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3.1 A Relação Histórica entre o Fazer Econômico e a Sociedade.

Segundo Polanyi (2000), antes do século XIX, todos os sistemas econômicos conhecidos atribuíam um amplo papel aos princípios, sejam eles da reciprocidade ou da redistribuição (Estado), seja ele da domesticidade ou uma combinação dos três. Os mercados da Idade Média foram os primeiros a adotarem o mercado de vizinhança através da exportação intermunicipal e de longa duração.

Esses mercados, localizados nos grandes centros urbanos medievais, eram diferenciados da economia doméstica, representavam as oligarquias de corporação e de comércio, porém essa característica não os liberava de uma ação vigilante dos poderes municipais.

Entendido como regulado, ele vai do século XV até o século XVIII, com características de concorrência regulando as transações, porém, sem considerar o trabalho e a terra como mercadorias, subordinando a economia às relações sociais, sendo essas prioritárias quanto à produção de bens. O século XIX surge com uma inovação fundamental, apresentando a atividade econômica de forma auto-regulada, regida por mecanismos de preços.

Segundo Polanyi (2000:47),

...todos os tipos de sociedade foram limitadas por fatores econômicos, ...mas a civilização do século XIX foi econômica em sentido diferente e distinto, pois ela escolheu basear-se em um motivo muito raramente reconhecido como válido na história das sociedades humanas e, certamente, nunca antes elevado ao nível de uma justificativa de ação e comportamento na vida cotidiana, a saber, o lucro. O sistema de mercado auto-regulável derivou unicamente desse princípio.

Polanyi (2000) afirma que a influência exercida pela economia de mercado no mundo conhecido, nos seus cinqüenta primeiros anos de implantação, só teve paralelo na vida dos povos quando comparada às maiores manifestações de fervor religioso acontecidas ao longo da história da humanidade. Atingiu os países do continente Europeu e América do Norte com um padrão econômico, em suas linhas gerais, de forma muito semelhante.

Na verdade, porém, essas mudanças, por serem bruscas, causaram uma profunda desorganização social ao desconsiderar princípios de ciência política e da arte de governar passadas de geração em geração durante séculos. Polanyi (2000), argumenta que, para justificar os rumos tomados pela economia no século XIX, seguidores de Adam Smith passam a sustentar a hipótese sobre a inerente predileção do homem primitivo em atividades baseadas na acumulação.

Essa análise parte de um pressuposto equivocado, pois estudar períodos históricos tendo como premissa os acontecimentos relativos ao século XIX, quando a permuta e a troca estiveram evidentes, induz à generalizações equivocadas. Assim como hipóteses que buscaram evidências quanto à uma inclinação comunista do homem primitivo não se confirmaram. A divisão do trabalho, segundo Polanyi (2000), tem sua origem a partir das diferenças entre sexo, geografia e capacidade individual.

A descoberta mais importante nas recentes pesquisas históricas e antropológicas, segundo Polanyi (2000:65),

... é que a economia do homem, como regra, está submersa em suas relações sociais. Ele não age desta forma para salvaguardar sua situação social, suas exigências sociais, seu patrimônio social. Ele valoriza os bens materiais na medida em que eles servem a seus propósitos. Nem o processo de produção, nem o de distribuição está ligado a interesses econômicos específicos relativos à posse de bens.

Polanyi (2000) concebe a economia de maneira plural, composta de quatro maneiras do fazer econômico. O primeiro, a domesticidade, relacionada às atividades cotidianas do grupo familiar, consistindo em produzir para o sustento do grupo; quaisquer que sejam as entidades muito diferentes que formam a unidade de base, o princípio é o de produzir e de armazenar para a satisfação dos membros dessa unidade, sendo o seu modelo de grupo fechado; o que determina o núcleo institucional é indiferente, assim como a forma de organização interna, podendo ser democrática ou não.

O segundo, a reciprocidade, governa as relações de apoio mútuo entre membros da sociedade com vistas a criar ou reforçar laços sociais, através de uma seqüência durável de dádivas. Ela tem em comum o fato de não se constituírem trocas despersonalizadas, pois não podem ser isoladas da realização

das prestações sociais, já que os objetos não são separados dos doadores e representam essencialmente uma relação social.

O terceiro, o fazer redistributivo, próprio do Estado, que concentra os bens ou serviços, pagando por eles e distribuindo segundo critérios acordados ou não com a sociedade; evidentemente que é o modelo da centralidade que permite a redistribuição, supondo uma autoridade e uma divisão do trabalho entre os representantes dessa autoridade e os outros membros do grupo humano. Seja qual a forma empreendida para a prática da redistribuição, seja feudal, republicana, ditatorial, ela significa aumentar o poder político de quem a pratica.

Por último, o mercado, com agentes independentes, que competem entre si em um espaço comum, buscando um equilíbrio entre a oferta e procura, caracterizando-se como a esfera mercantil da economia, em um modelo institucional denominado troca. Nesse equilíbrio da troca, a oferta significa a quantidade de bens e serviços disponíveis e a demanda, a quantidade de bens e serviços passíveis de serem absorvidos.

A troca pode se dar por um equivalente geral denominado moeda e um valor denominado preço; pode também assumir formas que não passem pelo equivalente geral, como o escambo, quando essa troca implica em conjuntos de bens e serviços de mesmo valor. Polanyi (2000) argumenta que a origem da economia de mercado está no comércio de longa distância, que tem uma relação direta com a localização geográfica; a divisão do trabalho também é função da localização e não da natureza natural do indivíduo à permuta ou troca.

A economia de mercado, consolidada no século XIX, parte do pressuposto que o indivíduo tem uma natural inclinação à permuta, surgindo desse pressuposto básico a necessidade da existência de mercados locais, exteriores, bem como a divisão do trabalho, porém, em sua origem, o comércio exterior sempre teve uma relação mais estreita com o princípio da reciprocidade do que da permuta.

É evidente que o crescimento das cidades trouxe um crescimento da lógica mercantil, porém, sempre acompanhada das regulamentações; sob o feudalismo, a terra e o trabalho estavam intimamente ligados à organização social. No sistema

mercantil, passo adiante do sistema econômico no feudalismo, as regulamentações deixam o terreno da tradição e passam para a esfera das regulamentações seja através do Estatuto dos Artífices (1563) ou da Lei dos Pobres (1601).

Na França, as guildas artesanais e os privilégios feudais foram abolidos somente em 1790 e, na Inglaterra, o Estatuto dos Artífices e a Lei dos Pobres só foram revogados respectivamente em 1814 e 1834; além disto, o mercado livre do trabalho não foi discutido até o final do século XVIII. Assim, fica claro que nos sistemas tribais, feudais ou mercantis não houve um sistema econômico separado da sociedade. Tal fenômeno revela-se no século XIX com a inclusão do trabalho, da terra e do dinheiro ao da mercadoria produzida nas indústrias ou aos serviços prestados. Como afirma Polanyi (2000:94)

....trabalho...é uma atividade humana...não podendo ser destacada do resto da vida, não podendo ser armazenada ou mobilizada. Terra é apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é produzido mas adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais...a descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia.

O artesão, ou mesmo o comerciante, enquanto donos de sua ferramenta de trabalho ou de equipamentos industriais conferia-lhes uma diferenciação em ganhos e condição social, não tornando-os capitalistas, pois o fluxo de bens produzidos não tinha uma expansão diferenciada, com limitações no fornecimento das matérias primas. Essa lógica altera-se com a mudança da relação entre o mercador e a produção via o desenvolvimento de unidades fabris especializadas, mais complexas, exigindo investimentos a longo prazo, riscos, continuidade de produção e garantia de fornecimento. Nesse momento, terra, trabalho e dinheiro passam a compor o sistema de mercadorias pois exigia-se a previsibilidade e o risco calculado. Assim, segundo Polanyi (2000:98),

... a história social do século XIX foi, assim, o resultado de um duplo movimento; a ampliação da organização do mercado em relação às mercadorias genuínas foi acompanhada pela sua restrição em relação às mercadorias fictícias...Enquanto a organização dos mercados mundiais de capitais e dos mercados mundiais de moedas, sob a égide do padrão-ouro, deu um

momentum sem paralelo ao mecanismo de mercados, surgiu um movimento bem estruturado para resistir aos efeitos perniciosos de uma economia controlada pelo mercado. A sociedade se protegeu contra os perigos inerentes a um sistema de mercado auto- regulável, e este foi o único aspecto abrangente na história desses períodos.

A economia, segundo França Filho e Laville (2004), deve ser abordada como uma construção sócio-histórica, cuja forma atual não corresponde à uma realização final da evolução humana, mas a uma configuração particular que convém situar em relação àquelas que a precederam.

Assim, a economia baseada no mercado auto-regulável, tendo como fundamento o lucro, incorporando o trabalho, a terra e o dinheiro como mercadorias pode ser entendida como não definitiva, não natural e situada nesse momento histórico da humanidade. A passagem da sociedade tradicional para a modernidade, representada pelo século XIX, estabelece uma crise de valores, pois se quebram as tradições e costumes ocorrendo uma perda de sentido do mundo.

Surge, nesse momento, o laço político buscando dar resposta à crise de valores, permeada pela afirmação do interesse individual, base do utilitarismo, principal matriz do liberalismo econômico representado pela nascente economia de mercado, que pudesse garantir a paz social, através da confluência positiva entre o interesse individual e coletivo, sem resolver a questão da regulação. O mercado surge, então, como a força reguladora, induzindo à que as relações se tornassem harmoniosas, garantindo os princípios de liberdade e igualdade.

O mercado, baseado na consideração do interesse individual, é considerado como o primeiro princípio do comportamento econômico destinado a assegurar a ordem na economia. O extraordinário impulso da economia de mercado, no século XX, baseado nas questões de racionalidade, rentabilidade e utilidade não eliminou o setor tradicional da economia que, entre 1906 e 1946, caiu de 55 para 49% quanto ao item mão de obra.

Esse setor tradicional permanecia caracterizado como uma economia de subsistência, de caráter familiar, mantendo preocupação básica na realização das satisfações do grupo familiar, ao invés da priorização do lucro máximo, realizando atividades de economia doméstica, artesanato, comércio e serviços.

Segundo França Filho e Laville (2004: 39),

...esta economia tradicional é sobretudo fundada em relações herdadas que são a família ou a etnia. Assim, quando o crescimento urbano excede e ultrapassa a capacidade do Estado em controlá-la, como na França a partir de 1880, desenvolvem-se a zona e o subúrbio dos “desfavorecidos”, onde há imbricação entre atividade artesanal, comercial e o próprio habitat, graças a um re-agrupamento familiar e étnico pelas ruas e bairros. A economia tradicional pode depender de um modo de vida permanente, mas ela pode igualmente constituir um recurso temporário. É o caso dos trabalhadores precários empregados de maneira intermitente, segundo o período ou a jornada, que formam uma importante reserva de mão-de-obra.

França Filho e Laville (2004) pontuam que após a Segunda Guerra Mundial a economia tradicional se reduz definitivamente à marginalidade. Primeiro, por uma grande expansão da economia de mercado; segundo, pela enorme quantidade de fluxos financeiros gerados pelo Estado-providência; isto redunda em uma estruturação da economia social em direção a um sub-conjunto da economia de mercado e um sub-conjunto da economia de redistribuição, isto é, Estado-providência.

3.2 - A Consolidação da Economia de Mercado e Estratégias de