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A ordem do discurso: a abordagem genealógica e uma Arqueogenealogia Meu problema é encontrar a matéria que convém analisar, o que constitui o próprio

FUNÇÃO SOCIAL (“SOCIOAMBIENTAL”) 316 1 O contexto da ruptura: o antes e o depois da chegada da

1. A genealogia da Arqueogenealogia a partir de Foucault

2.7. A ordem do discurso: a abordagem genealógica e uma Arqueogenealogia Meu problema é encontrar a matéria que convém analisar, o que constitui o próprio

fato do discurso. Assim, meu projeto não é o de fazer um trabalho de historiador, mas descobrir por que e como se estabelecem relações entre os procedimentos discursivos. (FOUCAULT, [1975] 2015, pp. 251-252)

Foram as investigações arqueológicas do próprio Foucault, portanto, que o conduziram à conclusão de que o saber, sempre agenciado pelo poder, constituir-se-ia em instrumento de produção de verdades, o qual se submeteria permanentemente a mecanismos de controle. Como marco desse deslocamento teórico, o “segundo deslocamento”141 mencionado na parte

introdutória de História da Sexualidade 2, tem-se a conferência inaugural por ele ministrada no Collège de France, posteriormente veiculada como escrito denominado A ordem do discurso (1970). Na ocasião daquela conferência, foi anunciada por Foucault a seguinte hipótese, como a destinada a fixar o “teatro provisório” do seu projeto analítico:

(...) em toda sociedade a produção de discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número e procedimentos que tem por função conjurar poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

concluir que o subtítulo do filme foi concebido deliberadamente para “enganar”, para surpreender o telespectador, pois o “inimigo nunca foi outro”. “Na verdade”, nunca houve dois tipos de inimigos, um no Tropa 1 e “outro” no Tropa 2: tudo era o “sistema”, ou seja, o dispositivo do crime organizado, que funciona como uma trama de relações de poder que se articulam a partir de uma “micromecânica” (“microfísica”) e que tomou conta das comunidades, não somente da Cidade Maravilhosa, mas também do estado do Rio de Janeiro e, ainda, do Brasil. O “sistema foda” referenciado por Nascimento integrava todos aqueles elementos e os fazia funcionar em rede, ainda que cada posição de sujeito, como “lugar determinado e vazio” (FOUCAULT, 2014 [1969], p. 2015), seja episodicamente ocupada por indivíduos que ignoravam a condição de sujeição, tal como se sucedeu com o próprio Nascimento. É mais ou menos como a sucessão de Temer por Bolsonaro.

141 A partir desse “segundo deslocamento teórico”, Foucault passou a se interrogar sobre as “relações múltiplas, as estratégias abertas e as técnicas racionais que articulam o exercício dos poderes” (FOUCAULT, 2018 [1984], p. 10).

107 Orientado pelo intento de investigar essa hipótese, Foucault logo ali afirmou haver três grandes grupos de mecanismos de controle da produção dos discursos.

Procedimentos externos de controle dos discursos

O primeiro desses mecanismos corresponderia aos procedimentos externos, pois funcionariam do exterior como sistemas de exclusão (FOUCAULT, 2013 [1970], p. 20). Seria a partir desses procedimentos externos que se poderia considerar ou não determinado enunciado como correspondente a um discurso ou positividade. A interdição é o primeiro desses procedimentos externos, o qual, relacionando o discurso à vontade de poder, estabelece que não se pode falar tudo o que se quer em qualquer circunstância (FOUCAULT, 2013 [1970], pp. 9- 10).

O segundo procedimento externo é o da separação e da rejeição (segregação). Por esse procedimento, pretende-se excluir, pôr para fora, qualquer que seja considerado desconforme com o referente. E mais, deve-se considerar sem valor, desprovido de racionalidade, tudo o que for enunciado por quem esteja separado: a rejeição é imperiosa (FOUCAULT, 2013 [1970], pp. 10-11).

O terceiro e mais relevante procedimento externo de controle do discurso é a oposição do verdadeiro e do falso ou, simplesmente, a “vontade de verdade” (FOUCAULT, 2013 [1970], p. 16).

Verdade e vontade de verdade

Verdade para Foucault, todavia, não corresponde à ideia sacralizada que impera no discurso religioso, notadamente o cristão, onde essa noção é anunciada como mecanismo de emancipação: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”142. Foucault (2015 [1976], p.

279), ao contrário, entende verdade não como um instrumento de libertação, mas como algo que reproduz efeitos de poder e, assim, impõe-se como lei e mantém todos a ela submissos. Para ele (FOUCAULT, 2015 [1977], p. 53], verdade não é algo objetivo, que possa ser heuristicamente encontrado, tal como sugerido nos conceitos de método científico apresentados

142 O texto transcrito corresponde ao versículo 32, do capítulo 8, do evangelho de João, que é o quarto livro do Novo Testamento.

108 por Bacon, Descarte, Markoni e Lakatos, ou nos dogmas consagrados pela tradição religiosa cristã. “Produz-se verdade” a cada instante, havendo uma relação indissociável entre essas produções, o poder e seus mecanismos (FOUCAULT, 2015 [1977], p. 224).

Verdade, segundo Foucault (2015 [1977], p. 227), é “o conjunto de procedimentos que permitem a cada instante e a cada um pronunciar enunciados que serão considerados verdadeiros. Não há absolutamente instância suprema.” Isso significa dizer que verdade é o que se obtém pelo exame de conformidade com um regime de verdade (de veridicção), ou seja, com um “conjunto de regras que permitem, a propósito de um discurso dado, fixar quais os enunciados nele poderão ser caracterizados como verdadeiros ou falsos” (FOUCAULT, 2010 [1979], p. 63).

Foucault (2015 [1977], pp. 44-45) entendia que a partilha entre verdadeiro e falso não seria efetivamente um problema, ou seja, que fosse impróprio dizer que algo seja verdadeiro ou falso. O que ele considerava relevante, no entanto, era a compreensão de que os discursos não seriam em si mesmos verdadeiros ou falsos, mas se constituiriam como acontecimentos (“acontecimentalizados”, e não decorrentes do acaso) historicamente determinados, sem olvidar, ademais, do que seria mais importante segundo ele (FOUCAULT, 2015 [1977], pp. 51- 52):

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é − não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções − a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.

Essa vinculação da verdade ao poder não afasta a importância da ritualística para a produção dos discursos, que, tanto quanto possível, devem ser precisos e coerentes, a fim de facilitar a sua justificação e/ou imposição, o que mais reforça o argumento de indissociabilidade da relação poder-saber. Mas inequivocamente o que Foucault anunciou foi existência de uma relação de pressuposição, de condicionamento: o poder determina quais sejam os discursos de verdade.

109 A vontade de verdade, como procedimento de controle que é, constitui-se numa “prodigiosa maquinaria” que funciona permanentemente com duas finalidades elementares. A primeira é a de revelar uma verdade que aparente “riqueza, fecundidade, força doce e insidiosa universal”, mascarando, destarte, que as verdades são produzidas pelo funcionamento, não tão “doce”, de mecanismos de poder. Além disso, a vontade de verdade opera de modo a excluir todos os que almejem contorná-la e interrogá-la (FOUCAULT, 2013 [1970], pp. 19-20).

Procedimentos internos de controle dos discursos

Foucault também considerava que os próprios discursos realizariam um controle sobre eles mesmos, por isso afirmou existirem procedimentos internos de controle, que funcionariam estabelecendo princípios de ordenação dos discursos (FOUCAULT, 2013 [1970], p. 20).

O primeiro desses procedimentos internos seria o comentário. Os textos fundamentais, segundo Foucault (2013 [1970], p. 22), estão sujeitos a (1) repetições, (2) glosas e a (3) comentários. Para facilitar o entendimento de cada uma dessas operações, poderíamos fazer a correspondência delas, respectivamente, com a ideia de (1) reprodução (transcrição integral, citação), (2) supressão parcial (transcrição parcial) e a (3) paráfrase (explicação de um dito ou escrito). Nos dizeres de Foucault (2013 [1970], p. 23), o comentário seria “o desnível entre o texto primeiro e o texto segundo”. Dizendo de outro modo, comentário corresponde à operação que se faz neste momento no presente trabalho, ou seja, é o que vem depois do “ou seja”, é o “dito de outro modo”. Comentário é, portanto, o que se apresenta como explicação do texto fundamental; é o resultado da operação de paráfrase do texto comentado. O comentário, desse modo, permite construir (não reconstruir o velho) novos discursos, seja por meio da atualização dos anteriormente anunciados, seja facultando que se diga originalmente aquilo que já havia sido dito, ou, de outro modo, repetindo aquilo que nunca foi anunciado, tal como se revelasse o que estava oculto no texto fundamental (FOUCAULT, 2013 [1970], pp. 21-25).

O segundo procedimento de controle é o do autor (função do autor ou, ainda, função- autor). Foucault (2013 [1970], p. 25) adverte, neste sentido, que por autor não se deve entender o “indivíduo falante que pronunciou ou escreveu o texto”, mas, sim, como “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de coerência.”

As disciplinas são o terceiro procedimento (ou princípio) de controle (ou limitação) interno dos discursos (FOUCAULT, 2013 [1970], p. 28). O filósofo explicou que uma

110 disciplina não é a soma do que possa ser dito de verdadeiro em relação a uma coisa. Diferente disso, a disciplina cuida das condições de produção de novos enunciados, ou seja, ela estabelece um referente como condição de pertencimento. Nesse sentido, Foucault define disciplina como

(...) um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnica e de instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor.

A noção de pertencimento é importante na concepção de disciplina de Foucault (2013 [1970], pp. 30-34), tanto que ele afirma que, para pertencer a uma disciplina, há condições a serem atendidas. A primeira delas seria a adoção de um mesmo plano de objetos, ou seja, a observância a instrumentos conceituais e técnicas admitidas no âmbito de cada disciplina. A segunda condição seria a situação das proposições em um determinado campo teórico, o que significa dizer que cada disciplina estabelece uma espécie de limite do razoável que, se ultrapassado, teria o condão de converter qualquer discurso em “quimera”, “divagação” ou mesmo em “monstruosidade”. Foucault explicou que o exame de verdade de uma proposição somente seria realizado se cumpridas essas condições de pertencimento. De outro modo, permaneceria no exterior da disciplina, pouco importando se verdadeira ou não a proposição.

Rarefação dos sujeitos que falam

Além dos já mencionados, há um terceiro grupo de procedimentos internos de controle dos discursos, que diz respeito à rarefação dos sujeitos que falam. O funcionamento desse procedimento se dá mediante o estabelecimento de regras para o ingresso de sujeitos na região de onde é permitido pronunciar discursos (FOUCAULT, 2013 [1970], p. 35). Essas regras definem quem pode falar, quem não pode, como se pode e, ainda, em que condições o que se fala é dotado de eficácia (FOUCAULT, 2013 [1970], p. 37).

As sociedades de discurso se constituem no primeiro desses mecanismos de rarefação e o seu funcionamento se baseia na limitação dos que podem ser sujeitos de discurso. Nesse sentido, são estabelecidas regras de ingresso e permanência no âmbito das sociedades, que por isso são consideradas “espaços fechados”, ou seja, não abertos a qualquer um143.

143 Exemplo típico de funcionamento deste procedimento interno de controle seria a crítica formulada por Dosse em A história em migalhas (1994 [1987]), em face da obra História - novos problemas, novas abordagens e novos objetos, de Nicole Fresco. Para evitar repetições enfadonhas, remetemos o leitor à nota de rodapé n.o 138.

111 Já as doutrinas funcionam de modo inverso, pois tendem à difusão. Elas impõem, no entanto, como condição de pertencimento o compartilhamento da crença nas mesmas verdades e a aceitação do exame de conformidade dos enunciados com os discursos de validades (FOUCAULT, 2013 [1970], pp. 39-40). Em outros termos, deve-se acreditar (no) e se submeter ao mesmo referente.

O último mecanismo de rarefação mencionado por Foucault corresponde às apropriações sociais dos discursos. Gregolin (2006, p. 105) explica que o funcionamento desse mecanismo resulta numa espécie de agenciamento, a partir do qual as instituições iriam gerenciar as apropriações dos discursos, ou seja, a distribuição de pertencimento dos discursos às mais diversas positividades.

Princípios de análise

Após se dedicar demoradamente àqueles três grupos de mecanismos de controle, Foucault, também em A ordem do discurso, cuidou de apontar algumas exigências metodológicas de seu projeto analítico orientado ao problema do poder, enunciando o que ele designou de princípios de análise.

Pelo princípio da inversão, Foucault (2013 [1970], p. 49) propôs que se invertesse a lógica tradicional de análise, esta que enxergava na origem e na continuidade pontos positivos. Segundo sustentou, há que se tomar esses elementos como negativos, como instrumentos de rarefação dos discursos, rejeitando-se, assim, uma atividade de caráter meramente interpretativo (hermenêutico).

Quanto ao princípio da descontinuidade, Foucault (2013 [1970], p. 50) afirmou que os discursos devem ser tomados como “práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas que também se ignoram e se excluem”.

Em conformidade com o princípio da especificidade, o discurso não corresponderia a um jogo de significados previamente estabelecidos. Os discursos, como acontecimentos, correspondem a uma singularidade que, somente na prática, ou seja, quando realizados concretamente, encontram o princípio da regularidade (FOUCAULT, 2013 [1970], p. 50).

O quarto princípio é o da exterioridade. De acordo com essa regra, a análise não deve se iniciar no discurso e passar para o núcleo interior e escondido, tentando encontrar algum pensamento que o justifique. O sentido (via) é inverso: partindo-se o discurso para o exterior

112 dele, como disse o próprio filósofo francês: é a “partir do discurso, de sua aparição, de sua regularidade” que se passará à análise das condições externas de possibilidade (FOUCAULT, 2013 [1970], p. 50).

Desta ordem de análise estabelecida, que parte dos discursos para o seu exterior, compreende-se a razão de Foucault ter inaugurado seu projeto investigativo pela abordagem arqueológica. É ela, a Arqueologia, que terá por escopo analisar os saberes no seu âmbito interno, suas regularidades e suas regras de funcionamento. Analisar por que e como as práticas se formam e se modificam, essa tarefa ficará a cargo da “dimensão genealógica” (FOUCAULT, 2014 [1984], p. 17). A Genealogia se destina, então, a investigar a história, com atenção aos momentos de transformação e ruptura, mas sem invocar uma lógica evolutiva de progressão cronológica e, também, sem intentar diluir as diferenças e marcas, tal como se investida de um desejo de enxergar a linearidade como efeito necessário do tempo.

Nesse sentido (FOUCAULT, 2015 [1971], pp. 62-63:

A genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma grande continuidade para além da dispersão do esquecimento; sua tarefa não é a de mostrar que o passado ainda está lá, bem vivo no presente, animando−o ainda em segredo, depois de ter imposto a todos os obstáculos do percurso uma forma delineada desde o início. Nada que se assemelhasse à evolução de uma espécie, ao destino de um povo. Seguir o filão complexo da proveniência é, ao contrário, manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios − ou ao contrário as inversões completas − os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos − não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente.

Segundo Foucault, destarte, o conhecer (“conhecemos”) e o ser (“somos”) são atitudes implicadas reciprocamente. E, ainda, verdade e subjetividade são noções que não comportam uma determinação transcendental (“a verdade” ou “o ser”), mas dependem, ao contrário, de relações que lhes escapam o interior (“raiz”), que são determinadas, ou ao menos muito informadas, por condições de possibilidade que não têm qualquer compromisso com a noção de ordem (por isso ele se refere a “acidente”).

Mas resta claro que, embora a Genealogia tenha por objeto primordial a análise dessas marcas, ela não exclui ou sugere que se negligencie a questão dos saberes. Diferentemente disso, ele reconhece que é o discursivo quem enseja e introduz a análise do que é exterior ao discursivo, ou seja, do não discursivo. O elementar, no entanto, é compreender que os saberes são instaurados não por uma atitude de revelação, de descobrimento, mas a partir de relações

113 de determinação e que são exteriores ao próprio saber. A Genealogia é marcada, destarte, pela centralidade do interesse na questão do poder144, mas pressupõe aquela implicação (poder-

saber), tanto que Foucault afirmou: “não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre poder” (FOUCAULT, 2015 [1975], p. 170).

Em razão disso, embora reconheça que antes não tinha esse entendimento, Foucault (2012 [1977], p. 219)145 afirmou que o seu problema sempre teria sido o poder e sua relação

com a verdade146_147. Adotando como premissa essa relação inafastável, ou seja, a relação

144 Mas que se faça justiça a Foucault em afirmar que a questão do poder, notadamente sua relação com a verdade e a produção do conhecimento (científico ou não) era anunciada desde a “fase” arqueológica, como se extrai do seguinte trecho da A Arqueologia do saber: “Assim concebido, o discurso deixa de ser o que é para a atitude exegética: tesouro inesgotável de onde se podem tirar sempre novas riquezas, e a cada vez imprevisíveis; providência que sempre falou antecipadamente e que faz com que se ouça, quando se sabe escutar, oráculos retrospectivos; ele aparece como um bem - finito, limitado, desejável, útil - que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas ‘aplicações práticas’), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta, e de uma luta política.” (FOUCAULT, 2014 [1969], pp. 147-148).

145 Além dessa expressa “confissão” feita no texto Poder e Saber (1977), que consta nos Ditos e Escritos IV – Estratégia, poder-saber, na parte introdutória de História da Sexualidade 2 – o uso dos prazeres, Foucault (2018 [1984], p. 11-13) reconhece que as “modificações”, os “deslocamentos teóricos” em seu pensamento se deram muito em função de ter ele levado em conta contribuições de outros pensadores contemporâneos seus. Ele se refere expressamente a Dreyfus e P. Rabinow, cujas reflexões e questões permitiram, segundo Foucault, “um trabalho de reformulação teórica e metodológica” de seu projeto primitivo. Essa reformulação tem a ver sobretudo com o “segundo deslocamento teórico”, a partir do qual Foucault se ocupa em desenvolver sua analítica do poder, exatamente por reconhecer a insuficiência da Arqueologia. Essa insuficiência correspondia, na verdade, à primeira tese formulada por Dreyfus e P. Rabinow, que consideravam insustentável a teoria das práticas discursivas elaborada primitivamente por Foucault (a abordagem arqueológica), por ela ser autorreferente e “negligenciar a ideia de que as práticas discursivas são influenciadas pelas práticas sociais nas quais estão, juntamente com o investigador, inseridas. A isto chamamos de ilusão do discurso autônomo” (DREYFUS, RABINOW, 1995 [1983], p. X). Dreyfus e P. Rabinow, consignaram, no entanto, que Foucault, a partir dos anos 1970, teria logrado êxito em “desenvolver um novo método”, que combina a análise arqueológica e “uma dimensão interpretativa que desenvolve a visão hermenêutica de que o investigador está sempre situado e deve compreender o significado de suas práticas culturais a partir do seu próprio interior.” Esse “novo método”, mencionado por Dreyfus e P. Rabinow, corresponde às abordagens de Foucault desenvolvidas a partir do “segundo deslocamento teórico” aludido em História da Sexualidade 2 – o uso dos prazeres, ou seja, às genealogias do poder e da ética de si (ou das subjetividades).

146 “Se eu quisesse fazer pose e assumir uma coerência um pouco fictícia, eu diria que este sempre foi o meu problema: efeitos de poder e produção de ‘verdade’. Sempre me senti pouco à vontade diante desta noção de ideologia tão utilizada nestes últimos anos. Ela foi utilizada para explicar erros, ilusões, representações−anteparo, em suma, tudo que impede a formação de discursos verdadeiros. Ela também foi utilizada para mostrar a relação entre o que se passa na cabeça das pessoas e seu lugar nas relações de produção. A grosso modo, a economia do não verdadeiro. Meu problema é a política do verdadeiro. Mas eu custei a perceber.” (FOUCAULT, 2015 [1978], p. 354).

147 É bem verdade que, mais adiante, na “fase” da “ética de si”, ele irá afirmar: “Meu problema sempre foi, como dizia no início, o das relações entre sujeito e verdade: como o sujeito entra em um certo jogo de verdade. (...) Assim, fui levado a colocar o problema saber/poder, que é para mim não o problema fundamental, mas um instrumento que permite analisar, da maneira que me parece mais exata, o problema das relações entre sujeito e Jogos de verdade.” (FOUCAULT, 2004 [1984] Ditos e escritos V, a ética e o cuidado de si, p. 275). Tratou-se, aí, do “terceiro deslocamento teórico”, realizado “a fim de analisar o problema do ‘sujeito’” (FOUCAULT, 2018 [1984], pp. 10-11). Diante dessas conclusões “divergentes” (atente-se para o fato de que foram apresentadas em momentos distintos, o que justifica o emprego das aspas, de modo a ressaltar que não se tratam de incoerências, mas de “modificações”, como o próprio Foucault designou), resta lembrar que Foucault, até sua morte, nunca parou de pensar. Aquela afirmação anterior em relação ao poder (“o meu problema sempre foi o poder”) era,

114 poder-saber, a Arqueologia e a Genealogia seriam abordagens que se complementariam, consoante assinalou o próprio Foucault (2015 [1975], p. 270):