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Uma brevíssima 158 história de uma propriedade.

FUNÇÃO SOCIAL (“SOCIOAMBIENTAL”) 316 1 O contexto da ruptura: o antes e o depois da chegada da

1. A genealogia da Arqueogenealogia a partir de Foucault

3.1. Uma brevíssima 158 história de uma propriedade.

157 Acrescentaria, na atualidade, alguns ministros das mais diversas religiões, notadamente os que adotam e se servem da “doutrina da prosperidade”, ou de fragmentos dela, assim como alguns especialistas em coaching de finanças.

158 Apesar de “brevíssima” e, por isso mesmo, impregnada de reduções, esta “brevíssima história” se conforma aos regimes de veridicção que regem, no presente, a produção de escritos científicos sobre o tema. Neste sentido, o exame de textos acadêmicos relacionados à propriedade irá demonstrar ser a práxis promover a escolha de fragmentos de histórias diversas, a fim de ajustá-lo em uma narrativa supostamente linear. Diria até ser possível enxergar em alguns escritos a prática que La Boétie (2009 [1576], p. 31) reprovou em Ulisses, de “adequar o discurso mais à circunstância que a verdade.” Em outros termos, o que muito se observa são narrativas construídas para se adequarem aos propósitos de determinada pesquisa, em lugar de se preocuparem em corresponder minimamente a alguma realidade objetiva que pudesse por elas ser representada. Foi o que fiz neste tópico “Uma brevíssima história de uma propriedade”. Se não justifica e escusa, ao menos adverte o leitor de que se trata disso que acabei de descrever. É uma confissão que faço. Confesso, também, que relutei em escrever, mas terminei tendo

123 Consignadas as advertências necessárias quanto à delimitação do objeto deste tópico da pesquisa, impõe-se afirmar que a propriedade será aqui tratada como “o direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, bem como de reivindicar de quem injustamente o detenha” (DINIZ, 2004, p. 865). Atento ao objeto desta pesquisa, desnecessário dispensar maiores delongas para justificar a adesão a esse conceito de propriedade, bastando assinalar que ele se encontra em conformidade com a atual disciplina normativa desse instituto no Brasil, nos termos do que dispõe o caput do art. 1.228159 do Código Civil. A propriedade consubstancia, destarte, um

vínculo jurídico entre o proprietário e a coisa, mas que repercute também em relação aos que não são proprietários, na medida em que assegura àquele o direito de reivindicar seu bem dos que eventualmente o detenham de forma indevida.

Ao lado dessa prerrogativa conferida ao proprietário, é também a este imposta a obrigação de exercer seu direito “em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”160. Essa ideia de limites normativos “materializaria”

o preceito estabelecido no art. 5.º, inciso XXIII, da Constituição de 1988, que ordena que o exercício do direito de propriedade deve atender à sua função social.

Esse conceito de propriedade, institucionalizado como um direito individual e, notadamente, também como um direito condicionado a uma função social (“socioambiental”),

que fazer, pois parece que um trabalho que trate de propriedade fica incompleto quando não se faz algo do tipo. É como se houvesse uma regra cogente e invisível, uma voz que fala precedentemente, que nos impele a dedicar muito tempo para juntar fragmentos de histórias, em certos casos de estórias, e dizer o que foi ou que poderia ter sido a propriedade em outro lugar e em outro tempo. O pior de tudo é que essas “brevíssimas histórias”, terminam por apagar toda a tensão que existiu e que mereceria, a meu ver, o devido registro. Mas as rupturas desaparecem, pois é mais atraente uma narrativa linear e ligeira, que flua de tal modo a ponto de sugerir o funcionamento de uma lógica evolutiva. E quando se tratam de pesquisas sobre a propriedade no Brasil, infelizmente o que direi é a regra em relação a essas narrativas: ignora-se quase que completamente o exame dos arranjos sociais dos nativos que aqui viviam antes de 1500, corroborando o discurso colonial (e colonizado produzido depois e em função daquele) que aponta para a pouca ou nenhuma importância do modo como pensavam e viviam os habitantes do “Brasil” antes da conquista portuguesa. Se “perdi” tempo cumprindo a obrigação de escrever uma brevíssima história sobre uma propriedade, minha culpa pela “perda” de tempo foi mitigada pelo fato de eu ter registrado a experiência dos nativos e, ainda, por ter escrito essa nota, para o fim de manifestar a rejeição a essa falsa ideia de unidade e linearidade na história “da” propriedade e, ademais, da vocação que tem a produção acadêmica à reprodução dos modos de fazer.

159 “Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”

160 O trecho transcrito corresponde ao §1.º do art. 1.228 do Código Civil, situado logo em seguida à apresentação do conceito legal de propriedade.

124 foi produzido em um longo itinerário de tensões, o qual interessa apenas referenciar em brevíssima síntese.

Recorrendo-se a Fustel de Coulanges (2009 [1864], p. 73) para iniciar o fazimento (e não o refazimento) da representação desse itinerário, convém registrar que, segundo ele, haveria uma relação manifesta e indissociável entre a religião doméstica, a família e o direito de propriedade. Referindo-se a costumes que remontavam ao período anterior à antiguidade clássica161, o historiador francês apontou que a afetação de determinados espaços físicos ao

exercício do culto religioso doméstico e ao sepultamento dos mortos terminou por converter aqueles lugares ao uso exclusivo por determinada família, à qual seria outorgado, por uma ordem sagrada superior e em caráter perpétuo, o direito de propriedade como dádiva divina. A propriedade privada teria surgido, assim, com fundamento em preceitos de caráter religioso, que autorizariam aquela instituição (família) a se apropriar de certa porção de terra. Essa noção de propriedade como espaço sagrado terminou por conferir um grau de proteção que autorizou muitos a sustentarem que a propriedade se constituiria um direito de caráter absoluto.

Para Locke (2002 [1690], p. 29-42), a religião também teria estreita relação com o direito de propriedade. Sustentava o filósofo inglês que Deus teria concedido o mundo e tudo o que este contém a todos os homens coletivamente. No entanto, ao expedir o comando para que o homem exercesse o domínio sobre esse acervo de bens, o próprio Deus também teria autorizado a apropriação individual de parte do que havia sido conferido a todos, estabelecendo como medida para essa apropriação a possibilidade de transformação da terra pelo trabalho de cada um. Sobre essa questão, oportuno se recorrer ao que disse o próprio Locke (2002 [1690], p. 30):

Embora a Terra e todas os seus frutos sejam propriedade comum a todos os homens, cada homem tem uma propriedade particular em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra das suas mãos, pode-se afirmar, são propriedade dele. Seja o que for que ele retire da natureza no estado em que lhe forneceu e no qual o deixou, mistura-se e superpõe-se ao próprio trabalho, acrescentando-lhe algo que pertence ao homem e, por isso mesmo, tornando- o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, agregou-lhe com seu trabalho um valor que o exclui do direito comum de outros homens. Uma vez que esse trabalho é de propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem tem direito ao que foi agregado, pelo menos quando houver bastante e também de boa qualidade em comum para os demais.

161 Há, contudo, uma ressalva a se fazer em relação ao fato de Coulanges considerar as tais sociedades antigas como “italianas”, daí se justificando o emprego das aspas, que, além de apontarem a ressalva, indicam que se trata de expressão usado pelo autor citado. Na verdade, aquelas sociedades somente poderiam ser assim consideradas “italianas” em razão de se situarem na península Itálica, e não por estarem reunidas sob a forma de um Estado italiano. Rememoremos que, com a desagregação do Império Romano, resultou a sua divisão em várias cidades- estados independentes. A Itália, como Estado unitário, somente (re)nasceu no ano de 1861.