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FUNÇÃO SOCIAL (“SOCIOAMBIENTAL”) 316 1 O contexto da ruptura: o antes e o depois da chegada da

1. A genealogia da Arqueogenealogia a partir de Foucault

2.5. A Arqueologia de Foucault.

A presente pesquisa foi ensejada, em boa medida, pelas controvérsias relativas aos terrenos de marinha, especialmente o debate em torno da necessidade da extinção ou reformulação do regime jurídico dessa categoria de bens. Essa contenda se centra em três questões fundamentais: 1) Por que os terrenos de marinha são regulados como no presente? 2) Essa configuração atual decorre lógica e necessariamente de uma “origem” histórica que possa ser reconstituída, ou seja, encontrada quando (re)feito o caminho de volta no tempo? 3) Sem

93 cogitar se melhor ou pior, haveria como os terrenos de marinha terem, no passado ou daqui em diante, outra função social (“socioambiental”), ou seja, poderiam ser regulados de outro modo, e não como foram ou são? À reflexão sobre essas questões o Capítulo Terceiro da pesquisa se dedicará integralmente. Neste momento, convém dizer apenas que o debate acima cogitado, ou seja, a proposta de problematização do presente, no caso específico, o presente da função socioambiental dos terrenos de marinha, corresponde ao projeto investigativo que deu ensejo às formulações da Arqueologia e da Genealogia de Foucault.

Para justificar essa conclusão, oportuno invocar a fala do próprio Foucault (2003, 4’02’’-4’34’’):

Eu não pergunto ‘o que conhecer’. Meu problema não é saber se os discursos científicos são verdadeiros ou não, se eles têm relação com uma objetividade ou não, se é preciso considerá-los como coerentes ou somente cômodos, se eles são a expressão de uma realidade terrível. Isso não é uma questão minha.

(...)

Eu diria que é preciso fazer uma história das problematizações, quer dizer, a história da maneira pela qual as coisas produzem problemas.

Em retomada ao que foi tratado no tópico precedente, é possível afirmar que função socioambiental dos terrenos de marinha está relacionada à ideia de acontecimento (de múltiplos, no caso), segundo o pensamento de Foucault.

Sem julgá-la certa ou errada, adequada ou inadequada, coerente ou não com a noção de sustentabilidade, pode-se dizer, com fundamento nos documentos130 referenciados na

Introdução desta pesquisa, que existem proposições sustentando a necessidade de que essa função seja outra. Nesse mister, a atual função socioambiental dos terrenos de marinha foi estabelecida, constituída a partir de relações de forças, mas a subsistência dessa função é objeto de resistência, o que se evidencia pela existência de diversos projetos legislativos que pretendem a sua modificação/extinção, bem como de ações judiciais que contestam determinados aspectos do seu regime jurídico. Há, assim, uma vontade de se instaurar uma nova positividade, em substituição à existente no presente, a fim de que se possa estabelecer um novo regime normativo para os terrenos de marinha, ou mesmo que sejam eles extintos. Em outros termos, a função social (“socioambiental”) presente aconteceu, continua acontecendo, mas há quem queira que outra seja “acontecimentalizada” em seu lugar. E é para esse tipo de pesquisa,

130 Refiro-me aqui especialmente aos projetos de leis que pretendem a modificação do regime jurídico ou mesmo a extinção dos terrenos de marinha.

94 em que se concebe a História como acontecimento e em que se problematiza o presente, que a Arqueologia se destina (FOUCAULT, 2014 [1969], pp. 169-170).

O que seria, então, a Arqueologia na concepção de Foucault?

Arqueologia

Segundo Foucault (2014 [1969], p. 204), a Arqueologia se propõe definir as regras de formação de um conjunto de enunciados, considerando-os não como fatos relacionados ao acaso, mas como uma sucessão de acontecimentos (“acontecimentalizados”) que constituem um discurso. Nesse sentido, Foucault sustenta que a constituição do discurso decorre de uma escolha teórica, o que significa dizer que, dado o caráter de acontecimento, o discurso, em distintas condições, poderia ser outro. Foucault ([1969] 2014, p. 208) também afirma que, não só a possibilidade de ser de outro modo, ou seja, de ser diferente, mas a própria diferença em si mesma, são objetos da descrição arqueológica, que em vez de tentar superar as diferenças, dispõe-se analisá-las e dizer em que exatamente elas consistem e como se operou o processo de diferenciação.

Sintetizando as suas particularidades e estabelecendo as características distintivas da descrição arqueológica em relação a outras abordagens, Foucault (2014 [1969], pp. 169-171) formulou o que ele qualificou de quatro princípios. Em primeiro lugar, a Arqueologia não se ocupa em definir pensamentos, representações ou quaisquer outros elementos que se manifestem nos discursos. Tampouco trata o discurso como documento ou como signos de outra espécie que ensejem interpretação ou decifração. Em vez disso, ela investiga os discursos enquanto práticas discursivas que se desenvolvem com observância de determinadas regras.

A Arqueologia, ademais, não tem por objeto a mera transição entre discursos. É certo que ela confere especial relevância aos momentos de irrupção, quando novas positividades e discursos emergem. Mas a atenção às descontinuidades se destina a possibilitar que se analise o discurso em sua especificidade, a fim de evidenciar “o jogo de regras” que se prestam a estabelecer e regular aquelas práticas, ou seja, o funcionamento dos discursos.

Como terceiro princípio, Foucault enuncia que a Arqueologia não se submete à soberania da obra, rejeitando, assim, a ideia de sujeito fundante, argumento que defendeu desde As palavras e as coisas. Ele explicava que a Arqueologia define tipos e regras a partir de práticas discursivas que atravessam obras individuais, o que se dá para o fim de identificar regularidades num conjunto disperso de enunciados.

95 Por fim, Foucault reafirmava a principal característica distintiva da descrição arqueológica em relação à análise histórica tradicional: a rejeição do anseio de retorno à origem. Nesse mister, a Arqueologia não se propõe a reconstituir esse caminho de volta, de modo a identificar o que foi em seu estado original, antes de a dispersão no tempo e no espaço promover qualquer tipo de alteração de sentido.

A essência teleológica da proposta arqueológica foi sintetizada por Foucault na conclusão de A Arqueologia do saber. Melhor não tirar ou por coisa alguma, limitando-nos a transcrever o que disse o próprio filósofo (FOUCAULT, [1969] 2014, p. 244):

Ora, obstinei-me em avançar. Não que esteja certo da vitória nem conte com as minhas armas. Mas porque achei que, no momento, era o essencial: libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental. O problema para mim não era, absolutamente, estruturalizá-la, aplicando ao devir do saber ou a gênese das ciências categorias que tinham sido testadas no domínio da língua. Tratava-se de analisar tal história em uma descontinuidade que nenhuma teleologia reduziria antecipadamente: demarcá-la em uma dispersão que nenhum horizonte prévio poderia tornar a fechar; deixar que ela se desenrolasse em um anonimato a que nenhuma constituição transcendental imporia a forma do sujeito; abri-la a uma temporalidade que não prometeria o retorno de nenhuma aurora. Tratava-se de despojá-la de qualquer narcisismo transcendental; era preciso libertá-la da esfera da origem perdida e reencontrada em que estava presa: era preciso mostrar que a história do pensamento não podia ter o papel revelador do momento transcendental que a mecânica racional já não tem desde Kant, nem as idealidades matemáticas desde Husserl, nem as significações do mundo percebido desde Merleau-Ponty – a despeito dos esforços que foram feitos para aí descobri-lo.

Mas tão importante quanto compreender os aspectos e operações gerais relacionadas ao emprego da Arqueologia de Foucault como “método”, é conhecer os conceitos essenciais a ela concernentes. A fim de subsidiar esse empreendimento, oportuno aludir uma definição do próprio filósofo francês, para dela, então, extrair as noções elementares a uma adequada utilização da Arqueologia nesta pesquisa. Ao ensejo dessa questão, Foucault (2015 [1975], pp. 251-252), durante entrevista com estudantes da Founders Room do Pomone Collège, ocorrida em maio de 1975, ao ser questionado especificamente a respeito do que seria a Arqueologia, respondeu nos seguintes termos:

(Estudante) – Eu entendo. O senhor poderia nos dizer agora se a arqueologia é um novo método ou simplesmente uma metáfora?

(Foucault) – Bem...

(Estudante) – Será um elemento central de sua concepção da História?

(Foucault) – Utilizo a palavra “arqueologia” por duas ou três razões principais. A primeira é que é uma palavra com a qual se pode jogar. Arche, em grego, significa “começo”. Em francês, temos também a palavra “arquivo”, que designa a maneira como os elementos discursivos foram registrados e podem ser extraídos. O termo “arqueologia” remete, então, ao tipo de pesquisa que se dedica a extrair os

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acontecimentos como se eles estivessem registrados em um arquivo. Uma outra

razão pela qual utilizo a palavra concerne a um objetivo que fixei para mim. Procuro reconstituir um campo histórico em sua totalidade, em todas as suas dimensões políticas, econômicas, sexuais. Meu problema é encontrar a matéria que convém

analisar, o que constitui o próprio fato do discurso. Assim, meu projeto não é o de

fazer um trabalho de historiador, mas descobrir por que e como se estabelecem

relações entre os procedimentos discursivos. Quero concentrar meu estudo no que nos acontece hoje, no que somos, no que é nossa sociedade. Penso que há, em nossa

sociedade e naquilo que somos, uma dimensão história profunda, e, no interior desse espaço histórico, os acontecimentos discursivos que se produziram há séculos ou há anos são muito importantes. Somos inextricavelmente ligados aos acontecimentos

discursivos. Em um certo sentido, não somos nada além do que aquilo que foi dito,

há séculos, meses, semanas.

A partir dessa definição elaborada por Foucault, é possível se ter a indicação dos diversos conceitos que se apresentam como essenciais à abordagem arqueológica. Seriam eles: enunciados; formações discursivas; discursos; Acontecimentos discursivos; condições de produção; práticas discursivas; arquivo.

Embora haja outros tantos cuja compreensão também se impõe e que serão devidamente abordados neste trabalho, os que acima estão elencados se prestam a orientar a continuidade deste tópico de apresentação da Arqueogenealogia a partir de Foucault. Prosseguir-se-á por eles.

Enunciados

Aos enunciados Foucault dedicou boa parte de sua A Arqueologia do saber, afirmando que eles são a “unidade elementar do discurso” (FOUCAULT, 2012 [1969], p. 97). O primeiro elemento característico a ser atribuído aos enunciados é de índole distintiva, ou seja, o enunciado não é, em si mesmo, uma proposição, uma frase ou um ato de linguagem (FOUCAULT, 2014 [1969], p. 1), pois ele (o enunciado) não corresponde a nenhuma unidade lógica, gramatical ou linguística. (FOUCAULT, 2014 [1969], pp. 129/132/138). O que se presta, segundo Foucault, para fazer acontecer um enunciado é o seu funcionamento. Explicando essa forma de funcionalização do enunciado, Gregolin (2006, p. 89) vai dizer que o que fará de quaisquer dessas unidades (uma proposição, uma frase ou um ato de linguagem) um enunciado é “o fato de ele [o enunciado] ser produzido por um sujeito em um lugar institucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado.”

97 A descrição de um enunciado não se opera por meio do isolamento dessas unidades (lógicas, gramaticais ou linguísticas), mas do funcionamento delas enquanto relacionadas com um campo de objetos diversos (FOUCAULT, 2014 [1969], p. 129). Por isso Foucault (2014 [1969], p. 132) afirmou que

Descrever um enunciado não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal, mas definir as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos (não sendo esta forçosamente gramatical nem logicamente estruturada) uma existência, e uma existência específica.

Os enunciados, portanto, são uma “função de existência” que dará condição de possibilidade para que aquelas unidades, ou seja, as proposições, as frases e os atos de linguagem, existam e façam ou não sentido como unidades elementares do discurso (FOUCAULT, 2014 [1969], p. 105).

Para enfatizar relevância do funcionamento do enunciado é que Foucault somente se ocupou em defini-lo depois de tratar da noção de função enunciativa, afirmando o seguinte:

(...) um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação; finalmente, porque está ligado não apenas a situações que o provocam, e a consequências por ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o precedem e o seguem.

Ao dizer que o enunciado é “aberto à repetição”, ou seja, que é dotado de uma “materialidade repetível”, Foucault não equipara a repetição de um enunciado à de uma frase ou de qualquer outro conjunto de signos. A identidade dos enunciados tem a ver com a obediência a um regime de instituições materiais e, ainda, com o seguinte (FOUCAULT, 2010 [1960], p. 126):

A identidade de um enunciado está submetida a um segundo conjunto de condições e de limites: os que lhe são impostos pelo conjunto dos outros enunciados no meio dos quais figura; pelo domínio no qual podemos utilizá-lo ou aplicá-lo; pelo papel ou função que deve desempenhar.

98 E neste ponto é que a noção de enunciado se relaciona com outro conceito elementar para a Arqueologia de Foucault: as formações discursivas.

Formações discursivas

Foucault [1969] 2014, pp. 142-143) afirma que o enunciado está para a formação discursiva, como a frase está para o texto e uma proposição está para um conjunto dedutivo. Essas comparações significam que o enunciado pertence (a), que integra uma formação discursiva (como a frase em relação ao texto), mas também que é condicionado e regido por esta, tal como se dá com a proposição em relação ao campo dedutivo. A formação discursiva, desse modo, corresponde à lei de regência dos enunciados e é ela que define a regularidade destes. Mais claramente Foucault (2014 [1969], p. 47) explicou:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (...)

Foucault (2014 [1969], p. 47) sustentava que os elementos integrantes desses sistemas de dispersão (formações discursivas) estão condicionados por algo que ele denominou de “regras de formação”, que seriam “condições de existência (mas também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada repartição discursiva”. Não há, destarte, a necessidade de invocação de noções como “ciência, teoria ou ideologia” para relacionar os enunciados a um discurso. Diferente disso, é o pertencimento às formações discursivas, ou seja, a conformidade com as tais regras de formação, que permite identificar os “laços” de familiaridade e insistência (regularidade na dispersão) dos enunciados como unidades elementares de determinado discurso.

Positividade e a priori histórico

Segundo Foucault (2012 [1969], p. 251), as positividades correspondem ao “conjunto das condições segundo as quais se exerce uma prática, segundo as quais essa prática dá lugar a enunciados parcial ou totalmente novos.” A observância dessas condições, todavia, não é suficiente a assegurar que os enunciados produzidos a partir de determinada prática discursiva sejam verdadeiros ou falsos. A forma de positividade permite, no entanto, reconhecer que os

99 enunciados se colocam em um “mesmo nível”, que falam sobre a “mesma coisa” e que podem eventualmente, desenvolver “identidades formais, continuidades temáticas, translações de conceitos, jogos polêmicos (FOUCAULT, 2012 [1969], pp. 154-155).

As positividades emergem e existem em determinadas condições, estando submetidas aos efeitos da historicidade. Assim como surgiram, podem se transformar ou mesmo desaparecer, a depender da subsistência ou modificações das condições sócio-históricas. “Assim, a positividade desempenha um papel do que se poderia chamar de a priori histórico” (FOUCAULT, 2012 [1969], p. 155).

Foucault (2007 [1966], p. 219) define a priori histórico como sendo

aquilo que, numa dada época, recorta na experiência um campo de saber possível, define o modo de ser dos objetos que aí aparecem, arma o olhar cotidiano de poderes teóricos e define as condições em que se pode sustentar sobre as coisas um discurso reconhecido como verdadeiro.

Essas condições dão ensejo à emergência dos enunciados e estabelecem a “lei de coexistência com outros”. Elas não atestam, contudo, a legitimidade dos juízos, daí o porquê de o a priori histórico ser condição de realidade, e não de validade (FOUCAULT, 2012 [1969], p. 155). A historicidade131 é, portanto, elementar à concepção de a priori segundo Foucault, que

por isso o define “como o conjunto de regras que caracterizam uma prática discursiva” (FOUCAULT, 2012 [1969], p. 156)

Práticas (discursivas e não discursivas)

A noção de prática é elementar para o pensamento de Foucault132 (Castro, 2016 [2004],

p. 336; FISCHER, 2012, p. 15), mas sua compreensão impõe que se apresentem, desde logo, algumas distinções.

131 Castro (2016 [2004], p. 21) ressalta que essa ênfase à historicidade do a priori se deu com o propósito de firmar a distinção em relação ao a priori kantiano, que não é histórico. Kant (2009 [1781], p. 13) define a priori como sendo os conhecimentos que independem das impressões do sentido e da experiência. Os conhecimentos a priori estão em oposição aos conhecimentos a posteriori, estes, por sua vez, que são dotados de caráter contingencial, já que provêm e dependem da experiência (KANT, 2009 [1781], p. 13-14). Os conhecimentos a priori seriam, portanto, juízos puros, necessários e universais (KANT, 2009 [1781], p. 15), dados a conhecer ao homem por meio da razão pura, a qual é objeto de uma “ciência especial” que Kant designou de “crítica da razão pura” (KANT, 2009 [1781], p. 24).

132 “(...) o domínio de análise de Foucault são as práticas.” (Castro, 2016 [2004], p. 336). “trata-se sempre de práticas por dentro de relações de poder e saber, que se implicam mútua e insistentemente;” (FISCHER, 2012, p. 15).

100 Foucault (2014 [1969], p. 143) advertia que não se poderia confundir prática discursiva com a operação que um indivíduo realiza ao formular uma ideia, ao elaborar um pensamento ou ter um desejo. Tampouco essa expressão poderia ser tomada como correspondente a uma atividade decorrente de um sistema de inferência, ou seja, com uma operação lógica de dedução. Também não seria equivalente à “competência” de um sujeito falante que constrói uma frase. Em outros termos, uma prática discursiva não é, isoladamente, um ato de linguagem, uma proposição ou uma frase.

A recorrente qualificação do termo prática pelo adjetivo “discursiva”, remete à conclusão de haver um outro conjunto de práticas, as que Foucault denominou de “práticas não discursivas”. Aliás, acerca dessas, diferentemente do que se verifica em relação às práticas discursivas, Foucault não elaborou um conceito133 bem delimitado e que se possa apresentar

por meio da transcrição de um trecho de sua obra.

Castro (2016 [2004], p. 337), quando se refere ao advento do aparecimento do dispositivo134 como elemento de análise, identifica as práticas não discursivas com as relações

de poder. Essa conceituação de Castro se encontra conformada àquela que se pode extrair difusamente da obra de Foucault, na medida em que este afirmou que os elementos não discursivos seriam heterônomos à episteme (FOUCAULT, 2015 [1977], p. 367), mas, não obstante isso, estariam de algum modo relacionados ao funcionamento interno dos discursos (FOUCAULT, 2012 [1969], p. 80).

Sobre a existência e o funcionamento dessa relação entre o discursivo e o não discursivo, bem como da aptidão da Arqueologia promover a análises dessa relação, Foucault (2012 [1969], p. 192) afirmou:

A análise arqueológica individualiza e descreve formações discursivas, isto é, deve compará-las, opô-las umas às outras na simultaneidade em que se apresentam, distingui-las das que não têm o mesmo calendário, relacioná-las no que podem ter de específico com as práticas não discursivas que as envolvem e lhes servem de elemento geral.

133 Sobre a dificuldade conceitual, Castro (2016 [2004], p. 337) chega a mencionar que mesmo a noção de prática (discursiva ou não) é carente de um detalhamento conceitual.

134 A noção de dispositivo será trabalhada mais adiante, quando se tratar da abordagem genealógica. Por enquanto, importa antecipar apenas o fato de que o disposto compreende a noção de episteme (“um dispositivo especificamente discursivo”), além dos elementos não discursivos (FOUCAULT, 2015 [1977], p. 367).

101 Compreendido o que sejam as práticas não discursivas, importa agora trazer a definição que o próprio Foucault apresentou para práticas discursivas. Nesse sentido, disse o filósofo francês o seguinte (FOUCAULT, 2014 [1969], p. 144):

é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa.

As práticas discursivas correspondem, portanto, ao regramento da produção de enunciados no interior de um discurso. Elas se relacionam com a produção sistematizada do saber, daí Foucault afirmar que elas dão lugar a figuras epistemológicas (FOUCAULT, 2012 [1969], p. 231).

É preciso, ainda, compreender a aproximação entre as noções de prática discursiva e episteme. A propósito dessa questão, Gregolin (2006, p. 85) entende que “o conceito de práticas discursivas vem substituir a ideia de episteme”, afirmando que, com essa substituição, Foucault estaria “historicizando uma visão que era, em As palavras e as coisas, muito próxima da proposta estruturalista”, bem como acentuando, com a ideia de “prática”, o caráter de luta de