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3. A POSITIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: SUA PROTEÇÃO NA

3.2. As normas internacionais de proteção à saúde

Inicialmente, é importante frisar que, na promulgação da Carta da ONU, em outubro de 1945, a entidade já previa a necessidade de as Nações Unidas favorecerem o desenvolvimento social dos povos, bem como solucionar problemas ligados à saúde114.

Então, em 22 de julho de 1946, em reunião na sede da ONU, em Nova York, foi promulgada a Carta da Organização Mundial da Saúde (OMS), dando origem a essa importante organização internacional, que é o braço da ONU para assuntos ligados à saúde.

A “OMS é a autoridade diretora e coordenadora para a saúde dentro do sistema das Nações Unidas”115. As funções do órgão são liderar assuntos globais ligados à saúde, legislar sobre o tema, dar suporte técnico aos países e monitorá-los no que diz respeito às suas políticas ligadas à saúde116.

A Carta da OMS traz os princípios que norteiam os Estados na celebração de Pactos Internacionais sobre o direito à saúde. Todos esses princípios, vale ressaltar, estão em conformidade com os princípios trazidos na Carta da ONU117.

Conforme visto no item 3.1.2, a Constituição da OMS conceitua a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”118. A OMS classifica como um direito fundamental de todos o gozo do melhor estado de saúde possível, sem distinções de qualquer natureza. Tem em mira, ainda, que a saúde dos povos está relacionada com a paz e com a segurança, sustentando que ela depende da cooperação entre indivíduos e Estados – que, segundo o ente, têm responsabilidade pela saúde de seus povos.

114 Art. 55 da Carta da ONU. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-

1949/D19841.htm>, acesso em 7 de maio de 2014.

115 Informação disponível em <http://www.who.int/about/en/>, acesso em 28 de abril de 2014.

116 Essas e as demais funções da OMS estão previstas no art. 2º de sua carta. Carta de Constituição da OMS

disponível em <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organização-Mundial-da- Saúde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>, acesso em 28 de abril de 2014.

117 Previstos nos artigos 1 e 2 da Carta da ONU, assinada em 26 de junho de 1945 em São Francisco, EUA. 118 Carta de Constituição da OMS disponível em <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-

Organização-Mundial-da-Saúde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>, acesso em 28 de abril de 2014.

A atuação da OMS é extremamente abrangente: possui atualmente cerca de 200 programas ativos sobre diversos temas, desde HIV/AIDS até controle de zoonoses. O acesso a medicamentos é tema que gera muita preocupação no âmbito da OMS. Relatórios anuais são divulgados a fim de mostrar a evolução no acesso a medicamentos, nos âmbitos privados e públicos, em todos os países.

No último relatório expedido119, as informações sobre o acesso a medicamentos em âmbito mundial eram alarmantes. Na média, no setor público, medicamentos genéricos estavam disponíveis em apenas 38,1% das instalações, a um custo 250% maior do que o preço internacional de referência. No setor privado, esses mesmos medicamentos estavam disponíveis em 63,3% das instalações, mas a um custo de aproximadamente 610% maior do que o preço internacional de referência120.

Essas informações são essenciais para se detectar onde está o primeiro problema para o fornecimento estatal de medicamentos: os altos custos praticados dificultam muito o acesso a tratamentos, até aos mais básicos. Para a OMS:

Acesso equitativo a medicamentos de qualidade é um componente essencial para o fortalecimento do sistema de saúde e para a reforma dos cuidados com a saúde primária, especialmente em países com renda per capita baixa ou médio-baixa. Financiamentos sustentáveis e eficientes de medicamentos e preços permissivos são, portanto, essenciais para garantir o acesso a medicamentos (…)121.

Para doenças crônicas, a perspectiva é ainda pior: como o tratamento ocorrerá por todo o período de vida do paciente, é fácil concluir que não haverá vontade estatal para fornecer estes tratamentos para todos.

Além da OMS, outros atores trabalham para garantir a proteção à saúde em âmbito internacional. O primeiro deles é o Banco Mundial. Para Jeremy Youde, a proteção

119 O relatório Strengthening the Global Partnership for Development in a Time of Crisis foi publicado em 16 de

setembro de 2012. Disponível em <http://www.who.int/medicines/mdg/mdg8report2012_en.pdf?ua=1>, acesso em 28 de abril de 2014.

120 Informações disponíveis em <http://www.who.int/medicines/mdg/mdg8report2012_en.pdf?ua=1>, acesso em

28 de abril de 2014.

121 Tradução livre de: “Equitable access to quality pharmaceuticals is an essential component of health system

strengthening and primary health care reform, particularly in low- and lower-middle income countries. Sustainable and efficient financing of medicines and affordable prices are therefore essential to ensuring access to medicines (…)”. Informações disponíveis em <http://www.who.int/about/en/>, acesso em 28 de abril de 2014.

conferida pelo Banco Mundial à saúde é mais importante até que a conferida pela própria OMS:

A organização intergovernamental mais importante trabalhando em questões relacionadas à saúde global não é propriamente uma organização para a saúde. Desde a década de 80 o Banco Mundial tem desempenhado o papel de maior financiador em questões de saúde global. Ele abrangeu essas questões entre suas atribuições, e seu financiamento da saúde tem se mostrado de vital importância para muitas nações122.

De acordo com o autor, há muitas críticas para essa atuação do Banco Mundial.

Então, preferiram defini-la como sendo apenas “transitória”123.

O Banco Mundial foi criado após o fim da 2ª Guerra Mundial. De acordo com

Jeremy Youd,124 o primeiro empréstimo foi concedido à França, para ajudar na reconstrução

do país, que fora devastado na guerra. O primeiro país não europeu a receber auxílio, segundo

as informações trazidas por Jeremy Youde125, foi o Chile, que recebeu 16 milhões de dólares

para o desenvolvimento de energia e de esquemas de irrigação.

O Banco Mundial tinha como objetivo o desenvolvimento mundial, e, na época, isto significava ajuda a projetos industriais e de infraestrutura. Conforme afirma Jeremy Youde, o Banco Mundial passou a enxergar o tema desenvolvimento de outra maneira a partir

de 1968, data em que Robert McNamara assumiu a presidência da instituição126.

Para ele, a saúde humana era fundamental para o modelo de desenvolvimento socioeconômico promovido pelo banco. Assim, o banco percebeu que a melhoria da condição social da população de um país é necessária para o desenvolvimento desse lugar. Essa consciência de Robert McNamara pode ser justificada também pela promulgação do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, firmado no âmbito das

Nações Unidas em 1966127.

122 Tradução livre de: “The most important intergovernmental organization working on global health issues is not

a health organization at all. Since the 1980s, the World Bank has served as the largest funder of global health issues. It has integrated them into its mandate, and its health funding has proven of vital importance to many states.” (YOUDE, Jeremy. Global Health Governance. Cambridge: Polity Press, 2012, p. 46).

123 Idem, p. 46. 124 Idem, p. 47. 125 Idem, p. 47.

126 YOUDE, Jeremy. Ob. cit, p. 47. 127 Trataremos sobre esse Pacto adiante.

A primeira ação do Banco Mundial no âmbito da saúde foi para o desenvolvimento de políticas de planejamento familiar. Logo em seguida, a instituição lançou um enorme programa para tratar da oncocercose (uma doença parasitária muito grave) na

África, que foi extremamente bem-sucedido128.

Em 1986 começou aquele que seria um grande motivo para que o Banco Mundial se tornasse peça fundamental na saúde global: a implementação de diversos programas para tratamento do HIV/AIDS. Atualmente, o Banco Mundial é o maior financiador de programas internacionais sobre saúde. Embora haja diversas críticas relacionadas à sua atuação, é certo que muitos dos programas internacionais dependem do auxílio dessa organização.

Outros dois atores importantes para a saúde internacional são a UNAIDS e o Fundo Global de Combate à AIDS, Tuberculose e Malária. Essas organizações surgiram especialmente para tratar doenças estigmatizantes, principalmente a AIDS. Dessa forma, precisavam promover medidas inovadoras.

Conforme lição de Jeremy Youde129, fundada em 1996, a UNAIDS atua como

catalizadora e coordenadora, gerenciando as diversas agências da ONU ligadas à saúde, para otimizar os trabalhos. Já o Fundo Global foi criado em 2001 com o propósito de ser somente um financiador internacional para doenças como AIDS, tuberculose e malária. Tem um orçamento anual entre 7 e 10 bilhões de dólares, que se destina apenas para países de renda per capita baixa ou média e também para aqueles com altas taxas de infecção pelo vírus do HIV/AIDS.

Jeremy Youde130 avalia que o Fundo Global ajudou a aumentar a eficiência no

processo de ajuda internacional. Em 2009, ainda de acordo com o autor131, quase 25% de toda

a ajuda internacional para o combate ao HIV/AIDS proveio do Fundo Global. Ainda, o Fundo foi responsável por 67% dos recursos financeiros para o combate à tuberculose e 75% para a

malária132. Tais recursos são distribuídos da seguinte forma: 60% para o financiamento do

HIV/AIDS, 24% para a malária, 14% para a tuberculose e 2% para o desenvolvimento do

128 Esse programa obteve êxito no controle da doença em 90% da área do programa. 129 YOUDE, Jeremy. Ob. cit., p. 64.

130 Idem, p. 78. 131 Id, ib, 132 Id, ib,

sistema de saúde133.

O principal pacto internacional que dispõe sobre a saúde é o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esse Pacto foi adotado e aberto à assinatura em 16 de dezembro de 1966. Seu artigo 12, que trata da saúde em diversos aspectos, é amplamente utilizado para embasar ações judiciais internacionais sobre o tema.

Por meio deste artigo, os Estados Partes “reconhecem o direito de todas as pessoas

de gozar do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir”134. Para isso, as

Nações Unidas previram uma série de medidas que os Estados Partes deveriam tomar, tais como diminuição da mortalidade infantil, melhora de aspectos higiênicos e o tratamento e controle de doenças, além de “a criação de condições próprias a assegura a todas as pessoas serviços médicos e ajuda médica em caso de doença”.

Outros dispositivos de extrema importância e relevantes para esse estudo são os que garantem a aplicação progressiva desses direitos (art. 2.1) e a proibição do retrocesso (art. 5º).

A aplicação progressiva dos direitos sociais está prevista no artigo 2º, inciso 1, do Pacto, e prevê que:

1. Cada Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o, pleno exercício e dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativa135.

E, ainda, o artigo 11 prevê que:

1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação

133 Id, ib,

134 Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais disponível em <http://www.gddc.pt/direitos-

humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh-psocial.html>, acesso em 7 de maio de 2014.

internacional fundada no livre consentimento136.

Ou seja, o Pacto reconhece a impossibilidade de garantir todos os direitos sociais na integralidade a todos os cidadãos. Por isso, prevê que os Estados devam avançar a cada dia na proteção desses direitos. Cabe ressaltar que os Estados membros devem apresentar ao Comitê relatórios anuais sobre o progresso obtido:

Art. 16. 1. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a apresentar, de acordo com as disposições da presente parte do Pacto, relatórios sobre as medidas que tenham adotado e sobre o progresso realizado com o objetivo de assegurar a observância dos direitos reconhecidos no Pacto137.

Sobre a proibição ao retrocesso, dispõe o artigo 5º do Pacto:

Art. 5º 1. nenhuma das disposição do presente Pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar- se a quaisquer atividades ou de praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhes limitações mais amplas do que aquelas nele prevista.

2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer País em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau138.

A proibição ao retrocesso pode ser entendida como uma consequência da aplicação progressiva dos direitos sociais. Nesse sentido, a lição da Professora Flávia Piovesan:

Do princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais, a demandar dos Estados que aloquem o máximo de recursos disponíveis para a implementação de tais direitos, decorre a proibição do retrocesso social e a proibição da inação estatal. A censura jurídica à violação ao princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais pode, ademais, fundamentar-se no princípio da proporcionalidade, com destaque à afronta à proporcionalidade estrita sob o prisma da proibição da insuficiência139.

Em 05 de maio de 2013 entrou em vigor o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esse Protocolo não cria novos direitos: ele permite que indivíduos ou grupo de pessoas apresentem diretamente ao Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais reclamações sobre violações desses direitos

136 Idem n. 117. 137 Idem n. 117. 138 Idem n. 117.

139 PIOVESAN, Flávia. Proteção dos Direitos Sociais: Desafios do ius commune sul-americano. Revista do

TST, Brasília, vol. 77, n,º 4, out/dez 2011, p. 120. Disponível em: <http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/handle/1939/28340>

cometidas pelos Estados-Partes que ratificaram o Protocolo140. Para isso, é necessário o esgotamento das vias internas do Estado-Parte infrator.

O Protocolo prevê três mecanismos internacionais de proteção aos direitos econômicos, sociais e culturais: comunicações individuais, comunicações interestatais e

procedimento de investigação de violações graves ou sistemáticas desses direitos141.

O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais mencionado acima foi instituído pelas Nações Unidas em 1985 para assegurar o cumprimento do Pacto. O trabalho do Comitê é analisar os relatórios enviados pelos Estados-Partes contendo as medidas por eles adotadas para o cumprimento das obrigações dispostas no Pacto. O Comitê deve analisar essas informações e fazer recomendações individualizadas aos Estados-Partes, com o objetivo

de guiá-los para que esses direitos sejam alcançados142.

140 De acordo com informações disponibilizadas pelo sítio eletrônico da ONU no Brasil

<http://www.onu.org.br/mecanismo-da-onu-que-protege-direitos-economicos-sociais-e-culturais-de-individuos- entra-em-vigor/>, acesso em 9 de maio de 2014.

141 Conforme informações disponíveis em: <http://acnudh.org/wp-content/uploads/2010/12/Carta-PIDESC-

PORTUGUES-FINAL.pdf>, acesso em 9 de maio de 2014.

142 Conforme informações disponíveis em <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/onu-proteccao-dh/orgaos-onu-