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5. O DIREITO À SAÚDE NAS JURISPRUDÊNCIAS INTERNACIONAL E

5.2 Sistemas Regionais

5.2.1 Comissão Interamericana de Direitos Humanos

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) foi criada em 1959 como decorrência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. A CIDH “é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA) encarregado da promoção e proteção dos direitos humanos no continente americano”, conforme se extrai do

sítio eletrônico da Organização dos Estados Americanos (OEA)192. Em 1965 a CIDH foi

autorizada expressamente a receber e processar denúncias ou petições sobre casos nos quais se alegava violação aos direitos humanos. Extrai-se, dessa mesma fonte, que, até dezembro de 2011, foram processados ou estavam em processamento pela CIDH 19.423 casos.

A respeito da jurisprudência da CIDH sobre o direito à saúde, Tara J. Melish afirma:

(...) a Comissão tem sido particularmente ativa a respeito no julgamento de petições individuais envolvendo o direito à saúde. Os casos envolvendo o direito à saúde considerados até o momento pela Comissão, no entanto, tendem a se enquadrar em quatro grandes categorias (...). O mais antigo conjunto de casos envolvendo o direito

192 Informação disponível no site: < http://www.oas.org>, acesso em 06 de agosto de 2013. Além dessa

competência, a CIDH também realiza visitas a países membros da OEA para observar a situação geral ou particular dos direitos humanos na região.

à saúde solucionados pela Comissão envolveram comunidades indígenas. (...) Um segundo conjunto de casos envolvendo o direito à saúde surgiu quando pessoas custodiadas pelo Estado requerem assistência médica e o Estado falha, negligentemente, imprudentemente ou intencionalmente em fornecê-la. (...) Um terceiro, intimamente ligado [ao segundo] envolve o dever do Estado de garantir condições gerais de saúde, higiene e saneamento em prisões ou instalações de custódia. (...) Um quarto conjunto de casos, ainda em estágio inicial de desenvolvimento jurisprudencial pela Comissão, surge na medida em que indivíduos que não estão em custódia do Estado necessitam de prestação de medicamentos, serviços médicos ou outros bens relacionados à saúde diretamente do governo porque essas pessoas não tem condições de adquiri-los para si193.

Detemo-nos, nesse trabalho, especificamente aos casos relacionados ao fornecimento de medicamentos ou serviços médicos.

De acordo com a citada autora, grande parte dos casos processados pela CIDH estão relacionados ao fornecimento de medicamentos para tratamento do vírus HIV/ AIDS – e isto pode ser constatado também por meio de pesquisa realizada no sítio eletrônico da CIDH, segundo a qual, até o momento, declarou admissíveis (e, portanto, passíveis de processamento) apenas três casos: Odir Miranda v. El Salvador, Luis Rolando Cuscul Pivaral v. Guatemala e Andrea Mortlock v. United States.

O primeiro caso, Odir Miranda v. El Salvador194, teve início em 24 de janeiro de

2000, quando a CIDH recebeu petição de Jorge Odir Miranda Cortez e outras 26 pessoas portadoras do vírus HIV/AIDS alegando violação, pelo Estado de El Salvador, dos artigos 4 (direito à vida), 5 (tratamento humano), 24 (igual proteção perante a lei) e 26 (direitos econômicos, sociais e culturais), em conformidade com os artigos 1º(1) (respeito e garantia aos direitos e liberdades, sem distinção de qualquer natureza) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno). Alegaram, ainda, violação ao artigo 10º, atinente ao direito à saúde, do Protocolo Adicional à Convenção Interamericana de Direitos Humanos na área dos Direitos

193 Tradução livre de: “(...) the Commission has been particularly active in adjudicating individual complaints

involving the right to health. (…) The right-to-health cases considered to date by the Commission nonetheless tend to fall into four broad categories (…). The earliest set of right-to-health cases resolved by the Commission have involved indigenous communities. (…) A second set of right-to-health cases has arisen where persons in state custody require medical attention and the State fails negligently, recklessly or intentionally to provide it. (…) A third, closely related set of cases involves the State duty to ensure general conditions of health, hygiene and sanitation in prison or custodial facilities. (…) A fourth set of cases, still in initial stages of jurisprudential development by the Commission. Arises where individuals who are not in state custody need direct provision of medications, medical services or other health-related goods from the government because they are unable to provide for themselves.” (MELISH, Tara J., “The Inter-American Commission on Human Rights”. In LANGFORD, Malcolm. Social Rights Jurisprudence: Emerging Trends in International and Comparative Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 351 a 354).

194 Caso n.º 12.249, disponível em

<http://cidh.org/annualrep/2000eng/ChapterIII/Admissible/ElSalvador12.249.htm >, acesso em 07 de agosto de 2013.

Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador). Os requerentes pugnavam,

ainda, pela tomada de “medidas de precaução”195, pela CIDH, em razão da gravidade e

urgência do caso.

A CIDH admitiu o processamento do caso, e, no relatório final, afirmou que houve falha de El Salvador – e, consequentemente, responsabilidade internacional em garantir proteção judicial a seus cidadãos.

Porém, no que se refere ao direito à saúde, a CIDH afirmou que o Estado de El Salvador “tomara as medidas razoavelmente disponíveis para fornecer tratamento médico para as pessoas incluídas no registro [do governo]. A CIDH considera que as ações do Estado eram suficientemente rápidas, dentro das circunstâncias, para atingir o objetivo de maneira eficaz. Não se pode falar, portanto, de uma violação direta do direito à saúde de Odir Jorge

Miranda Cortez e de outras 26 pessoas identificadas no processo 12.249”196.

Ainda, a CIDH fez recomendações ao Estado de El Salvador no sentido de dar reparação adequada aos autores da ação pelas violações aos direitos humanos. Além disso, acompanhou de perto a evolução das políticas públicas de El Salvador no que se refere ao fornecimento de medicamentos à população carente.

O segundo caso admitido pela CIDH, Luis Rolando Cuscul Pivaral et al. v. Guatemala197, teve início em 26 de agosto de 2003 com o protocolo de petição alegando que o Estado da Guatemala teria falhado no reconhecimento do direito fundamental de vários

cidadãos198, dentre eles Luis Rolando Cuscul Pivaral, ao não fornecer a medicação

antirretroviral. Foram requeridas “medidas de precaução” aos 39 autores da ação. Essas

195 As chamadas “medidas de precaução” serão estudadas adiante neste tópico.

196 CIDH: Informe N°27/09. Fondo. Caso 12.249. Jorge Odir Miranda Cortez y otros vs. El Salvador. 20 de

marzo de 2009, par. 108.

197 Petição n.º 642/03, disponível em http://www.cidh.oas.org/annualrep/2005eng/Guatemala642.03eng.htm,

acesso em 7 de agosto de 2013.

198 Rolando Cuscul Pivaral, Francisco Sop Gueij, Corina Robledo, Petrona López González, Aracely Cinto, Olga

Marina Castillo, Israel Pérez Charal, Karen Judith Samayoa, Juana Aguilar, Darinel López Montes de Oca, Luis Rubén Álvarez Flores, Audiencio Rodas, Luis Edwin Cruz Gramau, Martina Candelaria Álvarez Estrada, Maria Felipe Pérez, Sayra Elisa Barrios, Felipe Ordóñez, Santos Isacax Vásquez Barrio, Ismera Oliva García Castañon, Guadalupe Cayaxon, Sandra Lisbeth Zepeda Herrera, Cesar Noe Cancinos Gómez, Santos Vásquez Oliveros, Maria Vail, Julia Aguilar, Sebastián Emilia Dueñas, Zoila Pérez Ruiz, Santiago Valdez, Pascula de Jesús Mérida, Iris Carolina Vicente Baullas, Reina López Mújica, Marta Alicia Maldonado PAC, José Cupertino Ramírez, José Rubén Delgado, Elsa Miriam Estrada, Ismar Ramírez Chajón, Félix Cabrera, Silvia Mirtala Álvarez, Facundo Gómez Reyes (falecido no dia 27/02/2003).

medidas foram tomadas em dois estágios: incialmente, para 12 deles, e, subsequentemente, para todos os outros.

Os autores alegaram que, ao deixar de fornecer a medicação solicitada, o Estado da Guatemala teria violado os seguintes artigos da Convenção Interamericana de Direitos Humanos: artigo 4 (direito à vida), 5 (direito a um tratamento humano), 8 (direito a um julgamento justo), 24 (direito a um tratamento igualitário perante a lei), 25 (direito a proteção judicial) e 26 (direito ao desenvolvimento progressivo dos direitos Econômicos, Sociais e Culturais), em conjunto com o artigo 1(1) (obrigação de respeitar direitos) da Convenção.

A CIDH reiterou a obrigação de desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais e culturais, afirmando que “no que se refere à alegada violação do artigo 26 da Convenção Americana, a Comissão considera que quando se tratar do direito à saúde há uma obrigação de cumprimento progressivo, e isto se refere ao direito a saúde em geral, tanto

curativa quanto preventiva e cuja atenção é devida a toda a população”199.

Ainda que indireto, o terceiro caso referente a direito e acesso a medicamentos foi Andrea Mortlock v. United States200, recebido pela CIDH em 15 de agosto de 2005. Andrea Mortlock era uma cidadã jamaicana portadora do vírus HIV/AIDS e seria deportada dos Estados Unidos da América. Essa deportação teria como resultado a interrupção do tratamento medicamentoso contra o HIV/AIDS.

Quatro dias após o recebimento da petição, a CIDH já tomava medidas de precaução ao requerer que os EUA não a deportassem até o final do julgamento.

A petição alegava descumprimento aos artigos 11 (direito à saúde) e 26 (direito ao processo regular) da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Devido às circunstâncias excepcionais do caso, a CIDH decidiu admitir o caso e julgá-lo na mesma sessão.

199 Petição 642-03. Admissibilidade. Luis Rolando Cuscul Pivaral y otras personas afectadas por el VIH/SIDA

vs. Guatemala. 7 de março de 2005, par. 42.

200 Relatório nº 63/08. Caso n.º 12.534. Admissibilidade e mérito (publicação). Andrea Mortlock v. United

A senhora Andrea Mortlock era uma paciente em estado terminal que, por residir por mais de 30 anos nos EUA, não tinha médicos, familiares, amigos ou conhecidos na Jamaica que pudessem oferecer cuidados paliativos a ela. Além disso, foi alegado que, na Jamaica, pacientes portadores do vírus HIV/AIDS sofrem discriminação, o que poderia colocar a segurança da senhora Andrea Mortlock em risco.

Os EUA, por sua vez, alegaram que o governo da Jamaica oferece o tratamento antirretroviral, porém, os pacientes devem pagá-lo com seus próprios recursos. Alegaram ainda que o fato de as circunstâncias serem menos favoráveis no país de origem da autora não autorizaria concluir por uma “deportação desumana”.

A CIDH conclui que, tendo em vista as circunstâncias do caso, a ordem de deportação da senhora Andrea Mortlock constituiria violação ao artigo 26 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, na medida em que lhe imporia pena cruel. A CIDH recomendou aos EUA que evitasse sua deportação.

A análise dessas decisões mostra a importância que os direitos econômicos, sociais e culturais adquiriram para a CIDH. Ao mesmo tempo mostra o quanto os Estados, principalmente da América Latina, ainda precisam evoluir no que se refere ao fornecimento de medicamentos.

Organizações internacionais como a OEA têm o dever de observar de perto a evolução dos países no que se refere às políticas públicas na área da saúde e de fornecer suporte para o desenvolvimento progressivo do direito à saúde, bem como todos os outros direitos econômicos, sociais e culturais.

Sobre as decisões da CIDH, Gonzalo Aguilar Cavallo entende que

(...) a Comissão desenvolveu extensivamente seus ensinamentos afirmando, por um lado, a juridicidade e exigibilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais e reiterando, por outro lado, princípios chaves para a consolidação desses direitos, tais como a obrigação de desenvolvimento progressivo e a proibição do retrocesso201.

201 CAVALLO, Gonzalo Aguilar. La Comisión Interamericana de Derechos Humanos y el Desafio de la

Justiciabilidad de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Fortaleza, Ceará, vol. 12, n.º 12, 2012, p. 168.

Além desses três casos, é necessário ressaltar a importância das chamadas “medidas de precaução” tomadas pela CIDH para casos urgentes. Essas medidas de precaução, nas palavras de Tara J. Melish são “solicitações urgentes, diretamente a um Estado membro da OEA, para a tomada de medidas cautelares imediatas em ‘casos sérios e urgentes

e quando necessário (...) para prevenir danos irreparáveis a pessoas’”202.

Em razão de sua natureza de urgência, essas “medidas de precaução” não requerem o exaurimento dos remédios (judiciais ou administrativos) internos. Elas permitem uma resposta rápida da CIDH a potenciais violações a direitos humanos.

No que se refere ao fornecimento de medicamentos, entre 2000 e 2002, a CIDH tomou “medidas de precaução” em favor de mais de 400 pessoas portadoras do vírus do

HIV/AIDS, em 10 Estados membros da OEA203.

Essas medidas, porém, são muito controversas dentro da OEA. Após 2002, a quantidade de “medidas de precaução” caiu drasticamente em razão das exigências que passaram a ser feitas pela CIDH para o fornecimento de medicamento. Em 2004, por exemplo, só 39 pessoas foram beneficiadas por essas medidas de precaução na Guatemala, em razão do fornecimento inadequado de medicamentos à população pelo sistema público de saúde204.