• Nenhum resultado encontrado

FUNÇÃO SOCIAL (“SOCIOAMBIENTAL”) 316 1 O contexto da ruptura: o antes e o depois da chegada da

6. Contribuição científica

Em seu clássico “Como se faz uma tese”, Umberto Eco aponta quatro requisitos para que se possa considerar que uma tese seja dotada de cientificidade. Para ele, um estudo será científico se: 1) “(...) Debruça-se sobre um objeto reconhecível e definido de tal maneira que seja reconhecível igualmente pelos outros”; 2) diz “do objeto algo que ainda não foi dito ou” revê33 (“rever”) “sob uma ótica diferente do que já se disse”; 3) “o estudo” é (“deve ser”) “útil

aos demais”; e 4) “o estudo” fornece (“deve fornecer”) “elementos para verificação e a contestação das hipóteses apresentadas e, portanto, para uma continuidade pública.”

Sobre o primeiro requisito, o objeto, a presente pesquisa, conforme já exaustivamente demonstrado em tópico específico desta Introdução, destina-se a analisar e escrever uma história dos terrenos de marinha, bem como a problematizar a função socioambiental desse instituto. Foi estabelecido o intento de pesquisar as condições sócio-históricas de invenção dessa categoria de bens, adotando-se os recortes temporais e temáticos de análise em cada

32 A Lei n.º 13.240/2015 decorreu da conversão da Medida Provisória n.º 691, de 31 de agosto de 2015, e a Lei n.º 13.465/2017, da Medida Provisória n.º 759, de 22 de dezembro de 2016.

33 A palavra do texto original foi substituída apenas para ajustar a conjugação adequada para a composição do período.

15 capítulo e se apontando os respectivos instrumentos metodológicos de pesquisa, tudo mediante a devida e necessária justificação.

No que se refere ao segundo requisito mencionado por Eco, que corresponde ao que comumente se denomina ineditismo, impõe-se dizer que, realizadas diversas pesquisas em sites de buscas e bases de pesquisas de publicações acadêmicas34, nenhum dos trabalhos localizados

foi desenvolvido com o subsídio no aporte teórico proposto para a presente investigação, ou seja, a abordagem arqueogenealógica a partir de Foucault. Nos trabalhos identificados, o registro da trajetória normativa dos terrenos de marinha foi, como regra, realizado de maneira descritiva, em alguns casos sob a denominação de “evolução histórica”35. Esta tese, no entanto,

propôs a problematização dos eventos de ruptura, analisando genealogicamente as relações de força que deram causa às descontinuidades de determinadas regras legais ou políticas de destinação.

Ademais, nos trabalhos acadêmicos existentes, a história, como regra, foi tratada apenas de maneira tangencial ou preliminar, servindo como subsídio ou aspecto introdutório para abordagem de outras questões36. Esta pesquisa, entretanto, teve a história como elemento

nuclear, embora, é oportuno advertir, tenha-se conferido a essa análise histórica um caráter interdisciplinar.

É importante pontuar, todavia, que existem livros históricos sobre o assunto. Nesse sentido, são reconhecidas como obras de referência Do domínio da União e dos estados, segundo a Constituição Federal (1897), de Rodrigo Octávio, Terrenos de marinha37 (1904), de

Epitácio Pessoa, Terrenos de marinha (1923), de José Tavares Bastos, Terrenos de Marinha (1927), de Manuel Madruga, Terrenos de marinha – Manual prático (1937), de Jair Resende, Terras de marinha (1985), de Rosita de Sousa Santos, A propósito dos terrenos de marinha (1968), de Jacintho Guglielmi. Há, ainda, coletâneas de atos normativos igualmente de reconhecida relevância, tais como a Coleção de Leis, Provisões, Decisões Circulares, Portarias, Ordens Ofícios e Avisos sobre Terrenos de Marinha (1865), de Pedro Moreira da Costa Lima, e Legislação Patrimonial da União (2002), de Luiz Carlos Cazetta.

34 Google, Google Acadêmico e SciELO, utilizando os argumentos: “terrenos de marinha” e “terras de marinha”. 35 Neste sentido: VALENÇA, 2010.

36 Neste sentido, registre a própria Dissertação de Mestrado elaborada pelo autor da presente tese. Naquele trabalho, a breve narrativa da trajetória histórica se limitou a introduzir o tema que seria o objeto da investigação, que no caso foi o processo de demarcação dos terrenos de marinha. O aspecto histórico, destarte, foi abordado de modo eminentemente descritivo, sem se cuidar ali de qualquer análise crítica ou discursiva.

37 Trata-se da reprodução das razões finais oferecidas em defesa dos direitos da União na Ação de Reivindicação movida pelos Estados da Bahia e Espírito Santo contra a União Federal, conhecida como Ação Originária n.º 8, cujo acórdão foi proferido pelo Supremo Tribunal Federal em 31 de janeiro de 1905.

16 Essas publicações, no entanto, são anteriores à maioria dos diplomas legais que hoje integram o regime jurídico dos terrenos de marinha, de modo que, no presente, tornaram-se necessariamente incompletas pelo decurso dos anos. Por essa razão, é importante se elaborar uma obra de história que contemple a análise também da legislação atualmente em vigor, especialmente, ao que nos interessa, considerando a função social (“socioambiental”) dos terrenos de marinha.

Outra questão relevante é o fato de que os autores(as) de quase todas38 elas eram pessoas

então vinculadas administrativamente à União e que, naquela condição, tinham o dever institucional de representação dos interesses daquele ente (embora com liberdade intelectual, é verdade). O presente trabalho, todavia, foi feito a partir de uma visão não mais informada pela institucionalidade, já amenizada pelos mais de 15 (quinze) anos de distanciamento formal da função antes exercida na SPU.

Além do mais, em todas as obras citadas nos parágrafos antecedentes, a história dos terrenos de marinha é apenas objeto parcial, já que nelas também são tratados aspectos relativos aos regimes de utilização, obrigações pecuniárias, etc. No presente trabalho, diferentemente disso, a história é o fim, não um meio.

Em relação ao terceiro requisito, a utilidade, a presente pesquisa contém, em primeiro lugar, uma análise da trajetória histórica dos terrenos de marinha, que tem valia como fonte de pesquisa para a compreensão da invenção, desenvolvimento e funcionamento desse instituto.

Mas mais que isso, a elaboração de cada um dos capítulos de desenvolvimento (Capítulos 2 e 3) se deu com o escopo de ensejar reflexões sobre o funcionamento do regime jurídico dos terrenos de marinha, de modo a pontuar as consequências práticas desse funcionamento, ou seja, como se realiza concretamente sua “função social”39, com especial

relevância para os aspectos político, econômico, social e os efeitos sobre a natureza40.

38 As exceções são “Terrenos de Marinha” (1923), de autoria do Juiz Federal José Tavares Bastos, e “A propósito dos terrenos de marinha” (1968) de Jacintho Guglielmi, o qual exercia a função delegada de Escrevente de Cartório.

39 A noção atual de função social não existia quando foram inventados os terrenos de marinha. A primeira Constituição a mencionar a “função social da propriedade” foi a de 1967, sendo a expressão mantida pela “Constituição” de 1969. Somente com a Constituição de 1988, no entanto, é que princípio da função social foi estabelecido para alcançar inclusive a propriedade pública e, ainda, estando vinculado ao aspecto ambiental. 40 A noção de sustentabilidade e de desenvolvimento sustentável, conforme tratado em tópico alusivo à função social (“socioambiental”) (3.4.3 do Capítulo Primeiro), remontam apenas há segunda metade do século XX. A interação de ser humano com a natureza, contudo, sempre foi objeto de reflexões religiosas, filosóficas e científicas.

17 No que concerne ao quarto requisito, a verificabilidade, durante toda a pesquisa se cuidou de apontar, ao lado das argumentações e conclusões, todas as fontes nela referenciadas, além do aporte teórico que se prestou a instrumentalizar a elaboração de cada argumento. Assim, plenamente viabilizada a verificação da (im)propriedade dos argumentos elaborados, bem como sua eventual contestação.