• Nenhum resultado encontrado

FUNÇÃO SOCIAL (“SOCIOAMBIENTAL”) 316 1 O contexto da ruptura: o antes e o depois da chegada da

1. A genealogia da Arqueogenealogia a partir de Foucault

2.1. Foucault e seus momentos

Antes de mais nada, é preciso anotar uma observação que se destina a evitar ou desfazer equívocos em relação à constituição da obra de Foucault. Embora a questão relativa à produção dos saberes, das positividades, tenha sido fulcral na Arqueologia de Foucault, é inevitável associá-la também às outras “fases” do seu pensamento, especialmente à abordagem genealógica, na medida em que esta se firma na relação de determinação recíproca entre o poder e o saber (FOUCAULT, [1975] 2015, p.170). Como exemplo, cite-se a alusão à “cientificização” da justiça penal e da prática judiciária, sobretudo no que concerne à concepção e execução de técnicas punitivas (FOUCAULT, [1975] 2015, p. 27). De modo semelhante, não

mas “pelo menos é curto”), do trecho de A Ordem do Discurso que se refere aos procedimentos internos de controle e delimitação do discurso, bem como da parte final da entrevista concedida a Roger-Pol Droit (1975), denominada “Gerir Ilegalismos”.

70 se pode olvidar que, embora o tema “poder” assuma a centralidade das investigações do referido filósofo no momento que comumente seus comentadores designam de Genealogia do poder100,

em As palavras e as coisas (1966), obra situada no “momento” que se convencionou chamar de arqueológico, essa questão foi também abordada, pois ali se cuidou do “balizamento dos mecanismos de poder interior dos discursos” (FOUCAULT, [1977] 2015, 221). Outrossim, não se pode deixar de enxergar em História da loucura (1961), que seria cronologicamente situado no início do “momento” arqueológico, o interesse pela investigação da forma como as subjetividades são constituídas, pois naquele livro se dedica especial atenção à relação de poder entre o médico psiquiatra e o indivíduo louco, a partir da qual este é, com fundamento em um discurso cientificamente estabelecido (uma positividade), definido como o “outro”, ou seja, como “doente mental” (FOUCAULT, [1963], 2017, p. 183).

O que acima foi dito se presta a justificar ressalvas à recorrente “divisão” da obra de Foucault, procedimento que muito mais se presta a viabilizar o seu estudo compartimentalizado, do que propriamente a demarcar uma fragmentação ou, pior ainda, um rastro evolutivo em que fases se sucederiam numa lógica de progresso. “Talvez nem devêssemos insistir em ‘três fases’ de Foucault” (FISCHER, 2012, p. 48), mas já que esse procedimento foi adotado para fins “didáticos”, que se tenha atenção para o fato de que ele não denota a ideia de que, no interior dessas “fases”, o pensamento de Foucault possa ser considerado uniforme, maciço ou mesmo estabilizado, ou seja, em que se trate de um “objeto” (saber, poder ou subjetividade) com a exclusão dos demais. Diferente disso, essa “divisão” quer apenas indicar a predominância de certos temas (GREGOLIN, 2006, p. 59), sem cogitar sugerir que Foucault tenha pensado de maneira cartesiana e homogênea enquanto perduraram quaisquer dessas “fases”.

Feita a necessária ressalva, comumente os comentadores “dividem” a obra de Foucault em três “momentos”(MACHADO, 2017, p. 41) - ou “fases” (MACHADO, 2007, p. 3033; FERNANDES, 2012, p. 18; DREYFUS, RABINOW, 1995, p. 116), “domínios” (VEIGA- NETO, 1996, p. 156), “eixos” (CASTRO, 2016 [2004], p. 117), “tempos” (FISCHER, 2012, p. 42.), “épocas” (GREGOLIN, 2006, p. 54), “ênfases metodológicas” (FONSECA, 2012, p. 42): a Arqueologia, a Genealogia e a Ética de si (FONSECA, 2012, p. 42).

100 No mesmo sentido, em A Arqueologia do Saber, principal obra deste momento arqueológico, a existência dos discursos é relacionada à questão do poder: “Assim concebido, o discurso deixa de ser o que é para a atitude exegética: tesouro inesgotável de onde se podem tirar sempre novas riquezas, e a cada vez imprevisíveis; providência que sempre falou antecipadamente e que faz com que se ouça, quando se sabe escutar, oráculos retrospectivos; ele aparece como um bem - finito, limitado, desejável, útil - que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas "aplicações práticas"), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta, e de uma luta política.” (FOUCAULT, 2014 [1969], pp. 147-148)

71 Nesse sentido, no primeiro momento, o da Arqueologia, Foucault se interessou por analisar como, na cultura ocidental, os saberes intentam se estabelecer como ciências e, ainda, como ocorreu a objetivização dos sujeitos (FONSECA, 2012, p. 42; GREGOLIN, 2006, p. 55). Investigando a história da loucura, da medicina e dos saberes em geral, com especial relevância para as humanidades, Foucault problematizou o estatuto dessas positividades, sendo os escritos de maior expressão desse período História da Loucura (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber (1969).

No momento da Genealogia (ou Genealogia do poder), localizada cronologicamente sobretudo nos cursos e livros dos anos 1970 (FONSECA, 2012, p. 43), a atenção de Foucault se voltou à tematização dos mecanismos de funcionamento do poder, especialmente para a relação de determinação recíproca entre o poder e o saber. Segundo Gregolim (2006, p. 60), A ordem do discurso (1970), livro que corresponde à aula inaugural de Foucault ministrada no Collège de France, significou o “momento de passagem entre a arqueologia do saber e a genealogia do poder”. A partir de então, o poder se constituiu no problema vetor das pesquisas do filósofo francês, que passou a investigar o poder enquanto estratégia, ou seja, o poder em funcionamento por meio de dispositivos a partir dos quais são elaborados discursos e se constituem as relações de forças. De acordo com Gregolin (2006, p. 55), Vigiar e punir (1975) é o livro que marca esse momento do projeto de Foucault.

No terceiro momento, o da Ética (de si) ou das práticas de si (FONSECA, 2012, p. 44), Foucault se dedicou a examinar a formação das subjetividades a partir de técnicas de si (GREGOLIN, 2006, p. 55). Em outros termos, Foucault analisou como os dispositivos de poder irão constituir as subjetividades de um modo tal que cada sujeito, mesmo sem estar submetido ao funcionamento atual e ostensivo de um instrumento de controle heterônomo, exerça sobre si (e sobre os outros) o cuidado para se manter “normal”, ou seja, em harmonia com os paradigmas de conformidade estabelecidos pelo discurso dominante. Os três volumes de História da sexualidade foram escritos nesse terceiro momento da obra de Foucault (GREGOLIN, 2006, p. 55).

Diversos outros escritos e ditos (entrevistas, etc.) foram produzidos por Foucault, todos eles tratando, em última instância, da temática da constituição de subjetividades pelo funcionamento dos mecanismos de poder, a partir da relação poder-saber. A publicação desses trabalhos, todavia, não observou sempre essa “ordem” lógica e cronológica da “divisão” que se atribui à obra de Foucault, a exemplo da coletânea Microfísica do poder (1979), que foi organizada (pelo Professor Roberto Machado) e publicada depois de iniciado o momento da

72 Genealogia da ética, mas que reúne artigos e entrevistas que mais se “conformariam” à Genealogia do poder. É importante, então, fixar a premissa de que essa “divisão” em fases, momentos, períodos ou aspectos, não deve ser tomada como elementar à obra de Foucault, especialmente por não ter sido estabelecida pelo próprio filosofo101, mas, sim, pelos seus

leitores e comentadores.

É oportuno, ademais, dizer que não se quis com essa afirmação, e a partir dessa breve narrativa, sustentar que a obra de Foucault seja marcada pela continuidade ou pelo apego à sistematização, noções, aliás, que não obtiveram dele o prestígio comumente conferido por muitos intelectuais contemporâneos seus, fato que terminou por lhe render diversas críticas e questionamentos. De igual modo, não se pretende sugerir que o pensamento de Foucault tenha permanecido imune a derivações (e a erros mesmo!) ao longo de sua produção intelectual, nem que suas formulações e conceitos não tenham experimentado qualquer tipo de ressignificação102_103. Acerca dessa questão, Machado (2017, p. 52) afirma que “Foucault foi

um filósofo livre”104, o qual tinha a “necessidade de não absolutizar seu pensamento”. “Mudar

faz parte da natureza de seu pensamento” (MACHADO, 2017, p. 45), afirmou “o amigo brasileiro de Foucault”. E o próprio Foucault (2014 [1969], p. 30), sobre a impermanência do pensamento afirmou: “A obra não pode ser considerada como unidade imediata, nem como unidade certa, nem como unidade homogênea”. Nada obstante isso, é correto dizer que esses deslocamentos não representaram um abandono das reflexões anteriores, tal como se tivesse havido uma completa sucessão do modo de pensar; mas, de outro modo, que corresponderam a uma mudança da centralidade temática de suas investigações, como mesmo afirmou Foucault na parte introdutória de História da Sexualidade 2 – o uso dos prazeres, que ele denominou de “modificações”105. Verificaram-se, assim, “torsões, movimentos em torno de um mesmo eixo”

(CASTRO, 2017, p. 75), de maneira que se pode afirmar que o que vem depois soma, subtrai, corrige ou modifica, mas não necessariamente rejeita, substitui ou sucede (no sentido de se

101 Na parte introdutória de História da Sexualidade 2, Foucault alude a “modificações”, e não a “divisões”, o que são coisas bem distintas.

102 Aliás, neste trabalho se fará referência, por exemplo, à noção de “arquivo”, cujo sentido foi deveras modificado e ampliado, especialmente a partir de A arqueologia do saber.

103 Na nota de rodapé n.º 45, já se fez alusão ao alerta de Veyne (2014, p. 23) quanto à “flutuação” do “vocabulário técnico” de Foucault.

104 Machado, mais que um estudioso e comentador, foi o “amigo brasileiro de Foucault”. Teve o privilégio (que inveja!!) de frequentar quase todos os cursos ministrados no Collège de France, hospedando-se como inquilino num apartamento (ou cômodo) anexo à residência do filósofo francês. Sobre essa característica cambiante, Machado (2017, p. 43) afirma que Foucault seria a ilustração perfeita de que “cobra que não perde a pele, morre”. 105 No livro em questão, Foucault (2018 [1984], pp. 10-11) alude a três “deslocamentos teóricos”. No primeiro, teria se ocupado em se interrogar “sobre as formas de práticas discurso que articulavam o saber”; no segundo deslocamento teórico, analisou “o que frequentemente se descreve como manifestações do ‘poder’”; enquanto no terceiro, analisou o que seria designado como “o sujeito”.

73 colocar no lugar). É essa relação de complementaridade, de ajuste de curso, que autoriza, destarte, que sejam postas em diálogo as três “ênfases metodológicas” da obra de Foucault, de modo que delas se possa extrair o aporte teórico e metodológico necessário para a elaboração de uma história (com Foucault) dos terrenos de marinha.

2.2. Foucault e o(um)(s) método(s).

Nesse itinerário, comumente se atribui a Foucault a paternidade de um método arqueológico (MACHADO, 2007, p. 66; VEIGA-NETO, 1996, p. 147; GREGOLIN, 2006, p. 55; FERNANDES, 2012, p. 35), o qual se refere à análise dos processos e condições de produção do saber, especialmente os informados pelo discurso científico (FOUCAULT, [1977] 2015, p. 222). Faz-se, ainda, alusão à Genealogia, para designar a abordagem cuja “questão metodológica dizia respeito sobretudo ao poder e sua relação com o saber” (MACHADO, 2007, p. 168). Mencionam alguns, ademais, um método arquegenealógico (NAVARRO, 2011, p. 270), arquigenealógico (RAMOS, p. 2015 204) ou, ainda, uma arqueogenealogia (FISCHER, 2012, p. 13; CAISCAIS apud VEIGA NETO, 1996, p. 194), que conjugaria o projeto arqueológico de Foucault à abordagem genealógica, esta cujo objeto predominante seria a análise dos mecanismos de funcionamento do poder. Até o próprio Foucault ([1976] 2015, p. 270) (por lapso? Por “deslocamento”? Por provocação? Não se sabe!) chega a se referir à sua Arqueologia como método.

Para analisar, então, a propriedade de se referir ou não a um (ou mais de um) método “foucaultiano”, seja arqueológico, genealógico ou arqueogenealógico (ou arquegenealógico), importa primeiro estabelecer o que se deve compreender por método.

Acerca dessa questão, Marconi e Lakatos (2003, p. 107) conceituam método como sendo:

(...) o conjunto das atividades sistemáticas e racionais que, com maior segurança e economia, permite alcançar o objetivo - conhecimentos válidos e verdadeiros -, traçando o caminho a ser seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do cientista.

Não é de hoje que se credita ao método, especialmente o método científico, essa aptidão quase onipotente de conduzir o indivíduo (não “um”, mas aquele especialmente qualificado para esse fim: “o” cientista) no itinerário de busca pela verdade das coisas. Essa crença se

74 robusteceu notadamente no século XVI106, tomado como marco inicial da Revolução

Científica, quando a produção do saber principia seu processo de secularização e emancipação em relação às fórmulas teológicas e escolásticas, estas que propunham promover a explicação dos fenômenos da natureza de maneira compatível com a doutrina religiosa da Igreja Católica107, a partir da realização de operações silogísticas, tal como as concebidas pela lógica

aristotélica.

Insurgindo-se contra essa forma milenar de (re)produção e justificação do conhecimento, Bacon (2007 [1605], p. 60) sustentou que a ciência não deveria se confundir com as questões da fé, afirmando ser “sobremodo salutar outorgar-se, com sóbrio espírito, à fé o que à fé pertence” (BACON, 1999 [1620], p. 26). Por esse motivo, condenava o indevido sincretismo entre a filosofia e a teologia, razão pela qual era crítico do pensamento de Platão (BACON, 2007 [1605], p. 60).

Bacon (1999 [1620], pp. 30-31), contudo, sustentou que o exame experimental se constituiria em requisito essencial para demonstração da propriedade do conhecimento científico, refutando o fundamento de que a notória sabedoria de quem afirmava ou escrevia, ou seja, o argumento de autoridade advindo sobretudo de atos de reflexão, pudesse sustentar a legitimidade de determinado conhecimento. Ao ensejo dessa premissa, Bacon (1999 [1620], p. 09) formulou o método que considerava suficiente e, mais que isso, que seria a “única esperança” de conduzir à verdadeira compreensão dos fenômenos da natureza: a indução, que autorizava a formulação de assertivas gerais, mas somente a partir da realização de experimentos particulares.

Descartes (2015 [1637], p. 45) também criticou as fórmulas de (re)produção do conhecimento utilizadas pelos filósofos e pensadores de então (século XVII), afirmando que:

“(...) poderia encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada um faz sobre os assuntos que lhe importam, e cujo resultado se julgou mal, irá puni-lo em seguida, do que naqueles feitos pelo homem de letras em seu gabinete, sobre especulações que não produzem qualquer efeito e não tem outra consequência, a não ser, talvez, que lhe proporcionarão tanto mais vaidade quanto mais afastadas estiverem do senso comum, pelo tanto de espírito e de artifício que precisou empregar para torná-las verossímeis.”

106 Esse marco temporal faz alusão ao método científico. Que fique claro ter por certa a existência, antes daquele momento histórico, de outros regramentos para elaboração de discursos de “verdade”.

107 Refiro-me, como se sucederá durante todo este trabalho, à Igreja Católica como a Católica Apostólica Romana, ou seja, à Igreja do sistema papal, já que a catolicidade e apostolicidade são adjetivos invocados por outras instituições religiosas, notadamente algumas protestantes históricas.

75 Desse breve trecho do seu Discurso do Método, é possível aferir que Descartes apregoa a razão como instrumento mais eficaz para a obtenção do conhecimento e para promover a distinção entre o verdadeiro e o falso, rejeitando a fundamentação metafísica (“especulações”, “espírito e artifício”) como justificadora do saber. Em substituição a essa fórmula, Descartes (2015 [1637], p. 38) apresentou um método que, segundo sustentou, possibilitou-lhe alcançar o patamar mais elevado de conhecimento e de progresso em busca da verdade. Esse método totalizante seria suficiente para revelar o “conhecimento de todas as coisas” (Descartes, 2015 [1637], p. 58), desde que o indivíduo realizasse a investigação com estrita observância (de)“a verdadeira ordem” estabelecida nos preceitos enunciados pelo aludido método (DESCARTES, 2015 [1637], p. 57).

As formulações de Bacon e Descartes, conforme essa singela e apertadíssima referência, correspondem à essência do pensamento inaugurado pela Revolução Científica, que erigia a ciência como campo do saber destinado a revelar a verdade, não mais a partir de uma mera reflexão especulativa, mas da utilização de um método: o científico. Este permitiria submeter o conhecimento à aferição, a qual se desenvolveria por meio de procedimentos aptos a validar as conclusões sustentadas por aqueles a quem incumbia manuseá-los: os cientistas. Inaugura-se, assim, a era a partir da qual o discurso científico se apropriou do poder de dizer a verdade, com exclusão, ou ao menos submissão, das demais formas de saber.

Embora a publicação da obra O progresso da ciência, a mais antiga dentre as que foram há pouco citadas, remonte ao ano de 1605, é possível afirmar que o pensamento que conferiu ao discurso científico o poder de dizer a verdade ainda subsiste como dominante. Segundo Marconi e Lakatos (2003, p. 107), “não há ciência sem o emprego de métodos científicos”, sendo conveniente rememorar108 que, pelo que se extrai do próprio conceito de método por elas

formulado, a ciência, desenvolvida por “cientistas” e a partir do método (singular) que lhe é próprio, teria aptidão para produzir “conhecimentos válidos e verdadeiros”.

Não é difícil, então, compreender o desejo de se receber de Foucault um método, ou seja, uma fórmula sistemática e racional de conduzir as atividades de busca pelos “conhecimentos válidos e verdadeiros”. Essa aspiração decorre, como visto, da operação de retomada de uma memória discursiva, a qual condiciona há mais de 400 (quatrocentos) anos a forma tida como correta de dizer a verdade e produzir conhecimento. É “normal”, normalizado

76 e normatizado, querer que Foucault seja assim, que seja igual, que seja conforme o nosso referente, que não seja “o outro”.

Nada obstante, é custoso pensar que Foucault subscrevesse a afirmação de que sua abordagem arqueológica se conformasse a esse conceito de método, ao menos na concepção de instrumento passível de ser universalizado para investigações históricas. Nesse sentido, Machado (2007, pp. 114-115) afirma que “com Michel Foucault é a própria ideia de um método histórico imutável, sistemático, universalmente aplicável que é desprestigiada.” Sobre o assunto, em entrevista concedida em 1977, ao ser confrontado acerca da existência entre os pensadores japoneses do mito de “um Foucault homem de método”, o próprio Foucault (2015 [1977], p. 223) respondeu:

- (...) Por exemplo, depois de a publicação de A arqueologia do saber muito se falou do método de Foucault. Mas, justamente o senhor nunca fixou um método... - Não. A arqueologia do saber não é um livro de método. Não tenho um método que aplicaria, do mesmo modo, a domínios diferentes.

Na mesma oportunidade disse não “privilegiar de modo algum o problema do método”, admitindo que realiza suas pesquisas a partir de instrumentos “encontrados ou forjados” no exato momento do empreendimento. E prosseguiu afirmando:

(...) eu sou, se quiserem, um empirista cego, quer dizer, estou na pior das situações. Eu tateio, fabrico, como posso, instrumentos que são destinados a fazer aparecer os objetos.

Em arremate, consignou (FOUCAULT, [1977] 2015, p. 224):

Quanto a mim, eu me conduzo de maneira totalmente insensata e pretenciosa, sob aparente modéstia, mas é pretensão, presunção, delírio ou presunção, quase no sentido hegeliano, querer falar de um objeto desconhecido com um método não definido. Então, visto a carapuça, sou assim...

Do que o próprio Foucault afirmou, é possível extrair a conclusão de que ele não compartilhava da crença de Bacon, Descartes, Marconi e Lakatos na quase sacralidade do

77 método científico109_110, ou mesmo de qualquer outro, como instrumento de condução à

“verdade”111. Essa ressalva de Foucault à ideia de ter elaborado um (ou mais de um) método

passível de ser universalizado112 se afina com sua postura crítica ao academicismo exacerbado

(FOUCAULT, [1972] 2015, p. 49) e à sacralização do discurso científico (FOUCAULT, [1977] 2015, p. 52), bem como com a sua compreensão de verdade113 como algo que se produz

historicamente.

Tal postura de Foucault, entretanto, não representava um anarquismo ou abolicionismo metodológico. Diversamente, ela evidencia a noção de movimento e de historicidade do programa analítico de Foucault, que, com o passar do tempo, desloca-se e sofre ajustes, conforme revelam os dizeres a seguir transcritos (FOUCAULT, 2015 [1977], p. 224):

“Procuro corrigir meus instrumentos através dos objetos que penso descobrir e, neste momento, o instrumento faz aparecer que o objeto definido por mim não era exatamente aquele. É assim que eu hesito e titubeio, de livro em livro.”

Por tudo o que foi dito pelo próprio Foucault, e em respeito a esse pensamento, (quiçá, uma vontade), a alusão ao(s) método(s) “de Foucault” (arqueológico, genealógico ou arqueogenealógico) será feita com a ressalva de não conformação à noção estabelecida por

109 A alusão a Bacon e Descarte se fez necessária não para desmerecer suas contribuições para o progresso da ciência, determinantes que foram para a secularização da produção do conhecimento. Diferente disso, o motivo da referência foi ressaltar e ressalvar o aspecto temporal relacionado a reprodução de algumas ideias daqueles filósofos, a despeito de quase 400 (quatrocentos) anos separarem o Manual de Marconi e Lakatos das publicações de Bacon e Descarte mencionadas neste trabalho. À luz do pensamento de Foucault, e da sua atitude de negação à transcendência de qualquer proposta metodológica, é custoso crer que o autor de A Arqueologia do saber concordasse que ali se encontra explicitado um “método” tal como Bacon e Descartes definiram há quatro séculos e, sobretudo, como Markoni e Lakatos ainda hoje o definem.

110 Ainda a propósito do tema, especificamente em relação à dissonância da noção de método em Foucault e Descartes, oportuna a leitura da nota de rodapé n.º 45 constante na p. 156 de A ordem das disciplinas (1996), tese de Doutorado de Veiga Neto. A mesma questão foi retomada no Capítulo 7 da aludida tese, sendo pormenorizada aquilo que Veiga Neto considerou, em sua tese, por “método(s) em Foucault”.

111 “- Na medida em que não afirma nenhuma verdade universal, o senhor é um cético? – Certamente que sim!” (FOUCAULT apud VEYNE, 2014, p. 72).

112 “O gênero de trabalho que evoquei é, antes de tudo, uma experiência – uma experiência para pensar a história do que somos. Uma experiência bem mais que o sistema. Nenhuma receita, muito menos um método geral. Mas regras: de documentação, de pesquisa, de verificação. Uma ética também, pois creio que nesse domínio, entre técnica e ética, não há muitas diferenças. Talvez por que os processos sejam menos codificados.” (FOUCAULT,