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A emergência da Arqueologia: como Foucault revolucionou a História

FUNÇÃO SOCIAL (“SOCIOAMBIENTAL”) 316 1 O contexto da ruptura: o antes e o depois da chegada da

1. A genealogia da Arqueogenealogia a partir de Foucault

2.4. A emergência da Arqueologia: como Foucault revolucionou a História

A noção de emergência no pensamento Foucault está relacionada à de acontecimento (FOUCAULT, 2007 [1966], p. 476; _____, 2011 [1963], p. 30; _____, 2012 [1969], 209); _____, 2015 [1971], p. 67), ou seja, aquilo que irrompe121 em decorrência de relações de forças,

como ideia oposta à de um evento resultante de uma causalidade objetiva ou natural. Essa definição justifica a escolha do título conferido ao presente tópico, na medida em que representa adequadamente o fato de a metodologia de análise histórica proposta por Foucault não ter sido bem recebida, à época, pela escola histórica francesa, uma vez que os historiadores contemporâneos do filósofo estavam “demasiadamente ocupados em escrever a história à sua própria maneira” (VEYNE, 2014, p. 48), ou seja, de forma tradicional, em vez de estarem disponíveis a uma outra maneira, sobretudo uma proposta por um não historiador.

Episteme

A História (tradicional) não é qualquer coisa que se pretenda qualificar como História, mas apenas “aquilo de que falam os historiadores e o que eles fazem em sua prática” (FOUCAULT, [1972] 2013, p. 298). Se não é feita por qualquer um, também não pode ser feita de qualquer modo: é preciso impor a rarefação dos sujeitos que falam (FOCUAULT, [1970] 2013, p. 35). Há, portanto, regras que condicionam como a história (tradicional) deve ser feita; trata-se de um modo de fazer disciplinado e validado, ou seja, uma episteme122, a qual por

séculos assegurou que, sempre que se fizesse necessário, fossem reconstituídos fidedignamente,

121 A remissão à ideia de tensão fica bem evidenciada quando Foucault (2012 [1969], 209) relaciona a emergência de uma positividade ao desparecimento de outra, bem como quando trata a emergência como “lugar de afrontamento” (FOUCAULT, 2015 [1971], p. 68).

122 Foucault ([1969] 2014, p. 230) define episteme da seguinte forma: “Por episteme entende-se, na verdade, o conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados;”

83 documentalmente, os fatos do passado. Não todos os fatos, é verdade, mas aqueles achados dignos de serem registrados como históricos, daí a razão de se submeterem a uma adequada seleção pelos historiadores (tradicionais), e jamais por filósofos123.

Os fatos históricos, “achados”, “descobertos”, deporiam em favor dessa episteme, na medida em que revelariam uma história não contaminada por subjetividades, transparente, contínua, livre de turbulências, de interrupções, e que atestaria haver uma marca de racionalidade evolutiva no tempo cronológico.124 É a história (tradicional), desenvolvida a

partir dessa episteme, que assegura “o lugar de repouso, da certeza, da reconciliação – do sono tranquilo.” (FOUCAULT, 2014 [1979], p. 19).

Por essa razão, não somente o lugar dos historiadores (tradicionais), mas o da própria história (tradicional), deveria ser salvaguardada de subversões à ordem de seu discurso. Pensar diferente ou mesmo permitir que, de forma impune, outro pensasse e fizesse diferente, a partir de uma nova episteme, poderia converter em mito aquele que ainda é (queria que não fosse, mas ainda é, ao menos em parte) o dogma sacralizado, antes pela religião e depois pela ciência: a crença em verdades absolutas, transcendentais, eternas mesmo, que são fiduciariamente curateladas pela História (tradicional) e por outros saberes (como o Direito, por exemplo).

Pode-se cogitar a objeção de que essa história (tradicional) não mais seja praticada, que uma “nova História” agora tem lugar aceito e definitivo em substituição àquela tradicional, que todos os historiadores se orientam, no presente, a partir de uma nova episteme. Quisera se pudesse generalizar essa suposição, esse desejo até, mas infelizmente não é o caso. E para

123 Em A história em migalhas (1994 [1987]), Dosse, de forma contundente e, a meu ver, amarga, critica o fato de que, nos três volumes da obra História - novos problemas, novas abordagens e novos objetos, de Nicole Fresco, apenas (cinco) dos 12 (doze) autores citados serem historiadores. Da forma como foi feita a crítica (e lamento), imputa-se ao autor daquela obra (Nicole Fresco) a impropriedade de elaborar uma obra de História reunindo, predominantemente, escritos de não historiadores, bem como de citar como historiadores pessoas que não o são de ofício e formação. Não se pode aqui, por não se ter lido a referida obra (a de Nicole Fresco), fazer-se um juízo peremptório quanto ao desacerto da crítica e do lamento de Dosse. Mas é fato que, afora a circunstância de não serem historiadores os autores e os citados, nenhuma outra circunstância (impropriedades das análises citadas, conclusões falseadas, etc.) foi apontada como fundamento para a desaprovação das referências feitas. Talvez, em lugar de atacar quem escreveu, ou mesmo quem foi citado na obra, devessem receber críticas os historiados que nada fizeram para merecer o convite para escrever, ou aqueles que não fizeram jus ao reconhecimento da citação. Mas se trata apenas de um “talvez”, e um talvez meu, um não historiador que se atreveu a escrever sobre uma história.

124 Uma história tipo aquela que foi achada sem graça por Riobaldo. Explico! Em Grande sertão: veredas (1956), de João Guimarães Rosa, consta o seguinte relato de Riobaldo, seu protagonista: “A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem se misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data.” Comentando o trecho antes transcrito, Santos (2016, p. 9) conclui que o Riobaldo parece não ver graça nesse tipo de cronologia: reta “(...) sem nuances, sem marcas, sem interrupções, sem oscilações.” Assim como Santos, Foucault, que é avesso à concepção de história linear, também daria razão a Riobaldo: esse tipo de história é sem graça mesmo.

84 indicar a propriedade do lamento, oportuno invocar mais uma definição apresentada por Marconi e Lakatos (2003, pp. 106-107), desta feita em relação ao método histórico:

Partindo do princípio de que as atuais formas de vida social, as instituições e os costumes têm origem no passado, é importante pesquisar suas raízes, para compreender sua natureza e função. Assim, o método histórico consiste em investigar acontecimentos, processos e instituições do passado para verificar a sua influência na sociedade de hoje, pois as instituições alcançaram sua forma atual através de

alterações de suas partes componentes, ao longo do tempo, influenciadas pelo

contexto cultural particular de cada época. Seu estudo, para uma melhor compreensão do papel que atualmente desempenham na sociedade, deve remontar aos períodos

de sua formação e de suas modificações.

(...)

Portanto, colocando-se os fenômenos, como, por exemplo, as instituições, no ambiente social em que nasceram, entre as suas condições "concomitantes", torna-se mais fácil a sua análise e compreensão, no que diz respeito à gênese e ao desenvolvimento, assim como às sucessivas alterações, permitindo a comparação de sociedades diferentes: o método histórico preenche os vazios dos fatos e acontecimentos, apoiando-se em um tempo, mesmo que artificialmente reconstruído, que assegura a percepção da continuidade e do entrelaçamento dos fenômenos.

Revela-se aí a subsistência, ao menos parcial, da episteme que informou a elaboração da estrutura metodológica da História tradicional: o insistente “percorrer de volta, indefinidamente, as linhas dos antecessores, a reconstituir tradições, a seguir curvas evolutivas, (...)” (FOUCAULT, [1979] 2014, p. 14-15). Por essa definição, os acontecimentos presentes teriam uma “origem” (Darwin?) ou “gênese” (Deus?) no passado, não como produção ou invenção, mas em decorrência de uma relação de causa e efeito, de “entrelaçamento”, atestada por uma lógica de “continuidade”.

Nova História

Mas nem toda História é tradicional. Aliás, já de algum tempo que há História feita de outro modo, a partir de uma nova episteme. Uma “nouvelle histoire”, fomentada da França, sobretudo a partir da criação da “Revista Annales” em 1929, por Lucien Febvre e Marc Bloch, e que volta sua atenção para além dos “grandes homens e países”, a fim de “captar a heterogeneidade das ações humanas” (GREGOLIN, 2006, pp. 160-161).

Segundo Burke (1991, p. 7), a Revista Annales foi idealizada para promover “uma nova espécie de história”, que se orientava pelas seguintes diretrizes:

Em primeiro lugar, a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema. Em segundo lugar, a história de todas as atividades humanas e não apenas história política. Em terceiro lugar, visando completar os dois primeiros

85 objetivos, a colaboração com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a linguística, a antropologia social, e tantas outras.

Pelo que se afere das premissas que conduziram a produção dos integrantes da “Escola dos Annales”, assim designados comumente aqueles que se associaram à referida revista (BURQUE, 1992, p. 7), essa “nova História” tinha por escopo muito mais do que passar a compreender apenas em seu objeto aquilo que antes era ignorado ou ocultado pela História tradicional, ou seja, o material “não nobre”, “plebeu” (FOUCAULT, 2015 [1975], p. 213). Postulava-se, também, uma mudança epistemológica, em que a (nova) História passasse a se orientar por pesquisas interdisciplinares e fosse destinada a problematizar as questões que interessassem a outros campos do saber. Seria uma “história da sensibilidade” (BURKE, 1991, p. 26).

Segundo Burke (1991, p. 8), a obra da Escola dos Annales não foi uniforme. Submeteu- se, por óbvio, à historicidade decorrente do passar dos anos e das distintas características de seus integrantes. É possível, em razão disso, estabelecer uma divisão em três momentos distintos. No primeiro deles, caracterizado como “pequeno, radical e subversivo”, os integrantes do referido movimento se insurgiram em face da História tradicional, sobretudo em relação aos métodos e temas eleitos para “descrição’” como fatos históricos. No segundo momento, cronologicamente datado como ocorrido após a Segunda Guerra Mundial, os antes “rebeldes” conquistaram o establishement histórico francês, notadamente em razão das posições institucionais que Febvre e seus “discípulos e amigos” passaram a ocupar (BURKE, 1991, p. 30). Por fim, a partir do final da década de 1960, a terceira geração da Escola dos Annales foi marcada pela ampliação dos campos históricos (BARROS, 2010, p. 21), pela intensificação do diálogo com outras ciências e pela diversificação das fontes para as análises históricas (MATOS, 2010, p. 128). Burke (1991, p. 8) afirma que, nesta fase, a atenção de alguns integrantes dos Annales se volta “da história socioeconômica para a sociocultural, enquanto outros estão redescobrindo a história política e mesmo a narrativa.” Ainda, segundo Burke (1991, p 92), é nesta fase do movimento dos Annales que se populariza a expressão “Nova História”, sobretudo em razão da edição da obra de Jacques Le Goff e outros “La nouvelle histoire” (1978).

É a essa “nova História” que Foucault ([1969]2014, p. 12) se refere e com a qual se relacionou de modo relevante. Dela recebeu significativas contribuições para o seu desenvolvimento intelectual (BURKE, 1991, p. 83; VEYNE, 2014, pp 45-46), como, por

86 exemplo, a noção de história serial125 (FOUCAULT, 2014 [1969], p. 9), tendo o inverso

também ocorrido, chegando Foucault a exercer considerável influência sobre os historiadores “novos”, notadamente aqueles da terceira geração dos Annales (BURKE, 1991, p. 69).

A ligação de Foucault com a “nova História” fez, inclusive, com que Le Goff (1990, p. 104) o qualificasse como “um dos maiores historiadores novos”, para lamento de alguns historiadores, especialmente de Dosse. Se Foucault seria ou não historiador126 ou, ainda, se ele

poderia ser vinculado a esse movimento denominado de “Nova História”, isso é questão que comporta debate127. Mas o que é certo, no entanto, é que Foucault efetivamente postulou uma

mutação epistemológica da História.

Descontinuidade

Essa mudança deveria compreender, antes de tudo, “um novo tipo de racionalidade”, que abandona a lógica da continuidade progressiva, ou seja, a “grande e velha metáfora biológica da vida e da evolução” (FOUCAULT, 2013 [1972], p. 309), e passa a se orientar pela noção de descontinuidade. Para Foucault (2014 [1969], p. 06), a História não se desenrola de forma contínua e linear, mas seria caracterizada, de outro modo, por fenômenos de ruptura e outras formas de perturbação à continuidade, as quais representam marcas da renovação de fundamentos.

Para Foucault (2014 [1969], pp. 10-11), a noção de descontinuidade deixa de representar um obstáculo, para se tornar um conceito operativo considerado essencial para a análise 125 Eis a definição de Burke (1997, p. 91) em relação à expressão “História serial”: “Um termo empregado por Chaunu em 1960, tendo sido rapidamente apropriado por Braudel e outros, para se referirem às tendências de longa duração, pelo estudo das continuidades e descontinuidades, no interior de séries relativamente homogêneas de dados (preços de cereais, data das safras de vinho, nascimentos anuais, comungantes de Páscoa, etc.) (Conf. Chaunu,1970, 1973; Burguiére, 1986,631-3).”

126 Foucault negava ser um historiador, do mesmo modo que não se dizia filósofo (VEYNE, 2014, p. 69), embora Veyne assim o tenha qualificado expressamente (VEYNE, 2014, p. 78). Sobre essa questão, o próprio Foucault, em 1968, manifestou-se do seguinte modo: “Muitas vezes me perguntaram o que era, para mim, escrever aquilo que escrevia, de onde eu falava, o que aquilo queria dizer, por que aquilo e não outra coisa, se eu era filósofo, ou se eu era historiador, ou sociólogo, etc. Se tivessem me dado uma liberdade de resposta tão grande quanto a que você me oferece hoje, eu acho que teria respondido com toda brutalidade: não sou nem um nem outro, sou médico, digamos que sou um diagnosticador.” (FOUCAULT, 2016 [1968], p. 48). O título, no entanto, não era o que importava para Foucault, tampouco para nós aqui nesta pesquisa. O relevante é a contribuição inequívoca e significativa de Foucault para uma nova forma de analisar e escrever história.

127 Dosse (2007, pp. 313-318) (em especial, mas não somente ele) sustentava a impropriedade de se qualificar Foucault como historiador, desenvolvendo contundente crítica ao referido filósofo (historiador, “médico” ou “diagnosticador”), bem como àqueles que, como historiadores, consideraram Foucault como historiador e/ou com eles trabalham no campo da História. Pelo conteúdo da nota anterior, é razoável especular que a crítica de Dosse parece ter se dirigido especialmente a Paul Veyne, historiador muito próximo a Foucault e que muito contribuiu no desenvolvimento das investigações históricas deste último, conforme registro de gratidão expressamente formulado no segundo volume da História de Sexualidade.

87 histórica, prestando-se a desempenhar um triplo papel. Inicialmente, é uma operação deliberada do historiador, por meio da qual este determina o nível de aprofundamento, o método e a periodização da análise a ser empreendida. Seria, também, o resultado da descrição, na medida em que o historiador deve buscar determinar os limites de cada processo. Por fim, a descontinuidade seria um conceito que se relaciona a uma atitude epistemológica, ou seja, a um modo de fazer, marcando o limiar da transformação de uma positividade por outra (FOCAULT, 2012 [1969], 2011, p. 209).

A ideia de descontinuidade fragilizou um dos cânones da história tradicional, que invoca a pretensa aptidão para reconstituir os fatos do passado. Na medida em que o caminho de volta não se encontra regularmente pavimentado, mas, ao contrário, achando-se entrecortado por inflexões e rupturas, torna-se custoso ou mesmo inviável se chegar à origem das coisas, ou seja, ao momento (ou monumento) de criação, ao menos a partir de uma lógica de causalidade sucessiva.

Documentos e monumentos

Foucault propôs, ainda, a ressignificação do sentido que a História tradicional atribui aos documentos e aos monumentos.

Le Goff (1990, p. 536) se refere aos monumentos e aos documentos como materiais da memória coletiva. Tradicionalmente, os monumentos corresponderiam aos sinais do passado, concebidos de forma intencional para “fazer recordar”. Como regra, seriam constituídos de testemunhos em forma diversa da escrita, sendo esta admitida somente em parcela mínima. Os documentos, por sua vez, teriam preferencialmente a forma escrita. Referir-se-iam aos fatos históricos e teriam o condão de, por si só, constituir-se como prova destes, mesmo que produzidos por ação de um indivíduo: o historiador. Seu caráter objetivo e não intencional se firmaria em razão da presunção de que o historiador obraria de forma isenta ao selecionar, confeccionar e/ou produzir documentos, como se afere do trecho da afirmação de Fustel de Coulanges, citado por Le Goff128 (1990, p. 536):

128 A citação em questão foi extraída da obra “Histoire Des Institutions Politiques de L'Ancienne France: La Monarchie Franque”, que não recebeu tradução para o português. Registre-se, ademais, que não foi localizada pelo autor desta pesquisa nenhuma versão na internet, seja em formado “.doc”, “.html” ou “.pdf”. Desse modo, foi imprescindível o recurso à “citação da citação”, o criticado (por alguns) “apud”, restando confiar na fidedignidade da transcrição feita por Le Goff. Tomou-se, aqui, o livro de Le Goff como um documento, entendendo-se este conceito na acepção que era conferida pelos historiadores tradicionais.

88 Leis, cartas, fórmulas, crônicas e histórias, é preciso ter lido todas estas categorias de documentos sem omitir uma única... Encontraremos no curso destes estudos várias opiniões modernas que não se apoiam em documentos; deveremos estar em condições de afirmar que não são conformes a nenhum texto, e por esta razão não nos cremos com o direito de aderir a elas. A leitura dos documentos não serviria, pois, para nada se fosse feita com ideias preconcebidas... A sua única habilidade (do historiador) consiste em tirar dos documentos tudo o que eles contêm e em não lhes acrescentar nada do que eles não contêm. O melhor historiador é aquele que se mantém o mais próximo possível dos textos.

Foucault questiona, no entanto, essa crença quase metafísica e teológica na objetividade da História tradicional, assim como na isenção dos historiadores (tradicionais ou não) que aspiram integrar ou que se afirmam integrantes dessa “família dos ascetas”129. Refere-se a isso

como demagogia hipócrita, pois não concebe como possa o historiador se aniquilar na tarefa de produzir uma descrição pretensamente impessoal e exata dos fatos passados (FOUCAULT, 2015 [1971], p. 78).

Para Foucault (2014 [1969], p. 8), a História, como produto do trabalho do historiador, não mais recorre aos documentos para deles extrair exegética e heuristicamente a verdade. Em vez disso, a História, por meio dos historiadores, é quem cuida de elaborar os documentos e organizar e distribuir os fatos históricos. A lógica da História (nova) é a da constituição dos documentos, no sentido de serem eles produzidos, e não a da reconstituição da verdade histórica por meio dos documentos.

Além de considerá-los como construídos de forma intencional e não objetiva, a (nova) História também considera os documentos como os lugares de onde se buscará definir “unidades, conjuntos, séries, relações” entre que constituirão o objeto das investigações históricas: “De agora em diante, o problema é constituir séries (...)” (FOUCAULT, 2014 [1969], p. 9).

História geral (Serial)

Em A Arqueologia do saber, Foucault (2014 [1969], p. 12) se refere a uma História geral, a qual teria por finalidade:

determinar que forma de relação pode ser legitimamente descrita entre essas diferentes séries; que sistema vertical podem formar; qual é, de umas às outras, o jogo das correlações e das dominâncias; de que efeito podem ser as defasagens, as

129 A ideia é inequivocamente nietzschiana, abordada especialmente em Genealogia da Moral (1887). Ver, a propósito, o aforisma n.º 26 do aludido livro (NIETZSCHE, 2009 [1887], pp. 134-137).

89 temporalidades diferentes, as diversas permanências; em que conjuntos distintos certos elementos podem figurar simultaneamente; em resumo, não somente que séries, mas que "séries de séries" - ou, em outros termos, que "quadros" - é possível constituir.

Em outra obra posterior, a essa mesma concepção de História Foucault (2013 [1972], p. 304) se refere como História serial. Sobre essa expressão, Burke (1991, p. 91) sustenta que foi primeiramente introduzida por Pierre Chaunu em 1960, sendo logo em seguida adotada por Ferdinand Braudel e outros integrantes da Escola dos Annales.

A História serial se propõe examinar “tendências de longa duração, pelo estudo das continuidades e descontinuidades, no interior de séries relativamente homogêneas de dados”. Barros (2011, p. 164) explica que a História Serial se refere “a um tipo de fontes e a um ‘modo de tratamento’ das fontes”, mas pode também representar uma “serialização de eventos ou dados (e não apenas com a serialização de fontes)”. Neste último caso, seu escopo seria investigar eventos que se verificam de forma sucessiva (séries) ou em um determinado período (ciclo).

Foucault (2013 [1972], p. 304) afirma que a História serial não teria seu foco em objetos previamente definidos. Segundo ele, o exame dos documentos é que deveria determinar qual o objeto a ser investigado e, num momento posterior, viabilizar o estabelecimento de eventuais relações entre os dados ou eventos mencionados nesses documentos. Para justificar suas conclusões, Foucault (2013 [1972], p. 305) faz alusão à obra Séville et l'Atlantique (1960), de Pierre Chaunu, sobre a cidade de Sevilha. Aquele (Foucault) indica que o estudo serial sobre Sevilha, tomado para fins de ilustração, principiou-se pela análise dos registros relativos ao século XVI e constantes no arquivo do porto daquela cidade. Após, e em função desse exame, é que se pôde definir as relações concernentes à entrada e saída anual de navios, origem das embarcações, etc. Assim, Foucault assinalou que a própria descrição dessas relações consubstanciaria o objeto da pesquisa histórica. Com esse argumento, Foucault quis demonstrar que a História, representada por essas relações seriais, não estaria previamente estabelecida nos documentos examinados. Foi somente por meio do processo de constituição (e não de