroldo Viotti, j. 11.02.2008, v.u..

176 “Por outro lado, a irresignação do agravante em relação ao custeio das passagens aéreas para o Estado de São

Paulo, onde é feito o tratamento da agravada, não merece prosperar, uma vez que não arguida em tempo oportuno. Com efeito, depreende-se do acórdão recorrido que o magistrado de primeiro grau “acolheu o pedido de custeio das viagens de avião a São Paulo, vez que o apelante não contestou tal pedido” (fl. 18)”. (STF, Ag.Reg. no AI n.º 486.816 – 1/ RJ, rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, j. 12.04.2005, v.u..)

Colômbia, houve a necessidade de o governo pagar um tratamento no exterior pois este não

estava disponível no país177.

Vemos, portanto, que em casos como estes, o requisito “medicamento de fácil acesso no mercado interno”, mencionado pelo Desembargador Ferraz de Arruda, é deixado de lado em razão da grave ameaça à saúde e vida dos pacientes. São casos extraordinários, mas percebemos que os juízes só aceitam tais pedidos quando houver a comprovação de que, embora experimental, o tratamento tenha grandes chances de êxito.