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Orçamento estatal, fornecimento de medicamento e separação de

4. O DIREITO À SAÚDE NA JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA

4.6. Orçamento estatal, fornecimento de medicamento e separação de

Os que combatem a ideia de o Poder Judiciário obrigar o Poder Executivo a fornecer medicamentos argumentam, basicamente, que esta seria uma forma de ingerência excessiva do Poder Judiciário sobre os outros poderes e que o cumprimento dessas decisões comprometeria as finanças públicas. Afirmam que não caberia ao Poder Judiciário definir a destinação do orçamento público e que essas decisões comprometeriam o orçamento. O segundo argumento é consequência direta do primeira e analisaremos o porquê de ambos serem improcedentes.

Inicialmente, cumpre-nos analisar a Teoria da Separação dos Poderes, desenvolvida por Montesquieu em seu livro “O Espírito das Leis”, no qual proferiu a célebre frase:

Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos princípios ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos178.

A partir dessa afirmação foi construída uma poderosa doutrina que se tornou

fundamental para a instalação de regimes democráticos de governo179. O princípio da

177 Porém, como vimos anteriormente neste item, o STF já teve a oportunidade de se manifestar sobre a

possibilidade de se exigir do Estado o pagamento de tratamentos experimentais realizados no exterior, ocasião em que manteve decisão obrigando um governo estadual a efetuar o pagamento de despesas para cobrir os gastos do paciente.

178 MONTESQUIEU, Barão de, Do espírito das leis. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962, v. 1, p. 181. 179 Embora a doutrina da separação dos poderes seja comumente ligada à Montesquieu, já na Antiguidade se

falava disso. Paulo Bonavides nos ensina que “Distinguira Aristóteles a assembléia-geral, o corpo de magistrados, e o corpo judiciário. Marsílio de Pádua no Defensor Pacis já percebera a natureza das distintas funções estatais e por fim a Escola de Direito Natural e das Gentes, com Grotius, Wolf e Puffendorf, ao falar em

separação dos poderes, tal como formulado por Montesquieu, consta também da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que prevê em seu artigo XVI que “qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação

dos poderes não tem Constituição”180.

Essa teoria, em sua forma mais pura, foi mitigada pelo mecanismo chamado “checks and balances”, também chamado de sistema de “freios e contrapesos”, desenvolvido

pelo inglês Bolingbroke também no século XVIII181. O sistema de freios e contrapesos nada

mais é do que o controle recíproco entre os poderes. É a possibilidade de um poder restringir a atuação do outro, para que não haja abuso do poder.

Em nossa Constituição, o princípio da separação de poderes está previsto no artigo 2º, que estabelece que os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são “independentes e harmônicos entre si”. Esta previsão constitui um dos princípios fundamentais da República e constitui cláusula pétrea, de acordo com o artigo 60, §4º, III. Já o sistema de sistema de freios e contrapesos permeia todo o texto constitucional, e.g., fazendo-se presente na possibilidade de o Executivo vetar leis e atos normativos elaborados pelo Legislativo (art. 84, V, CF), ou na indicação, pelo Presidente da República, dos Ministros das mais altas cortes do país, o STF e o STJ (art. 84, XIV, CF).

O Legislativo, por sua vez, atua para conter o Executivo quando, por exemplo, rejeita o veto proposto pelo Executivo ou inicia um processo de impeachment contra algum membro do Executivo (art. 52, I, CF). Será um contrapeso ao Judiciário ao legislar sobre ele, determinando-lhe o número de membros, restringindo a jurisdição dos Tribunais e ao julgar os Ministros do STF e STJ (arts. 92 a 126, CF).

partes potentials summi imperii, se aproximara bastante da distinção estabelecida por Montesquieu. (…) Locke, menos afamado que Montesquieu, é quase tão moderno quanto este, no tocante à separação de poderes. Assinala o pensador inglês a distinção entre os três poderes – executivo, legislativo e judiciário – e reporta-se também a um quarto poder: a prerrogativa. Ao fazê-lo, seu pensamento é mais autenticamente vinculado à Constituição inglesa do que o do autor de Do Espírito das Leis.” (BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 158)

180 Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, disponível em <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-

conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf>, acesso em 1º de março de 2014.

181 “Como a natureza das coisas não permite a imobilidade dos poderes, mas o seu constante movimento –

lembra o profundo pensador – são eles compelidos a atuar ‘de concerto’, harmômicos, e as faculdades enunciadas de estatuir antecipam já a chamada técnica dos checks and balances, dos pesos e contrapesos (...).” (BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 162).

Por fim, o Judiciário atua claramente como um freio aos outros dois poderes quando julga inconstitucionais atos executivos e leis, ou então omissões dos Poderes Públicos quando estes deveriam ter agido (art. 102, I, ‘a’, CF).

Nesse sentido é a lição de Celso Ribeiro Bastos:

Assim, a função típica do Legislativo é legislar, a do Executivo administrar e a do Judiciário, exercer a jurisdição. Ao lado contudo de sua função típica, os Poderes exercem sempre, em pequena proporção, função que originariamente pertenceria a outro. E isto se dá com vistas a dois objetivos. Em primeiro lugar, assegurar a própria autonomia institucional, que ficaria prejudicada caso o Executivo, a pretexto de lhe ser própria a função administrativa, quisesse administrar o próprio Poder Judiciário ou o Legislativo. Este exercício de função atípica, estabelecido pela Constituição, objetiva em última análise a tornar viável a própria separação orgânica pretendida por Montesquieu. É em função dessa preocupação que se prefere mesclar o exercício das funções, do ponto de vista material, ressalvando-se, entretanto, a separação orgânica, a assegurar uma rígida distinção funcional que acarretaria a própria destruição do sistema. De outra parte, almeja-se que um Poder exerça, em última instância, um controle sobre o outro, para evitar o arbítrio e o desmando182.

Ao proferir decisões obrigando o poder público a fornecer tratamentos, medicamentos e outros insumos, o Poder Judiciário, além de garantir o cumprimento dos direitos fundamentais, atua como fiscal do poder exercido pelo Executivo, ao ditar uma certa margem de contenção à sua atuação. Essa limitação prestigia os direitos fundamentais dos cidadãos e garante o cumprimento dos deveres da administração pública.

Nesse sentido:

A outorga de competência a uma instância jurisdicional para a aferição da compatibilidade do direito ordinário com norma superior, levada a efeito pela Lei Fundamental, não constitui obra do acaso, mas é uma consequência do princípio do Estado de Direito, que exige um controle jurisdicional, isto é, um controle independente183.

Também nesse sentido é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, expresso na decisão proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 45-9:

182 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 142

183 KIMMINICH, Otto. Jurisdição Constitucional e Princípio da Divisão de Poderes. CLÈVE, Clèmerson

Merlin e BARROSO, Luís Roberto (org.) Doutrinas Essenciais: Direito Constitucional – Constituição Financeira, Econômica e Social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, vol. IV, p. 1028.

É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário e nas desta Suprema Corte, em especial a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 207, item 5, Coimbra: Almedina, 1987), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Cabe assinalar, presente esse contexto – consoante já proclamou esta Suprema Corte – que que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política ‘não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei do Estado’184.

Costuma-se usar o termo “ativismo” em caráter pejorativo, afirmando-se que o Poder Judiciário praticaria ingerência abusiva sobre os demais poderes. Nesse sentido:

(...) precisamos repensar nossa situação jurídica e os discursos românticos da virtude e sensibilidade de nossos decisores, sob pena de com o rótulo de um idílico ativismo judicial se implementar uma verdadeira juristocracia185.

184 STF, ADPF n.º 45-9, decisão monocrática proferida pelo Ministro Celso de Mello em 29 de abril de 2004.

Veja ainda: “Tal discussão vem se tornando importante em países como a África do Sul, Etiópia, Índia entre outros, ao discutir o papel da via judicial e processual para a obtenção de direitos fundamentais pelos grupos e camadas sociais marginalizados ou que não obtêm espaço nas arenas públicas institucionalizadas (como v.g. os Parlamentos) para defesa de seus direitos. O processo judicial como espaço contramajoritário de obtenção de direitos fundamentais. (...) Não podemos nos olvidar da crise do Poder Judiciário. E este problema se torna um dos mais graves quando se discute a tendência, posterior à Constituição da República de 1988, de utilização do Judiciário como compensador dos déficits de funcionalidade dos demais Poderes. Não nos esqueçamos que, ao se inserir no ‘novo’ constitucionalismo, o Brasil consagra, mais do que nunca, o acesso (amplo) à justiça como um direito fundamental. Sabe-se que no quadro da tripartição de funções quando qualquer deles não cumpre, com eficiência, seu papel institucional, ocorre uma compensação sistêmica que em nosso país costuma se atribuir ao Judiciário. (...) E assim a teoria da separação dos poderes (art. 2º da CF/1988) muda de feição, passando a ser interpretada da seguinte maneira: o Estado é uno e uno é seu poder. Exerce ele seu poder por meio de formas de expressão (ou Poderes). Para racionalização da atividade estatal, cada forma de expressão do poder estatal exerce atividade específica, destacada pela Constituição. No exercício de tais funções é vedado às formas de expressão do poder estatal interferência recíproca: é este o sentido da independência dos poderes. (...) Diante dessa nova ordem, denominada de judicialização da política, contando com o juiz como co-autor das políticas públicas, fica claro que sempre que os demais poderes comprometerem a integridade e a eficácia dos fins do Estado – incluindo as dos direitos fundamentais, individuais ou coletivos – o Poder Judiciário deve atuar na sua função de controle.” (CANELA JR. Oswaldo. A efetivação dos direitos fundamentais através do processo coletivo: um novo modelo de jurisdição. Tese (Doutorado). APUD GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário. CLÈVE, Clèmerson Merlin e BARROSO, Luís Roberto (org.) Doutrinas Essenciais: Direito Constitucional – Constituição Financeira, Econômica e Social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, vol. IV, p. 733 a 737.)

185 THEODORO Jr., Humberto, NUNES, Dierle, BAHIA, Alexandre. Breves considerações sobre a politização

do judiciário e sobre o panorama de aplicação no Direito Brasileiro. CLÈVE, Clèmerson Merlin e BARROSO, Luís Roberto (org.) Doutrinas Essenciais: Direito Constitucional – Constituição Financeira, Econômica e Social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, vol. IV, p. 738.

Com a devida vênia à opinião dos autores, não se pode, no caso, transformar o Poder Judiciário no vilão dessa história. Ora, se as ações judiciais dissessem respeito apenas ao fornecimento de medicamentos e tratamentos caríssimos, que não existem no Brasil, seria uma coisa. Porém, a verdade é outra. O Poder Executivo se omite no cumprimento de suas obrigações mais básicas. Fraldas, remédios para diabetes, para AIDS e outros listados pelo SUS não são entregues com facilidade à população.

Não são apenas os medicamentos e tratamentos extraordinários que não são concedidos. São aqueles mais básicos, aqueles que sem sombra de dúvidas constituem o mínimo vital. Aquilo a que o Estado está minimamente obrigado a fornecer aos cidadãos – este mínimo não é fornecido.

Ao decidir assim, pelo fornecimento de medicamentos à população, o Poder Judiciário está apenas exercendo seu papel constitucional, de garantir os direitos fundamentais

dos cidadãos diante de omissões do Poder Executivo186.

O tão falado “ativismos judicial” é, para nós, um termo equívoco, pois não há de nada de ativa na postura do Poder Judiciário. Ele continua sendo instado a se manifestar sobre questões trazidas até ele. Esses anseios da população são justos e refletem nosso texto constitucional, preocupado em salvaguardar os direitos do povo brasileiro.

No que diz respeito ao comprometimento do orçamento público com o cumprimento das decisões judiciais, esta, de fato, não é uma questão de fácil solução. O artigo 165 da Constituição Federal dispõe que o orçamento é uma lei de iniciativa do Poder Executivo. O orçamento nada mais é do que a lei mais específica que disporá sobre o dinheiro público, e, antes dele, devem ser elaboradas as seguintes leis: o plano plurianual e as diretrizes orçamentárias.

186 Para Ada Pellegrini Grinover, isso constitui a essência do Estado Democrático de Direito: “Tércio Sampaio

Ferraz Junior lembra que o objetivo do Estado liberal era o de neutralizar o Poder Judiciário frente aos demais poderes. Mas, no Estado democrático de direito o Judiciário, como forma de expressão do poder estatal, deve estar alinhado com os escopos do próprio Estado, não se podendo mais falar em neutralização de sua atividade. Ao contrário, o Poder Judiciário encontra-se constitucionalmente vinculado à política estatal.” (GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário. CLÈVE, Clèmerson Merlin e BARROSO, Luís Roberto (org.) Doutrinas Essenciais: Direito Constitucional – Constituição Financeira, Econômica e Social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, vol. IV, p. 567.)

A cada mandato, e nas três esferas do poder público, é obrigatória a realização do plano plurianual, que, de acordo com o §1º do art. 165, “estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada”. Ou seja, o plano plurianual traça diretrizes gerais e os objetivos do governo que se inicia.

A lei de diretrizes orçamentárias, disposta, por sua vez, no §2º do art. 165

compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento. Assim, com base no plano plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias irá definir as políticas que serão adotadas pelo governo no ano seguinte e servirá de base para a elaboração do orçamento anual.

Este, por sua vez, de acordo com definição de José Amado Nascimento:

Orçamento provém do verbo orçar, que significa calcular, computar, estimar, avaliar. Orçamento, por conseguinte, é “ato ou efeito de orçar, cálculo da receita e despesa; cálculo ou apreciação do que é preciso para se realizar qualquer obra ou empresa” (...) “O orçamento de um país, sob o aspecto financeiro, é a previsão de todos os dinheiros que, num certo período, deverão entrar nos cofres público ou deles sair: sob o aspecto jurídico, é uma lei que autoriza o governo a receber certos recursos e a efetivar determinadas despesas. Tão importante é o orçamento, para a vida do Estado e demais entes públicos, e de tão grande relevância é o sistema de normas jurídicas referentes a seu preparo, elaboração legislativa, execução e controle desta, que já se chegou a falar de um ‘direito orçamentário, conjunto de normas jurídicas que têm por objeto material o orçamento em todos os seus aspectos’” 187 (Enciclopédia Mirador Internacional)

Ainda, o §5º do mesmo artigo 165 da Constituição Federal dispõe que o orçamento deverá compreender:

I – o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público;

II – o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto;

187 NASCIMENTO, José Amado. Orçamento Público. IN FRANÇA, Rubens Limongi (coord.) Enciclopédia

III – o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público. (grifos nossos)

O Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e o Orçamento Anual serão encaminhados pelo chefe do Poder Executivo ao Poder Legislativo para aprovação.

Assim, a instituição de um orçamento deve assegurar que todas as ações governamentais tenham sido anteriormente previstas. De um lado, há o direito dos cidadãos de saber de antemão quais os objetivos e metas do governo para o próximo ano. De outro, há o dever do Estado de cumprir um cronograma anteriormente previsto, sendo vedada a utilização de receitas sem dotação prévia. Na lição de Adilson Abreu Dallari,

o sistema jurídico está estruturado para evitar que os cidadãos, os destinatários da ação estatal, sejam surpreendidos por medidas governamentais tomadas repentinamente, sem qualquer previsão. Esta situação é exatamente o que justifica a existência do orçamento, cujas origens se confundem com o próprio surgimento do Estado de Direito, e remontam ao longínquo ano de 1215, com a edição da Magna Charta Libertatum. A atuação financeira do Poder Público foi a primeira área a ser afetada na passagem do Estado absoluto para o Estado de Direito. Desde o Século XIII, os gastos dos governantes devem estar previamente autorizados188.

Conforme vimos acima, o cumprimento do orçamento estatal é de extrema importância para as finanças públicas. Por outro lado, as necessidades dos cidadãos, muitas vezes urgentes, expostas nas ações judiciais, levam o julgador a ter que optar por cumprir o orçamento ou conceder o tratamento ou medicamento necessário. É claro que, nessa colisão de direitos, o direito fundamental à vida e à saúde deve prevalecer.

Em artigo acadêmico sobre o tema, o Desembargador Cláudio Antônio Soares Levada externou entendimento de que, embora esses casos mereçam ser analisados de forma ponderada, em caso de choque de direitos deve-se priorizar o direito à saúde:

E se, por um lado, os recursos são finitos, o que torna necessário que as ordens judiciais sejam ponderadas e considerem o custo para o Estado do cumprimento das medidas emergenciais, por outro lado a vida humana não pode em nenhuma hipótese ser desprezada ou secundarizada. Governar é definir prioridades (...)189

188 DALLARI, Adilson Abreu. Constituição e Orçamento. CLÈVE, Clèmerson Merlin e BARROSO, Luís

Roberto (org.) Doutrinas Essenciais: Direito Constitucional – Constituição Financeira, Econômica e Social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 25.

189 LEVADA, Cláudio Antônio Soares. Judicialização da saúde. Prós e contras. Visão Jurisprudencial. Revista

Porém, alguns autores ainda analisam a questão voltando-se apenas para o orçamento público, tirando o problema do contexto em que se insere:

Por outro lado, é inegável que esse aumento de despesas acaba por desorganizar as políticas públicas de saúde, na medida em que recursos destinados ao sistema como um todo passam a ser direcionados para o atendimento de situações individuais, com prejuízo para a universalidade do atendimento. (...) a atuação judicial deve pautar-se por legislação adequada que mantenha o caráter universal do atendimento à saúde, privilegiando a sociedade como um todo e respeitando os limites orçamentários correspondentes190.

Data venia à opinião do autor, é muito simples falar em preservação da

universalidade do atendimento em detrimento das situações individuais quando estamos falando apenas na teoria. No caso concreto, quando há uma vida diante do juiz, impossível manter esse sangue frio. Estamos falando de seres humanos. É absolutamente correto que o juiz destine mais recursos à saúde, no caso concreto, a aceitar que o dinheiro seja destinado a

áreas menos urgentes, como, por exemplo, publicidade e propaganda do governo191.

190 PEREIRA, Delvechio de Souza. O Orçamento Público e o Processo de Judicialização da Saúde. Brasília,

2010, p. 26, 28 e 29, disponível em www.portal2.tcu.gov.br, acesso em 4 de fevereiro de 2014.

191 “Mas a pergunta, que em nenhum momento foi respondida por nenhuma autoridade governamental, é: por

que não distribuir o sacrifício da contenção de gastos com mais equanimidade entre os diferentes setores, inclusive os que, hoje, têm recebido com pontualidade? Por que concentrar todo o sacrifício no corte de serviços de saúde que atendem à população mais humilde?” (SERRA, José. Orçamento no Brasil. 2.ed.rev.ampl., São