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Os procedimentos metodológicos

FUNÇÃO SOCIAL (“SOCIOAMBIENTAL”) 316 1 O contexto da ruptura: o antes e o depois da chegada da

8. Aporte metodológico e teórico.

8.1. O introito ao referencial metodológico e teórico.

8.1.3. Os procedimentos metodológicos

Como usar essa noção de Arqueogenealogia para a investigação histórica dos terrenos de marinha? Como, valendo-se dessa analítica do poder (ou do poder-saber), problematizar a atual função social (“socioambiental”) dessa categoria de bens imóveis da União? Este subtópico se destina a tratar dessas questões e descrever como o aporte teórico e metodológico foi utilizado nas atividades de análise realizadas nos Capítulos Segundo e Terceiro.

Far-se-á, aqui, uma descrição de procedimentos e das etapas da pesquisa, mas não se olvidará de apontar o aspecto comportamental de pesquisar com Foucault, o que nos faz pedir vênia para falar em primeira pessoa46.

46 Caso considerado impróprio ou incompatível com o discurso acadêmico, desde já manifesto minhas escusas e, sendo assim orientado pela Banca, comprometo-me a ajustar a redação final da tese a essa prescrição.

25 a) A atitude investigativa

A opção por pesquisar com Foucault, por utilizar uma Arqueogenealogia a partir dele, representa, a contrário sensu, não pesquisar a partir do aporte teórico e metodológico de outros autores. Significa, portanto, um manifesto de adesão ao que possa ser considerado como o conteúdo elementar do seu programa teórico, bem como o reconhecimento de que seu pensamento, ao menos para o objeto desta tese, é o instrumental mais adequado para a investigação proposta. Esse ato de escolha (e de não escolha), de adesão e de reconhecimento, reveste-se também, ainda que de forma mediata e inconfessada (por alguns, não por mim, que já admiti isso expressamente), da intenção de imitar determinado modo de proceder. A decisão de pesquisar com uma Arqueogenealogia a partir de Foucault é, portanto, o gesto primeiro de tentar parecer com este filósofo.

No que pretendi imitá-lo? Em primeiro lugar, em sua atitude investigativa. O professor Roberto Machado, o “amigo brasileiro de Foucault”, bem registrou que seu “amigo francês”, ao iniciar uma investigação, motivava-se pelo intento de “provar que aquilo do qual todo mundo fala não existe”. A resposta de Foucault apontava, assim, para uma postura de desconfiança em relação àquilo que é dado, mesmo, e talvez sobretudo, quando esse algo dado é tomado como naturalizado. Também evidenciava um desapego à ilusão das certezas e, ainda, um desejo, senão de subvertê-las, como disse Machado, ao menos de desfazê-las.

Esse intento, todavia, Foucault não realizava levianamente, ou seja, não desconfiava ou questionava apenas para “ser do contra”. Destarte, seja quanto às motivações e, sobretudo, quanto ao modo, ele desenvolveu um respeitável programa teórico e metodológico de investigação.

Como deixei claro ao apresentar as “justificativas pessoais” para realizar esta pesquisa, vontade semelhante foi a que me motivou a investigar a fala institucional da SPU, no sentido de que o regime jurídico dos terrenos de marinha incrementaria a proteção ambiental dos ecossistemas costeiros, que funcionaria como instrumento para realização de políticas sociais, bem como que essa categoria de bens seria relevante do ponto de vista da arrecadação de receitas patrimoniais. Nesta Tese, ponho em questão essa fala, problematizo a função social dos terrenos de marinha, para, tal como Foucault, “provar que aquilo do qual todo mundo [da SPU] fala não existe”. E para não intentar fazê-lo de qualquer jeito, valho-me do programa de Foucault, com os ajustes que o designer das ferramentas autorizou que fossem feitos.

26 b) A rede conceitual

Foucault desenvolveu uma extensa rede conceitual (CASTRO, 2004; (FISCHER, 2012; VEYNE, 2014), tanto que há no mercado editorial algumas obras destinadas a tratar especificamente dessa temática, cabendo aqui referenciar o Vocabulário de Foucault, de Edgardo Castro, e Foucault: conceitos essenciais, de Judith Revel, para me limitar aos livros que conheço, li, utilizei e referenciei.

Essa gama de conceitos foi elaborada por Foucault para o fim de instrumentalizar suas pesquisas, por considerar inadequados ou insuficientes aqueles que já se encontravam à sua disposição quando se pôs a investigar novos47 “objetos”. Pode-se dizer, por conseguinte, que a

“caixa de ferramentas” de Foucault não se restringe às abordagens, especialmente sua Arqueologia e sua Genealogia, ou às prescrições gerais e princípios de caráter metodológico. Ela compreende, também, diversos conceitos, que foram criados mediante operações de neologismo ou, ainda, por meio de derivações a partir de noções anteriores48.

Para se aclarar o argumento antes apresentado, tomemos como exemplo o conceito de “acontecimentalização”, inventado para denotar a ideia de algo (acontecimento) produzido, feito acontecer mediante esforço deliberado, e não como resultado de uma racionalidade pretensamente objetiva. Cite-se, ainda, o conceito de “dispositivo”, desenvolvido ao ensejo das análises genealógicas, mas cuja noção, no programa de Foucault49, não coincide ou está contida

em quaisquer das definições estabelecidas pela lexicografia normativa.50 Essa criativa e

criadora atitude de Foucault remete, como propriamente mencionaram os comentadores citados

47 Sobre a criação conceitual ensejada pela necessidade de investigar novos objetos, Foucault (2007 [1966], p. 346) afirmou o seguinte: “O que mudou, na curva do século, e sofreu uma alteração irreparável foi o próprio saber como modo de ser prévio e indiviso entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento; se se começa a estudar o custo da produção, e não mais se utiliza a situação ideal e primitiva da permuta para analisar a formação do valor, é porque, ao nível arqueológico, a produção como figura fundamental no espaço do saber substituiu-se à troca, fazendo aparecer, por um lado, novos objetos cognoscíveis (como o capital) e prescrevendo, por outro, novos conceitos e novos métodos (como a análise das formas de produção).” Esse é também o pensamento de Deleuze e Guattari (1997 [1991], pp. 26-27), que associam a criação de um conceito à problematização: “Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução: (...)”

48 A ideia aqui sustentada é a mesma explicada por Deleuze e Guattari (1997 [1991], pp. 29-30): “Num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, já que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado.”

49 Rememore-se, Foucault (2015 [1975], p. 364) define dispositivo como sendo: “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos.” 50 Para o verbete “dispositivo, o dicionário Priberam da língua portuguesa apresenta as seguintes definições: “Dispositivo. Adjetivo 1. Que encerra disposição, ordem, prescrição. Substantivo masculino

2. Mecanismo destinado à obtenção de certo fim.” Disponível em: https://dicionario.priberam.org/dispositivo. Acesso em: 9 jun 2019.

27 acima, à ideia de funcionamento em rede, de “encruzilhada” (DELEUZE, GUATTARI, 1997 [1991], p. 30), exatamente porque a correta apreensão do significado dos conceitos exige a compreensão do contexto de enunciação e, ainda, das interrelações que se estabelecem com outros conceitos.

Uma pesquisa que se pretenda orientada pela Arqueogenealogia a partir de Foucault requer a adesão (à) e o emprego dessa rede conceitual, o que consubstancia uma prescrição de caráter teórico, não se tratando, portanto, de mera opção semântica ou estilística, já que essa exigência de conformidade atende a um imperativo metodológico e, no nível mais elementar, também procedimental.

Nesse mister, não se pode, por exemplo, dizer que se promove uma analítica do poder, a partir de Foucault, mas centrar a investigação em uma atividade eminentemente hermenêutica de textos de lei, por melhores ou mais eruditos que sejam os resultados dela. No mesmo sentido, não se pode considerar como investigação genealógica uma que cuide de acontecimentos de ruptura, como, ilustrativamente, as mudanças no regime dominial (da propriedade), mas para o fim de lhes conferir o caráter de evento decorrente de uma lógica evolutiva. Há, destarte, que se conservar um mínimo de coerência conceitual com o programa de Foucault, sob pena de se dizer que se pesquisa com ele quando, na realidade, invoca-se apenas a sua autoridade para chancelar um modo diverso de investigar.

É bem verdade que não se exige que essa adesão alcance todos os conceitos de Foucault, o que se poderia considerar óbvio, dada a impossibilidade material de se realizar feito antológico dessa envergadura. Mas a ressalva a essa pretensão de completude tem mais a ver com a própria natureza da adesão, que, como disse acima, é teórica e, por isso mesmo, relaciona- se (com) e em parte é determinada pelo objeto da investigação.

Além disso, o próprio Foucault, que foi o “autor” dos conceitos e, digamos, o “designer” da “caixa de ferramentas”, deixou muito claro51 que não impunha a observância a uma fórmula

rígida de utilização de suas abordagens. Se reputava mesmo um livro como “evento minúsculo, pequeno objeto manejável”, certamente dispensava aos seus conceitos semelhante 51 Cite-se, a propósito: “Todos os meus livros, seja História da loucura seja outro, podem ser pequenas caixas de ferramentas. Se as pessoas querem mesmo abri-las, servirem-se de tal frase, de tal ideia, de tal análise como de uma chave de fenda, ou de uma chave-inglesa, para produzir um curto-circuito, desqualificar, quebrar os sistemas de poder, inclusive, eventualmente, os próprios sistemas de que meus livros resultaram... pois bem, tanto melhor.” (FOUCAULT, 2006 [1975], p. 52). E ainda: “(...) considero-os inteiramente livres para fazer, como o que eu digo, o que quiserem. São pistas de pesquisas, ideias, esquemas, pontilhados, instrumentos: façam com isso o que quiserem. No limite, isso me interessa, e isso não me diz respeito. Isso não me diz respeito, na medida em que não tenho que estabelecer leis para a utilização que vocês lhes dão. E isso me interessa na medida em que, de uma maneira ou de outra, isso se relaciona, isso está ligado ao que faço.” (FOUCAULT, 2010 [1976], pp. 3-4).

28 consideração. Se abordagens arqueológica e genealógica não podem ser tomadas como uma “receita de bolo”, os conceitos de Foucault, analogamente, não devem ser considerados como peças de um quebra-cabeças, em que o desfalque de uma poderia comprometer a integridade da representação.

Nada obstante, se não há uma lei a prescrever o modo de utilização, recordemos que “um trabalho deve dizer e mostrar como é feito” (FOUCAULT, 2010 [1983], p. 367), sendo essa a razão pela qual nesta pesquisa fiz questão de apresentar os conceitos de Foucault de que me vali neste empreendimento.

Todos os conceitos que mencionei foram formativos, na medida em que se prestaram, mesmo que de modo inconsciente, à constituição da ideia geral de Arqueogenealogia a partir de Foucault. Outros tantos, de caráter mais operativo, funcionaram para o fim de orientar a construção da estrutura da pesquisa e a elaboração do texto que dela resultou. Por essa razão, é difícil apresentar um rol dos conceitos “mais importantes”, embora fosse essa minha intenção ao iniciar este tópico, quando eu achava que não seria custoso apontar aqui algo como os “cinco melhores”. Como eu cuidei de mencionar muitos, e quando os mencionei achei que eram importantes, creio, agora, ser impróprio dizer que, dos que citei, alguns sejam mais importantes que outros, como se eu quisesse agora fazer melhor o que já fiz, na medida em que já escolhi, dentre todos os que Foucault desenvolveu e que eu li (muitos eu não li, obviamente), aqueles que mencionei expressamente neste texto. A tarefa não é fácil e, mais que isso, ela não faz justiça com as escolhas que já empreendi, pois todos os conceitos que comentei são importantes e conduziram as análises que se seguirão.

Então, senão para apontar os conceitos “mais importantes” utilizados nesta pesquisa, que se preste este tópico a ratificar a adesão à rede conceitual de Foucault, embora não a ela toda e não sem ressalvas ou, em alguns casos, ajustes.

c) A relação com os documentos

Ao tratar da história serial52 (conceito que será especificamente tratado no Capítulo

Primeiro), Foucault afirma que a investigação deve se iniciar com o exame dos documentos, quiçá a partir disso53, somente após o que se poderá definir o objeto de trabalho.

52 Refiro-me ao escrito Retornar à História (1972), que integra o volume II da edição brasileira dos Ditos e escritos (vide: FOUCAULT, 2013 [1972], pp. 296-310).

53 Machado (2017, p. 65) narra que certa vez Foucault, embora passasse dias inteiros na “Bibliothéque Nationale lendo livros que ninguém mais lia”, disse-lhe: “Na Nationale eu não leio; eu procuro.” É como se estivesse ali

29 Essa “definição do objeto” não se confunde com a (escolha) do tema, este mais amplo e cuja determinação precede aquele exame, situando-se no próprio âmbito da decisão de investigar. Mas significa, de outro modo, que somente a manipulação dos documentos é que deverá dizer, ou pelo menos ultimar essa providência (o dizer), quais os fatos possuem dignidade suficiente para serem feitos acontecimentos. É como se o contato com os documentos “desse sentido” ao ato de pesquisa, confirmando a viabilidade da investigação (não das hipóteses, o que são coisas distintas), recomendando sua dimensão e métodos, bem como apontando possíveis escopos.

Essa lição me conduziu, então, a uma atitude de desprendimento quanto ao meu projeto original, seja com relação às hipóteses, aos recortes cronológicos e temáticos, às abordagens metodológicas, bem como aos possíveis itinerários procedimentais que projetei, ideal ou formalmente, ao decidir realizar esta investigação. Não se tratou de reconhecer que toda a concepção inicial devesse ser abandonada, muito menos de sugerir que eu devesse ou pudesse ter começado a investigar sem o mínimo balizamento teórico e metodológico, mas de compreender, a partir de Foucault, que modificar o que se pesquisa é resultado necessário do próprio ato de pesquisar e do contato com os documentos. E por essa razão afirmo que o objeto da pesquisa é outro, embora sobre o mesmo tema.

Instruído por Foucault acerca desse caráter (re)constitutivo da relação com os documentos, e advertido quanto ao fato de que estes são monumentalizados como obra de quem pesquisa e escreve a história, imitei Foucault (no que este já imitava Nietzsche54) para o fim de

presumir a suspeição dos documentos apresentados como evidências de que os terrenos de marinha serviriam para aquela função que a SPU reverberava.

Como consequência dessa premissa analítica, em relação ao tema específico “terrenos de marinha”, optei por prestigiar o exame direto das leis, resoluções, decisões, etc., em detrimento do resultado de outras atividades descritivas ou hermenêuticas sobre o objeto de minha tese. Em outras palavras, tentei evitar manifestar simples adesão a conclusões ou argumentos apresentados em pesquisas precedentes sobre os terrenos de marinha, notadamente

catando temas e objetos sobre os quais pudesse se interessar por pesquisar, motivado pelo confessado interesse de subverter evidências. Foucault deveria ser “um chato”, um “estraga prazeres”, tipo daqueles que, quando criança, dizia às outras crianças que papai Noel não existia, e que, depois de crescido, estarrecia a todos dizendo que o homem estava próximo de seu final.

54 É possível conjecturar que, neste gesto de desconfiar, de duvidar, ambos tenham “imitado” Descartes em sua primeira meditação. Divergem aqueles deste, no entanto, quanto à possibilidade de superação da dúvida. Os primeiros, mas sobretudo Nietzsche, são críticos da crença quase metafísica no método científico como revelador da verdade, bem como da pretensão de operação ascética desse (ou de outros) método (s).

30 aquelas já consagradas e tomadas como evidências dos atos daquela fala institucional da SPU55.

Desse modo, esforcei-me por realizar meu próprio levantamento de fontes, pesquisando junto a bases de documentos digitalizados, a fim de procurar por leis, atos estatais, decisões administrativas, etc., e tudo o mais que pudesse se relacionar com tema. Para tanto, combinando ou alternando conectivos, utilizei como palavras-chaves alguns argumentos de pesquisa que têm relação com o objeto da investigação, tais como “marinha(s)”, “marinhas de sal”, “terra(s) de marinha”, “terrenos de marinha”, “aforamento”, “foro”, “laudêmio”, etc.

Dizer que busquei evitar me orientar por pesquisas anteriores não significa que eu lhes tenha negado o devido valor, tampouco que as tenha considerado inidôneas como fontes históricas. Ocorre que, tendo eu manifestado adesão a esse aspecto do pensamento de Foucault (uma relação de desconfiança com os documentos), não haveria outra postura a assumir, senão duvidar das pesquisas anteriores, além de considerá-las como produção, ou seja, como resultado de um esforço interpretativo, e não como reprodução “isenta” de algo.

E não se deve, ademais, olvidar que a Arqueogenealogia (neste aspecto, mais especificamente a Arqueologia) rejeita a ideia de que os documentos se prestem ao fim de fazer prova de qualquer verdade oculta, o que vale para qualquer tipo de documento, mas mais ainda para aqueles produzidos a partir de uma atividade eminentemente exegética.

Fora tudo isso, é importante pontuar que o presente texto consubstancia uma tese de Doutorado, de modo que me é imposto cumprir determinados requisitos na realização da pesquisa e elaboração do texto, especialmente, para o caso, o ineditismo e a contribuição científica, exigência que restaria desatendida se eu aqui me limitasse a comentar o que outros antes disseram, ainda que fosse para emitir juízo de valor sobre as conclusões pretéritas, ou que eu procedesse de forma exemplar do ponto de vista da retórica, da gramática e da estética.

Ademais, embora a própria semântica da expressão “busquei evitar” já permita extrair seu significado relativo, há de se deixar claro que essa pretensão de evitar pesquisas anteriores não corresponde à irrestrita rejeição por consultar ou referenciar fontes bibliográficas, ou mesmo dissertações e teses sobre o tema. Consultei e referenciei várias, especialmente para assuntos diversos dos terrenos de marinhas, mas que com eles se relacionavam e por isso interessavam à pesquisa. E neste caso, refiro-me especialmente às práticas sociais, que se

55 Tome-se a expressão “fala da SPU’ como a manifestada também por outros órgãos e entidades vinculadas à União, que é o ente federativo ao qual a Constituição de 1988 confere a propriedade dos terrenos de marinha. Quero dizer com isso que a “fala da SPU” pode ser tomada como o gênero a compreender, por exemplo a da Advocacia Geral da União (AGU), quando este órgão, em nome da União, manifesta-se sobre questões relativas ao tema.

31 situam, digamos assim, no entorno da categoria de bens que é o objeto central da tese, mas que com ela interage. Nada obstante, quando me vali de fontes dessa natureza, adotei um procedimento de aferição de pertinência, que consistia basicamente na adoção das seguintes providências: 1) em primeiro lugar, buscava pelas fontes documentais em que a bibliográfica se baseou, de modo que, se fosse possível, em lugar de citar a fonte bibliográfica que interpretou o documento, eu mesmo realizava a atividade de interpretação; 2) obtendo ou não acesso à fonte documental utilizada pela bibliográfica, confrontava esta última com outras fontes bibliográficas, a fim de testar sua verossimilhança, seja no que se refere aos “dados objetivos” (contingentes populacionais, por exemplo), seja no que se refere aos juízos subjetivos (exemplificativamente, a ideia de que a “Leis das sesmarias” de 1375 foi mal executada, embora bem intencionada); 3) finalmente, e o que é mais importante, jamais deixei de considerar o caráter de monumento de todo e qualquer documento.

Com a Arqueogenealogia a partir de Foucault me impus, enfim, uma atitude crítica e de desconfiança em relação aos documentos, especialmente àqueles já consagrados e sobre os quais parecia não fazer mais sentido realizar qualquer questionamento.

d) A delimitação do corpus de análise

A proposta desta pesquisa é produzir uma história dos terrenos de marinha, orientada por uma Arqueogenealogia a partir de Foucault. Inevitavelmente, portanto, trabalho aqui com os instrumentos normativos (legais em sentido amplo) que se referem àquela categoria de bens, sendo afirmado, conforme já apontado na Introdução deste trabalho e se justificará no Capítulo Terceiro, o Decreto de 21 de janeiro de 1809 como aquele que inaugura essa história, e a Lei n.º 13.813, de 9 de abril de 2019, como o marco que encerra o recorte temporal de nossa análise. Obviamente, essa última lei não corresponde ao termo final da história dos terrenos de marinha, mas, digamos assim, um “termo presente”, já que, por enquanto ainda não extinto, esse instituto verá ainda o seu regime jurídico ser sucessivas vezes modificado.

Nada obstante, antes de serem terrenos de marinha, os espaços a eles correspondentes já existiam e, como se verá mais adiante, situavam-se no trecho do litoral que, tanto aqui no Brasil, como já em Portugal, chamavam-se “marinhas” (ou “marinha de sal”), estas que receberam a primeira menção em instrumentos normativos (em sentido amplo) referentes ao Brasil (“Vera Cruz”, ainda) nos forais passados em favor dos donatários das Capitanias, como,