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Apresentação e delimitação do tema.

FUNÇÃO SOCIAL (“SOCIOAMBIENTAL”) 316 1 O contexto da ruptura: o antes e o depois da chegada da

1. Apresentação e delimitação do tema.

Os terrenos de marinha têm sua definição estabelecida pelo art. 2.º do Decreto-lei n.º 9.760/1946, cuja redação é a seguinte:

Art. 2.º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831:

a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;

b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.

Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.

Embora esse conceito remonte apenas ao ano de 1946, os terrenos de marinha, em termos de cronologia, foram inventados alguns poucos anos antes de o Brasil ser declarado um Estado independente, mais precisamente no ano de 1809, por força do Decreto de 21 de janeiro

3 daquele ano, expedido por Dom João, sediado no Rio de Janeiro em decorrência da transferência forçada da Corte Portuguesa para o Brasil no ano anterior.

A despeito de terem mais de dois séculos de história, ao longo de todos esses anos, a existência e a disciplina legal desse instituto4 nunca foram incontroversas e estáveis. A

construção do conceito hoje vigente, bem como do seu regime5 de utilização, representam uma

trajetória essencialmente desviante, marcada por descontinuidades determinadas pelos jogos de forças e interesses a ele relacionados. Sempre houve tensão no que se refere à disciplina dos terrenos de marinha (SANTOS, 1985, pp. XV/22), tanto que não de agora são frequentes os debates legislativos (SANTOS, 1985, pp. 30/36; RESENDE, 1937, pp. 9-10; PESSOA, 1904, p. 29) e questões judiciais (SANTOS, 1985, p. 24) em torno desse tema.

As controvérsias em relação aos terrenos de marinha subsistem até o presente, sendo que as mais relevantes dizem respeito aos reflexos que a demarcação desses bens produz em desfavor daqueles que os ocupam com crença de serem detentores do domínio. Sobre essa questão, não obstante a bissecular existência, os terrenos de marinha ainda não foram devidamente identificados na maior parte do litoral brasileiro6, ante a ineficiência da União em

concluir tal intento. Somado a isso, há o fato de que, durante boa parte do século XIX, o ente nacional7 (hoje, União) adotou a recorrente prática de atribuir a estados e municípios a

4 Sobre a possibilidade de qualificar os terrenos de marinha como instituto, ou seja, um “regime instituído” (ver verbete Priberam, Dicionário online da língua portuguesa), nesse sentido é a posição de Clóvis Beviláqua ([1908] 2001, p. 375) e Santos (1985, p. 35), esta que afirma: “A terra de marinha não era mais, tão somente, um uso, ou um entendimento aplicado pelo poder régio à colônia. Tornara-se já uma figura jurídica, um instituto, como o chama Clóvis [Beviláqua], alçando maioridade, e expressão autônoma, para figurar nos projetos do Código Civil que, então, ocupavam o interesse e o denodo dos estudiosos.”

5 A legislação que rege a matéria é deveras extensa. A principal norma legal é, no entanto, o Decreto-lei n.º 9.760/1946, denominada por alguns de “Lei do Patrimônio” (SANTOS, 1982, p. 50). Outras leis importantes, das quais merece registro a Lei n.º 9.636/1998 (Dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União, altera dispositivos dos Decretos-Leis nos 9.760, de 5 de setembro de 1946, e 2.398, de 21 de dezembro de 1987, regulamenta o § 2º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e dá outras providências), encontram-se relacionadas no site da Secretaria do Patrimônio da União, especificamente no link: http://www.planejamento.gov.br/assuntos/patrimonio-da-uniao/legislacao/leis-1. 6 De acordo com o Plano Nacional de Caracterização (PNC), apenas 23,3% (vinte e três inteiros e três décimos) dos terrenos de marinha se encontravam demarcados em dezembro de 2017 (última referência identificável no site da SPU acerca do assunto). Esse percentual corresponde a 4.625,984km (quatro mil, seiscentos e vinte e cinco inteiros e novecentos e oitenta e quatro milésimos de quilômetros). Restam a demarcar, assim, 15.261,281km (quinze mil, duzentos e sessenta um inteiros e duzentos e oitenta e um milésimos de quilômetros), da faixa litorânea, cuja dimensão total, considerando as reentrâncias, equivale a 19.887,265km (dezenove mil, oitocentos e oitenta e sete inteiros e duzentos e sessenta a cinco milésimos de quilômetros). A ausência de dados mais recentes se deve ao fato de que, no que concerne à disponibilização de informações no site da SPU (www.patrimoniodetodos.gov.br), a gestão instaurada a partir da sucessão presidencial imprópria (também passível de ser designado de outro modo) de 2016 era extremamente deficiente, sobretudo se comparada àquela que se encontrava em atividade até a aludida “sucessão”. O referido PNC, por exemplo, é uma reedição do que havia sido elaborado anteriormente, mas sem a alusão correta quanto às datas de elaboração original (2015) e de reedição (2017). A situação da transparência e informação piorou, e muito, em relação à gestão iniciada em 2019. 7 O ente nacional de então seria o Império brasileiro, que hoje tem na União o seu corresponde.

4 administração dessas áreas, do que resultou a concessão de direitos reais ou mesmo a alienação, em favor de particulares, de espaços posteriormente identificados como terrenos de marinha. Como consequência, significativa parcela das áreas que são demarcadas como terrenos de marinha já é ocupada por detentores de títulos transcritos, passados originariamente, na maioria dos casos, por estados e municípios e, por isso mesmo, com toda a aparência de validade e eficácia, dando a entender que os seus beneficiários são, de fato e de direito, os donos dessas áreas. Com a demarcação dos terrenos de marinha, contudo, passam esses antigos “proprietários”8 à condição de meros ocupantes, sujeitando-se, além de à “perda” do domínio

sobre o imóvel, à submissão a várias obrigações e encargos de caráter pecuniário, dos quais têm maior relevância os pagamentos das taxas de ocupação, dos foros e do laudêmio.

Em razão dessas e de outras polêmicas, tramitam no Congresso Nacional diversos projetos9 que visam à alteração da Constituição e da legislação ordinária que rege esse instituto.

Há proposições pretendendo a modificação do conceito de terrenos de marinha, notadamente para o fim de substituir o marco temporal levado em conta para sua demarcação (que hoje se refere à média das preamares do ano de 1831), que reduzem ou extinguem os encargos pecuniários exigidos pelos ocupantes ou foreiros, outras que intentam a mudança quanto à titularidade do seu domínio, havendo, ainda, iniciativas legislativas que pretendem a extinção dessa categoria de bens.

Nos debates realizados no âmbito dessas propostas legislativas, bem como nos dissídios judiciais ou administrativos em que se questionou a existência ou o regime jurídico estabelecido para os terrenos de marinha, os argumentos apresentados pela União em defesa do instituto sempre tiveram como principal fundamento o seu potencial arrecadatório (MADRUGA, 1937, p. 209), tanto que a disciplina normativa do tema foi desenvolvida no seu início principalmente nas leis nacionais orçamentárias (SANTOS, 1985, pp. 18/50/61).

Além do fundamento econômico (eminentemente fiscal), também o político sempre informou a disciplina legal desse instituto, o que é revelado, dentre outras coisas, pela recorrente

8 Juridicamente, o que se reconhece é que os detentores de títulos de “domínio” sobre terrenos de marinha nunca foram os seus reais proprietários, pois esses documentos não são oponíveis à União. Sobre o tema, diz o seguinte a Súmula 496 do Superior Tribunal de Justiça: “Os registros de propriedade particular de imóveis situados em terrenos de marinha não são oponíveis à União”.

9 No âmbito do Senado Federal, encontram-se em tramitação 3 (três) propostas de emenda constitucional (SF PEC n.º 56/2009, SF PEC n.º 71/2013 e SF PEC n.º 50/2015) e 4 (quatro) projetos de lei (SF PLS n.º 256/2011 SF PLS n.º 342/2015, SF PLS n.º 424/2015 e SF PLS n.º 714/2015). Na Câmara dos Deputados, tramitam também 3 (três) propostas de emendas à Constituição (PEC n.º 603/1998, PEC n.º 16/2015 e PEC n.º 27/2015), além de 9 (nove) projetos de lei (PL n.º 1828/1991, PLP n.º 116/2007, PL n.º 6752/2010 PL n.º 3891/2012, PL n.º 5016/2013, PL n.º 951/2015, PL n.º 2203/2015, PL n.º 5891/2016 e PL n.º 9851/2018).

5 invocação de questões relativas à segurança e à infraestrutura para o fim de justificar a necessidade de manutenção da propriedade pública e, em especial da União (ente federal)10,

sobre os terrenos de marinha. Não à toa, então, foi estabelecido originalmente o regime de enfiteuse11 como instrumento primordial de destinação dessa categoria de bens, exatamente por

resguardar os direitos do senhorio sobre a propriedade, ainda que conferida a um particular (foreiro) a sua utilização (domínio útil, no caso).

Ocorre que a União, ao longo dos anos, mas em especial nas últimas 3 (três) décadas, tem acrescentado outros fundamentos à defesa do instituto, passando a invocar como argumentos a necessidade de incrementar a proteção dos ecossistemas costeiros, bem como a possibilidade de destinação dessa categoria de bens para a implementação de projetos de socialização dos espaços públicos litorâneos, especialmente de regularização fundiária. Nesse sentido, em audiência pública realizada no dia 9 de setembro de 2015, a então Secretária do Patrimônio da União, declarou o seguinte:

Hoje se estabelece uma política patrimonial focada com o cumprimento de medidas sociais e ambientais, do desenvolvimento local e de diminuir desigualdades regionais tudo isto em harmonia com a questão arrecadadora.12

10 Neste sentido, referencie-se o teor do Aviso de 16 de setembro de 1916, expedido pelo Ministério da Fazenda, em razão da deliberação do Projeto n.º 68, de inciativa da Câmara dos Deputados, por meio do qual se propunha a autorização da venda dos terrenos de marinha. Em trecho do aludido Aviso, afirma-se o seguinte: “Os terrenos de marinha têm uma função muito importante na defesa da costa, construção de portos e outras obras, não convido, pois, que o patrimônio nacional deles se prive definitivamente.” (SANTOS, 1985, pp. 36-37).

11 O regime de enfiteuse, ou aforamento, é instituto que tem origem no Direito Romano clássico (PEREIRA, 1922, p. 293), mas que teve seus contornos delineados sobretudo na idade média (SANTOS, 1985, p. 62). Em apertada síntese, funciona por meio da concessão, a um não proprietário (foreiro), de direitos reais sobre a propriedade imobiliária. Embora a questão sobre a efetiva transferência de domínio (útil) seja controvertida (PEREIRA, 1922, p. 299; SANTOS, 1985, pp. 80/86), diz-se comumente que o senhorio (proprietário que constitui a enfiteuse) permanece com o domínio direto sobre o bem, ao passo em que o domínio útil seria transferido ao enfiteuta/foreiro (SANTOS, 1985, p. 79). Esse instituto, de objetivos mercantilistas e cuja função primordial seria a facilitação de processos de povoamento (SANTOS, 1985, p. 63), teve referência expressa no art. 49 dos Atos da Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que, sem determinar propriamente a sua extinção, estabeleceu esse intento como programa a ser disciplinado pela legislação ordinária. Ao ensejo desse comando constitucional, o Código Civil de 2002, em seus art. 2.038, proibiu expressamente a constituição de novas enfiteuses, mas ressalvou, no §2.º do mesmo artigo, que os aforamentos dos terrenos de marinha continuavam regulados por lei especial. Tal disposição se conformava ao comando superior estabelecido no art. 49, 3.º, dos ADCT, que prescreveu a continuidade da aplicação do regime de enfiteuse, ao menos para os terrenos de marinha situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima. O resumo desse (já resumido) relato é que a enfiteuse é instituto em processo de extinção, com a ressalva de sua subsistência obrigatória apenas para os terrenos de marinha situados na faixa de segurança ao longo da orla marítima.

12 O link alusivo à matéria de onde foi extraído o texto acima transcrito é (ou era) o seguinte:

https://gestao.patrimoniodetodos.gov.br/pastanoticia.2009-07-02.8239097967/secretaria-defende-manutencao- dos-terrenos-de-marinha. Contudo, após a “sucessão” presidencial imprópria ocorrida em 2016, o site da SPU foi completamente alterado, infelizmente para pior, ressalte-se! As buscas por documentos são custosas, nada intuitivas, tendo sido excluídas diversas notícias e atos realizados pelas gestões anteriores àquela aludida “sucessão”.

6 O projeto de compatibilização dos aspectos ambiental e social com a função arrecadatória dos terrenos de marinha foi registrado em um dos slides exibidos por ocasião daquela audiência pública. Nele, conforme se verá a seguir, foram apontadas ações que dariam lastro ao argumento apresentado pela aludida Secretária.

Imagem 01 - Slide 7/32: Apresentação audiência pública no Senado Federal (9 de setembro de 2015).

Fonte: Portal da SPU na Internet13.

Essa tríade de valores, ambiental, social e econômico (“arrecadatório”), corresponde ao que se convencionou chamar de tripé da sustentabilidade14, sendo inclusive contemplada na

missão institucional estabelecida pela e para a SPU, a qual tem o seguinte teor:

Conhecer, zelar e garantir que cada imóvel da União cumpra sua função socioambiental, em harmonia com a função arrecadadora, em apoio aos programas estratégicos para a Nação.

Após a sucessão presidencial “imprópria”15_16 ocorrida em 31 de agosto de 2016, as

manifestações institucionais da SPU mantiveram formalmente esses argumentos defensivos, conforme se pode extrair da apresentação realizada pelo Secretário do Patrimônio da União

13 O arquivo da apresentação disponível em: http://www.planejamento.gov.br/apresentacoes/apresentacoes-2015. 14 Ao tema sustentabilidade este trabalho dedicará atenção quando problematizada a função social (“socioambiental”) dos terrenos de marinha, especificamente nos tópicos 3.2 e 3.4.3 do Capítulo Primeiro. 15 As aspas foram empregadas para ressaltar que se trata de eufemismo. Em lugar de imprópria, caberiam bem os adjetivos inconstitucional e ilegítima.

16 Há juízo de valor na expressão utilizada, mas não se pode excluir a possibilidade dessa atitude em trabalhos acadêmicos, sobretudo teses de doutoramento, em que deve ser a tônica a originalidade, ou seja, o caráter autoral do trabalho.

7 durante o XIX Encontro de Gestão do Patrimônio da União, de acordo com o slide a seguir reproduzido:

Imagem 02 - Slide 4/56: Apresentação Secretário do Patrimônio da União durante o XIX Encontro de Gestão do Patrimônio da União (30/01 a 03/02/2017).

Fonte: Portal da SPU na Internet.17

Mais recentemente, em abril de 2018, por ocasião do XX Encontro de Gestão do Patrimônio da União, foi estabelecida como primeira diretriz de atuação da SPU a “Destinação [de imóveis] para políticas de inclusão sócio territorial (sic), preservação ambiental;”, nos termos do slide que integrou a apresentação da alçada do Departamento de Destinação Patrimonial da SPU, que a seguir se encontra reproduzido:

17 O arquivo da apresentação disponível em: http://www.planejamento.gov.br/eventos/2017/xix-encontro-de-

8 Imagem 03 - Slide 2/39: Apresentação SPU/DEDES durante o XX

Encontro de Gestão do Patrimônio da União (abril de 2018).

Fonte: Portal da SPU na Internet.

Esse panorama revela que, segundo a SPU, a continuidade do regime jurídico dos terrenos de marinha seria imperiosa, pois a função socioambiental desse instituto estaria em conformidade com aqueles três pilares da noção de sustentabilidade.

2. Problema.

A despeito desse anunciado projeto de contemplação dos aspectos ambiental, social e econômico, o que se constata18 é que a disciplina jurídica e a própria existência dos terrenos de

marinha são questões bastante controvertidas, tanto que, embora seja longo o rol de bens da União estabelecido pelo art. 20 da Constituição de 198819, somente em relação àquela categoria

de bens existem proposições legislativas visando à extinção/transferência do domínio da União.

18 O principal indicador dessa constatação é a quantidade de proposições legislativa sobre o tema, conforme já mencionado neste trabalho. Uma singela consulta temática ao site de buscas Google também chancelará esse argumento.

19 Os bens de propriedade da União são elencados no art. 20 da Constituição de 1988. Em consulta aos sites da Câmara e Senado, ao menos até a data desta consulta (07/05/2018), não há registro de proposições que visam à exclusão do domínio da União em relação a qualquer outra categoria de bens imóveis, que não aos terrenos de marinha. Em relação às terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, que pertencem à União por força do disposto no art. 20, XI, não há em tramitação propostas de emenda constitucional visando a excluir o domínio daquele ente Federal, embora o atual titular do Poder Executivo Federal tenha alardeado que não promoverá, em manifesta desobediência ao texto constitucional, a demarcação daquelas áreas.

9 Ao ensejo dessa e das demais controvérsias antes aduzidas, o problema objeto da investigação desenvolvida nesta tese consiste na elaboração de uma análise histórica dos terrenos de marinha, informada pela abordagem já antes indicada (Arqueogenealogia a partir de Foucault), bem como da problematização da função social (“socioambiental”) desse instituto.

Como questões norteadoras desta pesquisa, foram elaboradas as seguintes:

Por que foram inventados os terrenos de marinha? A quem interessou essa invenção e a quem interessa a subsistência desse instituto? Se de fato ele atende aos elementos que integram o tripé da sustentabilidade (ambiental, social e econômico), por que é tão contestado? Sua manutenção é imprescindível no presente? E num esforço de síntese dessas, poder-se-ia apontar a seguinte questão: quais os mecanismos, técnicas e relações de poder que funcionaram para inventar os terrenos de marinha e, no presente, que funcionam por meio deles?