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4.2 A Emergência da Economia Solidária no Brasil.

Retomando o pensamento de França Filho e Laville (2004), a análise das realidades de desenvolvimento histórico da economia solidária deve ser feita a partir da contextualização do problema, da dimensão histórica, oferecendo elementos para a compreensão atual do fenômeno e das dificuldades e saídas que as práticas exemplificam.

Na Europa, a crise do Estado de Bem Estar Social instaura duas outras crises, a do emprego e a da socialização. A crise do emprego se instaura, pois esse diminui de maneira extrema, provocando na seqüência a crise da socialização, decorrente da perda de identidade com o fim do emprego. Nesse processo, portanto, a economia solidária surge intimamente ligada à necessidade de inclusão social, causada pela falência do Estado de Bem Estar Social e pela necessidade de refundar a sociabilidade entre as pessoas, restabelecer vínculos. Daí que a sua contextualização tem uma relação muito estreita com a emergência da empresa social de inserção econômica, discutida mais à frente neste mesmo capítulo.

França Filho e Laville (2004) argumentam que as experiências de economia solidária na Europa ocorrem no sentido de refundar a economia social com vistas à realização de objetivos sociais, pois a economia social, do ponto de vista de sua

ocorrência histórica, tornou-se institucionalizada ao longo do século XX, com o seu papel fortemente definido pelo Estado através de marcos legais, especialização, profissionalização da gestão e fins definidos nos limites da atuação do grupo societário.

Isso aconteceu devido à forte presença do Estado do Bem Estar Social que praticamente limitou o desenvolvimento da economia social na Europa dentro do raio de abrangência dos associados, mais como apêndice do Estado ou como lógica de atuação como economia de mercado, diferindo daquela das origens no século XIX, em que a influência política do movimento era determinante, porém ausentes os direitos e cidadania dos trabalhadores.

Interessante observar que, no caso Europeu, em particular no caso Francês, o excesso de institucionalização tem provocado diminuição da autonomia do movimento de economia solidária, causando uma espécie de perda de identidade, fenômeno oposto ao caso brasileiro, com pouco apoio público. Vale ressaltar, porém, que o caso brasileiro apresenta algumas características típicas de nossa cultura, como a criatividade e a espontaneidade em resolver problemas práticos.

A institucionalização é necessária, porém, o ponto de equilíbrio entre a manutenção da autonomia, a criatividade, a prática da ação para além do grupo associativo e o necessário apoio institucional são desafios que a prática aponta para serem superados. Isto requer uma medição sensível, um olhar atento às práticas no sentido de percepção do conjunto das forças presentes e atuantes nos empreendimentos solidários, que resultem em uma condição de equilíbrio, na busca da perenização dessas iniciativas.

Outro aspecto a considerar refere-se ao fato que, no Brasil, com o fim do Estado de Bem Estar Social na Europa, embora agrave o desemprego, não determina, de maneira automática, às experiências de economia solidárias locais esse caráter de inserção. O emprego sempre foi escasso e a exclusão social sempre foi presente, possibilitando ao longo da formação da sociedade brasileira diferente formas de sobrevivência, como a solidariedade obtida nas redes

comunitárias, nas práticas da informalidade no comércio e nos serviços que historicamente são prestados pelas camadas populares.

São experiências as quais podemos denominar de estratégias de sobrevivência de economia popular. No Brasil, o dilema é muito mais o desenvolvimento de experiências com objetivo maior de sobrevivência. Embora o agravamento das diferenças sociais instaure uma crise de desemprego sem precedentes no Brasil, a centralidade da questão está posta no combate à pobreza, pois a sociedade brasileira, segundo França Filho e Laville (2004:176), caracteriza-se “como uma sociedade que apresenta redes de sociabilidade abundantes, principalmente nos meios populares, e o aspecto da convivialidade tende a destacar-se quase como um traço cultural forte.”

Não deixa de ser um paradoxo para uma sociedade que, embora apresente situações de violência sociais extremamente problemáticas, além de outras características culturais complicadas herdadas do passado de colonização e escravagista, apresente complexas e ricas experiências populares e solidárias.

França Filho e Laville (2004:18) apresentam uma visão que sintetiza com muita clareza os caminhos da economia solidária na sociedade brasileira ao afirmarem que

... a realização de uma tal vocação depende do nível de estruturação interna e externa das iniciativas, ou seja, do reforço da sua organização em rede, do aumento de apoio da parte dos poderes públicos, do desenvolvimento de um marco legal para estas formas de organização, em suma, um maior nível de institucionalização das experiências...excesso de espontaneidade de um lado, e ausência de apoio institucional expressivo de outro, em boa parte dos casos, constitui uma fórmula que conduz freqüentemente à impossibilidade de consolidação do empreendimento.

França Filho e Laville (2004) consideram que, para além das diferenças citadas, os casos brasileiros e franceses têm pontos comuns em relação à economia solidária, como a atuação na esfera política, ao tratar das questões afetas ao direito e à cidadania, relacionadas à tradição dos movimentos sociais na luta por melhores condições de vida e trabalho. As similaridades acontecem também no plano econômico, através das associações, cooperativas, empreendimentos que apresentam a lógica de constituição pela necessidade

econômica. Os empreendimentos solidários construídos sobre esses dois pressupostos básicos, embora ainda sejam incipientes em relação às demais formas de empreendimentos preponderantes, de mercado e estatais, caracterizam-se como empreendimentos em construção e com imensos desafios presentes a superar.

No Brasil, o movimento da economia solidária não tem sua gênese a partir das cooperativas consolidadas ao longo do século XX, pois essas se tornaram inseridas no contexto do mercado e voltadas unicamente para o interesse de seus associados. Ele acontece muito mais fundamentado na tradição de uma economia popular e fomentado por Igrejas, principalmente a Católica, Sindicatos, Governos progressistas, Universidades Públicas.

A Igreja Católica, aqui representada pela Cáritas Arquidiocesana Brasil (BERTUCCI e SILVA, 2003 ), atua principalmente com os segmentos populares em situação de exclusão social, nas áreas de triagem de lixo doméstico, costura, artesanato, alimentação. O apoio de governos progressistas municipais a partir do final da década de 1980, como Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Campinas, Belém, entre outras, impulsionou fortemente esse movimento. Ainda no final da década de 1990, as Universidades Públicas iniciam um trabalho de fomento aos empreendimentos solidários, criando na Reitoria de Extensão as ITCP’s; hoje são mais de vinte incubadoras espalhadas em diversos estados brasileiros (SANTOS, 2002).

Um outro grupo concentra-se no campo, tendo como patrocinadoras organizações não governamentais religiosas e não religiosas, nacionais e internacionais como o MST (SANTOS, 2002).

Dentro do quadro acima apresentado, o movimento social de trabalhadores em economia solidária, caracteriza-se como patrocinado, tanto de natureza não estatal como estatal. A partir de meados da década de 1990 cresce o patrocínio estatal nesse campo com a iniciativa de apoio de governos locais progressistas e sua parceria com as incubadoras populares; a criação da SENAES em 2003, ligada ao Ministério do Trabalho, caracteriza-se como um marco importante do apoio estatal Federal ao movimento.

No II Encontro Nacional de Economia Solidária, ocorrido em junho de 2003, em Brasília, foi criado o FBES composto por Empreendimentos Solidários (60%), Entidades de Fomento como Cáritas, Ibase, Incubadoras de Universidades (20%) e Rede de Gestores Públicos (20%). Importante observar que os apoiadores do movimento e os gestores públicos vieram ao encontro constituído enquanto rede, enquanto que a base social efetiva do movimento social de trabalhadores em economia solidária, organizados nos empreendimentos solidários, não haviam ainda organizado sua rede.

Diferindo da economia informal que lança mão de produtos fabricados pelo mercado e os revende, sempre na lógica pessoal, a economia popular, segundo França Filho e Laville (2004), utiliza-se das necessidades locais, dos saberes também local e da solidariedade entre os membros da comunidade, sendo o regime de mutirão um exemplo clássico desse tipo de economia. Caracteriza-se como uma economia que garante uma reprodução simples da vida e não acontece para além do território em que está inserida. O desafio do desenvolvimento de empreendimentos solidários a partir dessa realidade está em se garantir o salto de qualidade, para que ocorra uma reprodução mais complexa da vida, articulando necessidades econômicas do grupo com atuação em redes locais e regionais e, para além do econômico, na luta por direitos sociais.