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O poder como multiplicidade e como estratégia de produção de subjetividades: uma analítica do poder.

FUNÇÃO SOCIAL (“SOCIOAMBIENTAL”) 316 1 O contexto da ruptura: o antes e o depois da chegada da

1. A genealogia da Arqueogenealogia a partir de Foucault

2.8. O poder como multiplicidade e como estratégia de produção de subjetividades: uma analítica do poder.

Foucault, entretanto, nunca fez menção (à) ou uso da expressão Arqueogenealogia, embora, como demonstrado, a ideia seja compatível com seu programa analítico, notadamente com os escritos produzidos a partir do ingresso no Collège de France. Ele se referiu, na verdade, às suas investigações genealógicas como uma “analítica do poder”, que seria “uma definição do domínio específico formado pelas relações de poder e a determinação dos instrumentos que permitem analisá-lo” (FOUCAULT, 2017 [1976], p. 90).

Antes de se prosseguir no exame desses instrumentos, os quais se prestarão a subsidiar as análises que logo mais serão realizadas a partir do Capítulo Segundo deste trabalho, importa

portanto, uma passagem, e não um destino. E lembremo-nos, ainda, de atender ao pleito do próprio Foucault: “não me peçam para permanecer o mesmo”.

115 tecer algumas considerações acerca dos aspectos relacionados ao poder e que devem ser objeto de análise.

Convém esclarecer, desde logo, que Foucault não desenvolveu (tampouco pretendeu) uma teoria geral para o fim de dizer o que seria o poder. Não era objeto central de suas investigações a elaboração de uma definição totalizadora do poder, apenas admitindo que sua analítica, na medida em que se ocupava do exame do funcionamento das relações de poder, poderia consubstanciar o início de uma teoria (FOUCAULT, 2017 [1976], p. 90; _____, 2015 [1977], p. 369; _____, 2008 [1978], p. 4).

As ressalvas de Foucault à elaboração de uma teoria geral se relacionam com a sua compreensão acerca do que se poderia considerar como sendo poder. Para o filósofo francês, o poder não é coisa, tampouco apenas uma coisa, ou seja, não é substância que tenham matéria definida e geral, muito menos algo que possa ser objeto da apropriação ou que adote uma configuração estandardizada de manifestação. Seria “um feixe aberto, mais ou menos coordenado (e sem dúvida mal coordenado) de relações” (FOUCAULT, 2015 [1977], p. 370), ou seja, um conjunto de mecanismos e procedimentos que teria como função a própria subsistência do poder (FOUCAULT, 2008 [1978], p. 4).

Em razão dessa multiplicidade de formas e de estratégias de funcionamento, Foucault compreendia que o poder não é, ou ao menos não é somente, aquilo que reprime, que se limita a estabelecer uma instância negativa de conduta, uma regra proibitiva que censura ou interdita. A repressão é uma possibilidade de configuração que a noção de poder admitiria, mas, para além disso, o poder é o conjunto de mecanismos que produz subjetividades148 e funciona de

modo a obter a sujeição dos corpos e o controle das populações (FOUCAULT, 2017 [1976], p. 151). Em última instância, destarte, o poder seria uma multiplicidade de técnicas e táticas que pretende o agenciamento da vida, seja no domínio individual (corpos), seja no âmbito coletivo (populações). Mais do que apenas proibir, portanto, o poder visa a estabelecer modos de viver e de fazer.

E justamente em razão dessa abertura conceitual149 é que Foucault entendia não ser

producente se ocupar primordialmente com a definição do que seria o poder, muito menos com 148 Um trecho da conferência proferida no dia 14 de janeiro de 1976, no Collège de France, à qual se fará referência logo adiante, bem exprime a ideia movimento, de que o poder se exerce (e não que é apropriado), bem como que é essencialmente instância positiva: “o poder transita pelo indivíduo que ele constitui.” (Grifos nossos) (FOUCAULT, 2010 [1976], p. 26).

149 Em uma entrevista do ano de 1977, ao ser interrogado sobre a razão de sustentar que suas investigações estariam mais para uma analítica do que para uma teoria, Foucault inicia sua resposta com o seguinte decreto: “O poder não

116 a identificação de algum elemento essencial de constituição, ou seja, algo como uma “substância” ou “natureza”. De outro modo, propôs que a problematização do poder deveria prestigiar a identificação de suas estratégias de funcionamento e a elaboração de instrumentos de análise.

Orientado por esse pensamento, no segundo encontro do curso relativo ao ano de 1976150-151 ministrado no Collège de France, Foucault afirmou expressamente que, desde 1970,

suas investigações se debruçaram sobre esse “como do poder” (FOUCAULT 2015 [1976], p. 278). Naquela ocasião, tratou da “linha metodológica” que subsidiou suas pesquisas em relação aos dispositivos do “poder psiquiátrico, da sexualidade infantil, dos sistemas políticos, etc.”, explicando, inicialmente, que suas análises foram desenvolvidas levando em conta o que ele chamou de “dois limites”: o Direito, como instrumento de delimitação formal do poder, e os efeitos da verdade, que seriam, ao mesmo tempo, produzidos pelo poder, além de se prestarem como seus transmissores e reprodutores. Ele sustentou haver uma relação entre o poder, o Direito e a verdade, cujo funcionamento se daria de forma necessariamente interdependente, conforme assinalou (FOUCAULT, 2010 [1976], p. 22):

Quero dizer o seguinte: em uma sociedade como a nossa – mas, a final de contas em qualquer sociedade – múltiplas relações de poder perpassam, caracterizam e constituem o corpo social; elas não podem dissociar-se, nem se estabelecer, nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro. Não há exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade.

Nessa “economia dos discursos de verdade”, em especial no período152 que Foucault

delimitou como situado entre a Idade Média e os séculos XVII e XVIII, ao Direito teria cabido delimitar formalmente o poder, funcionando alternadamente como instrumento de justificação

existe” (FOUCAULT, 2015 [1977], p. 369). Obviamente as explicações que se seguem esclarecem que, na verdade, essa aparente negação da existência se refere à impossibilidade de que, num determinado lugar ou originado de um determinado ponto, possa-se delimitar o poder. A questão, assim, residira na pretensão de determinação, que, segundo ele, não poderia dar conta da multiplicidade de fenômenos por meio dos quais as relações de poder se manifestam.

150 O curso em referência recebeu a designação de Em defesa da sociedade (Il faut Défense la Société), sendo correspondentes aos anos de 1975-1976.

151 Aquela mesma aula, ministrada no dia 14 de janeiro de 1976, resultou no escrito também publicado sob o título de Soberania e disciplina, que consta com esse título na coletânea Microfísica do poder (2015 [1979]), organizada no Brasil pelo Professor Roberto Machado.

152 Devemos nos atentar para o fato de que Foucault, quando faz alusão a aspectos cronológicos, refere-se ao Ocidente, e em especialmente ao para o caso da França. Disso se deduz ser inviável pretender universalizar a ocorrência de determinados fenômenos.

117 do poder real ou, de outro modo, como mecanismo de limitação desse mesmo poder. Em ambas as circunstâncias, o sistema jurídico, compreendido por Foucault não somente como a lei, mas como todo “conjunto de aparelhos, instituições e regulamentos que aplicam o Direito”, trataria das questões relacionadas à legitimidade do poder, ou seja, aos limites de seu exercício pelo Estado (“rei”), tendo como finalidade fazer aparecer duas coisas: “por um lado, os direitos legítimos de soberania e, por outro, a obrigação legal de obediência”.

Foucault (2010 [1976], pp. 24/31-32) afirmou, no entanto, que nos séculos XVII e XVIII foi inventada uma “nova mecânica de poder”, a qual estaria fundamentada de modo distinto daquela relacionada à noção de soberania, sendo exercida entre os “súditos em suas relações recíprocas”, viabilizando a constituição de subjetividades pela própria sociedade em suas relações privadas (não estatais). Segundo ele, por obra da sociedade burguesa, foram inventados mecanismos de dominação não justificados ou sustentados direta e ostensivamente pelos aparelhos do Estado, que estariam articulados por meio de relações de poder muito mais difusas e periféricas e que funcionariam sobretudo no nível dos corpos, com o fim especial de obter destes melhores proveitos de tempo e trabalho. Esta nova mecânica, denominada por Foucault (2014 [1975], p. 167) de poder disciplinar, foi por ele definida nos seguintes termos:

O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo.

Orientada por esse escopo de maximizar a eficiência das forças de produção sujeitadas e, ao mesmo tempo, afirmar a força de sujeição daquilo (ou daqueles) que sujeita(m) (FOUCAULT, 2010 [1976], p. 31), com a invenção do poder disciplinar seria também estabelecida uma “nova economia do poder”, na medida em que se substitui o predomínio da repressão episódica pela vigilância constante. Para esse propósito, a principal estratégia de funcionamento seria a criação de aparelhos produtores de saber e conhecimento, elaborando-se discursos e, por meio destes, estabelecendo-se padrões de normalidade, ou seja, normas de caráter não jurídico que serviriam como paradigma de comportamento. A coerção disciplinar decorreria, então, do exame de conformidade com estes padrões de normalidade, na medida em que viabilizaria uma permanente comparação dos indivíduos, que seriam classificados e hierarquizados a partir de uma “medida valorizadora” (FOUCAULT, 2014 [1975], p. 179).

118 Apesar de heterogêneos e distintos no plano conceitual, essas configurações de poder, o Direito (de soberania) e as relações de dominação, não se contradiriam ou se excluiriam. De modo bem diverso disso, no que se refere ao plano da prática, implicar-se-iam mutuamente. Foucault (2010 [1976], p. 24) explicou, no entanto, que a teoria do Direito foi elaborada para o fim de ocultar as estratégias e técnicas de dominação, “mascarando-as”153 e as “dissolvendo”,

de modo que delas não se tivesse conta, na hipótese de limitar a análise do poder ao domínio da soberania.

Sobre essa implicação prática entre o Direito e poder disciplinar, Foucault alude à ocorrência justaposições, expressão que não revelaria, em tese, uma relação de dominância entre uma e outra manifestação de poder. Mas faz referência também a sobreposições e, ainda, descreve o funcionamento de fenômenos que ele designou de “usurpações da mecânica disciplinar”154 e “ascensão de um poder ligado ao saber científico” (FOUCAULT, 2010 [1976],

pp. 34-35), em decorrência dos quais o Direito seria invadido pelas disciplinas, produzindo-se, como consequência, uma colonização das leis pelos processos de normalização. O resultado disso seria o que ele chamou de “sociedade de normalização”, em que esta (sociedade), não dependendo exclusivamente dos aparelhos estatais, mas também por meio deles, faria funcionar mecanismos de poder e instrumentos de constituição de subjetividades, procedendo de modo “microfísico”, dissimulado e difuso em todo o corpo social.

O poder, em suma, não seria substância155, algo que simplesmente é ou que está; seria,

sim, algo que se exerce e que funciona, notadamente em rede, ou seja, de modo relacional. Não é algo que proíbe e reprime ou, melhor dizendo, não apenas que proíbe e reprime, mas é, também e sobretudo, algo que produz e se destina a constituir subjetividades (modos de pensar,

153 A ideia é bem semelhante à atualmente defendida pelo sociólogo brasileiro, natural de Natal/RN, Jessé de Souza, sobretudo nas obras A elite do atraso e A tolice da inteligência brasileira. Em apertadíssima síntese, Souza realiza contundente (mas abalizada) crítica à interpretação dominante na historiografia brasileira, no sentido de que a corrupção estatal, firmada nas ideias de patrimonialismo e populismo, seria o maior de todos os males do Brasil. Para Souza, a narrativa, que ele tributa ao trabalho intelectual de Gilberto Freyre, Paulo Prado e, especialmente, de Sérgio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro, consubstanciaria a consagração do “espírito de vira-latas” do Brasileiro, ao propor a naturalização de uma inferioridade cultural, antropológica e quase racial que, na verdade, prestar-se-ia para ocultar os interesses e, também, a corrupção da entidade “mercado”, que, segundo Souza, foi idealizada, entronizada e, o que é mais importante, tornada invisível pela narrativa patrimonialista proposta por Holanda e propagada notadamente por Faoro.

154 A ideia é, na atualidade, mais debatida sob a denominação de “apropriação” ou “captura do poder político”. Sobre o tema, “recomendo, vivamente”, a leitura de Quando as corporações regem o mundo (1996), de David C. Korten (Capítulo 10: Obtendo o controle da Democracia); Quem Manda no mundo (2017), de Noam Chomsky (Capítulo 4: A mão invisível do poder); A era do capital improdutivo (2017), de Ladislau Dowbor (Capítulo 8: A captura do poder político); e, finalmente, Como as democracias morrem (2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Capítulo 4: Subvertendo a democracia, especialmente o tópico referente à “captura dos árbitros”. 155 Daí, especulo, a razão de Foucault ter afirmado que “o poder não existe” (FOUCAULT, 2015 [1977], p. 369), conforme mencionado na nota de rodapé n.º 164.

119 ser e fazer). Não se situa apenas no âmbito da soberania e do Direito, que Foucault denominou de “modelo do Leviatã”, mas compreende todo o feixe polimorfo de estratégias e táticas: “soberania e disciplina, direito da soberania e mecanismos disciplinares são duas partes intrinsecamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder em nossa sociedade.”

Se o poder é tudo isso, segundo a analítica do poder de Foucault, que se propõe investigar esse “como do poder”, o que se deveria analisar: as estruturas formais de soberania ou relações de dominação? Na verdade, Foucault não sugere a exclusão de “objetos” de análise. Ele reconhece expressamente que se pode descrever analiticamente o que ele denominou de “grandes aparelhos de poder” (FOUCAULT, 2010 [1976], p. 39). Nada obstante, ele propõe prestigiar a análise das relações de poder em sua multiplicidade, sem pressupor a existência de uma “soberania de fonte dos poderes”. Assim, não se deveria buscar identificar o Direito (de soberania) que poderia ser apontado como fundamento pretensamente legitimador e ensejador da sujeição, mas se examinar, histórica e empiricamente, “as relações de sujeição efetivas que fabricam sujeitos”, ou seja, identificar os operadores materiais de dominação que produzem modos de saber e fazer (FOUCAULT, 2010 [1976], pp. 38-39).

Investigar essas relações seria, segundo Foucault (2010 [1976], p. 286) “o caminho de acesso à análise do poder”, o que impunha, todavia, a observância de cinco premissas por ele denominadas de “instruções de método”.156

Instruções metodológicas

Pela primeira dessas instruções metodológicas, Foucault (2015 [1976], p. 282) advertiu que não se deve promover a análise das formas regulamentares e legítimas de poder no seu centro, mecanismos gerais e seus efeitos constantes. Ele disse que a análise deve ser feita exatamente da forma inversa, ou seja, compreendendo como ele funciona em suas extremidades, nas suas “últimas ramificações”, e como a partir daí se articulam em instituições locais e regionais.

A segunda instrução metodológica contém a prescrição de não se promover a análise do poder no plano da intenção ou da decisão, questionando “quem tem poder e o que pretende”. Para Foucault (2015 [1976], p. 283), o que importa saber é como foi produzida materialmente

156 As traduções examinadas sugerem que Foucault utilizava como sinônimas as expressões “instruções” ou “precauções”. A tradução constante em Microfísica do Poder (2015 [1979]) alude apenas à expressão “precauções metodológicas”.

120 a sujeição daqueles submetidos ao poder, ou seja, “captar a instância material de sujeição enquanto constituição dos sujeitos.”

Pela terceira instrução, Foucault (2015 [1976], p. 284) admoestou o analista a “não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciça e homogêneo de um indivíduo sobre outros, de um grupo sobre outros, de uma classe sobre as outras.” O poder, para o filósofo francês, não pode ser comparado à riqueza, que alguns têm e outros não, mas como algo que circula e não pode ser apropriado: deve ser exercido, e exercido em rede.

De acordo com a quarta instrução metodológica, não se poderia fazer uma espécie de dedução de poder (FOUCAULT, 2015 [1976], p. 285), mas, de outro modo, que o sentido da análise há de ser ascendente:

(...) partir dos mecanismos infinitesimais que têm uma história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes mecanismos de poder foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global.

Finalmente, na quinta instrução metodológica, Foucault (2015 [1976], p. 288) admitiu ser possível que as grandes máquinas de poder tenham sido acompanhadas de produções ideológicas. Nada obstante, ele afirmou que “na base”, ou seja, no nível mais periférico, o que funcionaria seria “muito menos” e “muito mais” que ideologia. No nível dos corpos, dos indivíduos, os instrumentos mais eficazes de produção de subjetividade seriam aqueles relacionados à formação e ao acúmulo do saber, não interpelados ideologicamente, que funcionariam por meio das coerções disciplinares, já há pouco mencionadas.

Foucault (2010 [1976], p. 30) sintetizou essas instruções metodológicas nos seguintes termos:

(...) em vez de orientar a pesquisa sobre o poder para o âmbito do edifício jurídico da soberania, para o âmbito dos aparelhos de Estado para o âmbito das ideologias que o acompanham, creio que se deve orientar a análise para o âmbito da dominação (e não da soberania), para o âmbito dos operadores materiais, para o âmbito das formas de sujeição, para o âmbito das conexões e utilizações dos sistemas locais dessa sujeição e para o âmbito, enfim, dos dispositivos de saber. (...)

É preciso estudar o poder fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição do Estado; trata-se de analisá-lo a partir das técnicas e táticas de dominação.

121 A analítica do poder implica, então, a questão do saber, aquela mesma que ocupou primordialmente o “momento” da trajetória de Foucault que se convencionou chamar de Arqueológica. Como projeto metodológico destinado a investigar o “como do poder”, interessa a essa analítica o poder funcionando em suas relações com o saber, tal como se se tratasse não apenas de um “como do poder”, mas de um “como do poder-saber”, ou seja, uma Arqueogenealogia não de Foucault, mas a partir de Foucault.

Definida a abordagem, qual seja, essa Arqueogenealogia a partir de Foucault, importa, ainda como exigência preliminar, desenvolver os contornos dos conceitos de propriedade e função social que serão considerados nesta pesquisa.

122 3. A propriedade como direito e sua função social (socioambiental): o discurso e alguns problemas.

A propriedade sempre demandou e recebeu reflexões por parte de profetas, filósofos, juristas e sociólogos, desde a antiguidade até os dias atuais157, de modo que as discussões a

respeito dessa temática ensejaram a produção de bibliografia que é deveras substancial quanto ao número e significativamente abrangente quanto às abordagens, o que recomenda uma precisa delimitação do objeto de estudo, sob pena de se comprometerem os resultados da pesquisa pelo vício da superficialidade, ou de se inviabilizar seu resultado pelo excesso de fontes de consulta.

Firmada essa premissa, importa afirmar que o exame que a seguir será feito se cingirá àquilo que se convencionou chamar de trajetória histórica do instituto da propriedade no mundo ocidental, mas que, a bem da verdade, é muito menos que isso, sendo uma diminuta, porém dominante, parcela disso.

Convém dizer, também, que a análise a ser empreendida será limitada aos (alguns) aspectos relacionados ao fundamento e ao regime jurídico, especificamente o caso do Direito brasileiro, conferindo-se especial atenção aos elementos condicionantes ao exercício da propriedade como direito, em especial a imobiliária.

Far-se-á, destarte, um retrato panorâmico acerca do que as doutrinas histórica e jurídica dizem ser o direito de propriedade e seus condicionamentos, a fim de que, ao final, possa ser problematizada a ideia de função social, tudo com o escopo de orientar a análise acerca da função social (“socioambiental”) dos terrenos de marinha.