• Nenhum resultado encontrado

Tristeza linda no último romance de Joaquim Machado de Assis

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 107-121)

Resumir o curso dos acontecimentos no último romance de Machado de Assis, Memorial de Aires (1908), não é tarefa difícil. O livro conta a história de Aguiar, alto empregado bancário no Rio de Janeiro do final do Império, antes de 1889, e de sua mulher, Carmo. Aquilo que inúmeras vezes é mencionado como a “ idade” que já têm (o autor ficcio­ nal, isto é, o narrador, chega a referir-se a Dona Carmo como “ a velha m oça” ) alude provavelmente a uma fase da vida que hoje não consideraríamos tão tardia assim. Pode­ mos imaginar que estejam ambos nos começos dos sessen­ ta, ou pelo meio dessa década da vida; era a idade que tinha M achado quando perdeu sua amada mulher, Carolina, em 1904. Tal como os M achado, também os Aguiar não tive­ ram filhos, e, como o autor pretendesse que os imaginásse­ mos gentis e afetuosos pais em potencial, nos descreve suas vidas como sendo de “ orfandade às avessas” . Apesar dessa condição, os Aguiar conseguem preencher o vazio de suas vidas com “ filhos postiços” . Muito antes de 1888 (quando a história se inicia), eles ajudaram a criar o afilhado Tris- tão; desde aquele ano, o jovem vivia com seus pais brasilei­ ros em Lisboa, e os Aguiar nunca mais souberam dele. M ais recentemente, haviam acolhido Fidélia, uma bela e jovem viúva que, após a morte prematura do marido, não pôde voltar para o lar paterno porque o casamento que fizera tinha sido de paixão - como as bodas de Romeu e Julieta - e contrariara a vontade de seus progenitores.

Os acontecimentos mais importantes no romance são o regresso de Tristão ao Rio de Janeiro, que, apesar de ter tardado, inaugura um período de felicidade calma mas in­ tensa para os seus pais adotivos. Semanas antes de regres­ sar a Portugal, para seguir carreira na política, Tristão de­ clara aos Aguiar o seu amor por Fidélia (e, através dele, à melhor sociedade do Rio de Janeiro). Em seguida eles se casam, para a alegria de todos. De qualquer modo, Tristão não pretende renunciar ao sonho de uma vida política. Pro­ metendo deixar o Brasil apenas por um breve período, du­ rante o qual apresentará Fidélia aos seus pais biológicos - promessa na qual ele acredita -, Tristão embarca para Portugal com sua jovem mulher e põe termo à alegria dos anos de ouro dos Aguiar.

* * *

Parece uma história “ agridoce” , à maneira de Hollywood. M as, se não lemos Memorial de Aires percorrendo as li­ nhas da intriga, o romance pouco tem a ver com essa desig­ nação genérica. Esse tipo de síntese deixa necessariamente de fora aquilo que faz da obra derradeira de M achado de Assis uma obra-prima. Nesse erro incorreu um dos primei­ ros a resenhar o livro, Almáqui Diniz, que se queixava de que Fidélia - que considerava a “ heroína” da história - era uma personagem pouco “ desenvolvida” e dizia “ não se justificar” no enredo do livro. A forma do romance é a de um memorial, uma antologia de memórias. Aires - de quem nunca sabemos o primeiro nome - é um conselhei­ ro diplomático já aposentado que, a intervalos nem sem­ pre regulares, registra observações e pensamentos que lhe suscitam o lento passar dos seus dias. Dito isso - algo de fato extraordinário -, o duplo engano de Diniz foi exce­

ção entre as reações contemporâneas a Memorial de Aires. A maioria dos leitores admirou o engenho de Machado. Ao mesmo tempo, ele estava no auge da fama, era o autor mais reconhecido na emergente nação brasileira. Seu estilo era visto como “ tão perfeito quanto o dos melhores escri­ tores portugueses” . Acima de tudo, o público tinha em boa consideração a leveza do seu tom, ainda que acertassem ao apontar - mais por intuição do que em resultado de análise - que sua obra era comparável à de Flaubert.

Por outro lado, parece que nenhum leitor tentou explicar o que, precisamente, constitui a incomparável grandeza des­ se livro. N a verdade, Memorial de Aires sempre ficou na sombra dos romances anteriores de Machado - mesmo que os leitores, quase em silenciosa reverência, estivessem convic­ tos de seus conspícuos méritos. O segredo da grandiosidade desse romance - um daqueles segredos que, por serem tão óbvios, se mantêm segredo - está precisamente no seu enre­ do; o uso que M achado faz do memorial, com diversos enfo­ ques, transforma o autor (o conselheiro Aires) no verdadeiro herói, não a jovem moça apaixonada. Este herói leva uma vida descansada; seus pensamentos comandam seus senti­ mentos íntimos e a aparência externa que encontramos. Ai­ res acredita possuir uma disposição especialmente benigna e alegre: “ N ão odeio nada nem ninguém, - perdono a tutti, como na ópera.” Ao passo que seus deveres profissionais lhe haviam exigido que não confiasse implicitamente nos outros, agora Aires gostaria de acreditar na honestidade de todos; na maior parte dos casos, pode dar-se ao luxo de o fazer.

Quando eu era do corpo diplomático efetivo não acre­ ditava em tanta coisa junta, era inquieto e desconfiado; mas, se me aposentei, foi justamente para crer na since­ ridade dos outros. Que os efetivos desconfiem!

A princípio, a perspectiva que lhe dá sua vida serena parece pôr tudo e todos - conforme variadas circunstâncias - a uma certa distância. Até mesmo os seus próprios impul­ sos e reações espontâneas são vividos por Aires com tal afastamento que só raramente ele se sente inclinado a segui- -los. É precisamente com essa atitude que ele ganha centra- lidade no palco da intriga. Sua irmã Rita - único parente vivo do narrador - é uma viúva que vive feliz e em paz com sua vida e com o mundo em que se move. Escreve a Aires para pedir-lhe que a perdoe por não ir visitá-lo no dia do aniversário do seu regresso ao Rio e sugere irem juntos no dia seguinte visitar a tumba da família - “ dar graças pelo seu regresso” . A linha seguinte, onde se expressa a reação de Aires, condensa seu caráter, na realidade muito comple­ xo: “ N ão vejo necessidade disso, mas respondi que sim.”

* * *

Tudo no diário de Aires fica distanciado - também no sentido espacial. Embora tenhamos apenas algumas pistas sobre os lugares onde ele representou seu país, suas atividades profis­ sionais não o teriam levado muito longe. Os dramáticos even­ tos políticos do Rio de Janeiro durante os anos registrados no diário - 1888 e 1889, quando se aboliu a escravidão e foi fundada a República do Brasil - ficam também apenas em segundo plano. Em certo ponto, um antigo colega convida Aires para uma reunião política. Depois de refletir um pouco, Aires declina o convite, pois sente que deve isso ao seu caráter e à sua anterior profissão: “ Os meus hábitos quietos, os cos­ tumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e re­ cusei.” Sobretudo existe uma distância entre Aires e o mundo que Tristão abandona pelo Rio de Janeiro, e a que o jovem

regressará. É o mundo europeu do pensamento afetado e da política do pós-romantismo. Esse ambiente ecoa nos sons suntuosos da ópera, que aproximam Tristão e Fidélia junto ao piano da casa de seus pais adotivos (assim cumprindo a pro­ messa implícita nos seus nomes). Ao mesmo tempo, porém, essa distância do mundo da Europa - e, mais que tudo, a consciência sempre presente de que ela ocupa o centro das coisas - é o que mantém as personagens afastadas da cultura colonial. Aliás, como vem do continente, Tristão é o único que acredita ter alguma coisa de apropriado a dizer sobre tudo o que vive e sente. É Tristão que sempre fala ao capricho­ so Aires das atmosferas “elegíacas” e da melancolia. Apesar disso, poderemos mesmo crer nessas palavras e nas suas ope- rísticas promessas quando o próprio nome Tristão parece tão desajustado? Ali está um jovem determinado, absolutamente incapaz de sentir tristeza - do mesmo modo que Fidélia (a “ fiel” ), sua futura esposa, quase não hesita em esquecer todos os votos de lealdade eterna prometidos a seu defunto marido.

Contrário ao mundo diplomático que Aires deixou para trás, o aqui-e-agora da sua vida de aposentado e do seu di­ ário é o mundo do Rio de Janeiro e arredores pós-coloniais: partes da cidade, como o Flamengo e Botafogo, e cidades-sa- télite, como Petrópolis e Niterói. M as Aires nunca descreve as paisagens vibrantes da cidade, e não há uma única palavra que nos permita imaginar como é a casa onde ele escreve todas suas observações. Num dado ponto, sua irmã pede-lhe “ informações de um leiloeiro” . Com isso, ela provoca o úni­ co momento em que Aires - com surpreendente intensidade de sentimentos - tenta instalar uma distância reconfortante entre ele mesmo e os pensamentos da sua própria morte:

Que sei eu de leiloeiros ou de leilões? Quando eu mor­ rer podem vender em particular o pouco que deixo,

com abatimento ou sem ele, e a minha pele com o resto; não é nova, não é bela, não é fina, mas sempre dará para algum tambor ou pandeiro rústico.

Conforme aquilo que Aires registra em seu diário, pode­ mos nos sentir mais ou menos preparados para a viagem através da intriga do romance. Aires é, de maneira muito específica, um “ narrador não confiável” . E possível consi­ derar seriamente cada palavra do romance como honesta expressão do personagem principal, mas esse personagem não escreve com regularidade. As entradas do diário às ve­ zes começam com a indicação de dia e mês; outras vezes, só é mencionado o dia da semana; e por vezes só a hora do dia aparece, sem outra informação. Entre algumas entradas há longos hiatos de tempo, e Aires sublinha vez ou outra que tais espaços resultam de estados emocionais e físicos distin­ tos - e não do lento decorrer dos próprios acontecimentos.

9 de junho. Este mês é a primeira linha que escrevo

aqui. Não tem sido falta de matéria, ao contrário; falta de tempo também não; falta de disposição é possível. Agora volta. A matéria sobra.

Ou, um pouco mais dramático, já no final do livro:

Sem data. Já lá vão dias que não escrevo nada. A prin­

cípio foi um pouco de reumatismo no dedo, depois visi­ tas, falta de matéria, enfim preguiça. Sacudo a preguiça. Mesmo quando o diarista encontra um ritmo, consegue ser ou doloroso ou espantosamente lento. Aires volta mui­ tas vezes a entradas anteriores e sempre faz revisões, co­ mentários, interpretações:

21 de março. Explico o texto de ontem. Não foi o

medo que me levou a admirar o espírito de D. Cesária,

os olhos, as mãos, e implicitamente o resto da pessoa. Já confessei alguns dos seus merecimentos. A verdade,

porém, é que o gosto de dizer mal não se perde com elogios recebidos, e aquela dama, por mais que eu lhe ache os dentes bonitos, não deixará de mos meter pe­ las costas, se for oportuno. Não; não a elogiei para desarmá-la, mas para divertir-me, e o resto da noite não passei mal.

M as há algo ainda mais desconcertante do que a irregu­ laridade das entradas ou a lentidão do narrador (que nos exigem paciência) - há algo desconcertante no sentido filo­ sófico. Por vezes, Aires observa que escreve mesmo quando não há nada na sua vida que mereça registro:

13 de julho. Sete dias sem uma nota, um fato, uma re­

flexão; posso dizer oito dias, porque também hoje não tenho o que apontar aqui. Escrevo isto só para não per­ der longamente o costume. Não é mau este costume de escrever o que se pensa e o que se vê, e dizer isso mesmo quando se não vê nem se pensa nada.

Neste ponto, o autor ficcional de Memorial de Aires encontra-se com o verdadeiro escritor Flaubert, que, na sua correspondência com a amada, cunhou a famosa expressão “ um livro sobre nada” - um livro que não dependeria nem de intriga nem sequer de referência com a realidade. O ro­ mance de Machado - isto é, o diário do autor ficcional Ai­ res - parece muitas vezes “ vazio” precisamente nesse senti­ do. N o entanto, e ao contrário de Flaubert, que sonhava com “ um livro sobre nada” enquanto desafio estético, Ai­ res parece sugerir que a escrita regular - mesmo a escrita que seja sobre nada e que não tenha uma direção clara (como se vagueasse) - pode dar forma à nossa existência:

Estou cansado de ouvir que ela vem, mas ainda me não cansei de o escrever nestas páginas de vadiação. Cha­ mo-lhes assim para divergir de mim mesmo. Já chamei a este memorial um bom costume. Ao cabo, ambas as opiniões se podem defender, e, bem pensado, dão a mes­ ma coisa. Vadiação é bom costume.

Uma e outra vez, Aires demonstra com grande habilida­ de que é capaz de dar forma ao curso lento de seus dias e, mais do que isso, às maneiras que tem de pensar nisso. Há ainda outro sentido - parece-me que mais agressivo - de “ nada” no texto que o narrador compõe sobre sua vida; é um sentido mais forte do que o “ nada” do não-referir-se- -ao-mundo. Tal como sua irmã e Fidélia haviam perdido seus maridos, Aires também perdera a esposa. Porém, seu túmulo fica muito longe - na Europa. E, ao contrário dos Aguiar, Aires não tem filhos, sequer adotivos:

Eu tenho a mulher embaixo da terra de Viena e ne­ nhum dos meus filhos saiu do berço do Nada. Estou só, totalmente só. Os rumores de fora, carros, bestas, gentes, campainhas e assobios, nada disto vive para mim. Quando muito o meu relógio de parede, batendo as horas, parece falar alguma coisa, - mas fala tardo, pouco e fúnebre.

}J- 5[- íf-

Apesar da calma impiedosa do narrador para consigo mes­ mo, Memorial de Aires também é um romance que fala com ternura das ilusões perdidas - isto é, ilusões em que Aires e os Aguiar nunca chegaram a acreditar completamente. Aires vê a linda Fidélia pela primeira vez ao visitar o cemitério, no começo do livro. Ele diz a sua irmã que o nome de Fidélia

dificilmente a impedirá de contrair novo matrimônio. Rita provoca-o, dizendo que talvez ele mesmo possa pôr termo à viuvez dela. Descontada a diferença de idades, tal união se­ ria possível nos escalões mais elevados da sociedade nos fi­ nais do século X IX , especialmente nas colônias. Aires chega mesmo a alimentar essa ideia - à qual a irmã não se referira muito a sério (e depressa esquece) - assim que é apresentado a Fidélia na casa de seus pais adotivos. Mesmo quando re­ conhece, em parte, o seu fascínio, ele ainda insiste em que apenas está interessado na personalidade da jovem viúva. Desabafando com as páginas do seu diário, o solitário ob­ servador do mundo - e de si mesmo - diz:

Escuta, papel. O que naquela dama Fidélia me atrai é principalmente certa feição de espírito, algo parecida com o sorriso fugitivo, que já lhe vi algumas vezes. Que­ ro estudá-la se tiver ocasião. Tempo sobra-me...

Algumas páginas adiante, Aires imagina que Fidélia vai a sua casa perguntar-lhe se deverá ficar para sempre sozi­ nha; ele concede que ela não terá sido feita para a viuvez; e, como por magia, ela confessa que tem pensado nele para futuro marido.

N a sua solidão, demora até que Aires “perceba” final­ mente que aquilo não passa de um sonho - um sonho “ en­ graçado” , agora podemos dizer. Ele retoma o controle das suas emoções - ao menos por um instante - dizendo para si mesmo que a linda Fidélia continuará viúva. Seja como for, Aires sente que sua mudança de atitude foi causada ou por inveja ou por ciúme. Quando, mais tarde, Tristão entra fi­ nalmente na história, Aires tem menos folga para especular e perde a capacidade de acalentar as racionalizações que poderiam ajudá-lo a preservar seu modo calmo de viver. Alguns dias antes de Tristão pedir Fidélia em casamento

(mas sem ter garantia de que ouviria um “ sim” como res­ posta), Aires admite que não consegue ser totalmente ho­ nesto consigo mesmo:

Aires amigo, confessa que, ouvindo do moço Tristão a dor de não ser amado, sentiste tal ou qual prazer, que aliás não foi longo nem se repetiu. Tu não a queres para ti, mas terias algum desgosto em a saber apaixonada dele; explica-te se podes; não podes.

Graças a essas “ conversas” , Aires poupa-se a necessidade de admitir as esperanças que teria de uma união com Fi­ délia: afinal, ele nunca se permitiu sequer pensar que essa esperança poderia ter existido. Todos estão bem cientes da impossibilidade de suprimir o sentimento de perda em situações como essa, que intuímos na dor de Aires, em cada uma das palavras que ele usa para nos dizer que não sente nenhuma dor. N a posição que ele ocupa, é-lhe mui­ to mais simples reconhecer a perda pela qual passam os seus amigos Aguiar. Em última análise, o nome “ T ristão” - nome de um homem que, afinal de contas, está sempre feliz - ganha todo o sentido porque Tristão é aquele que inflige a ferida nos seus pais adotivos - ferida que só se cura quando eles morrem.

Desde o momento em que Fidélia e Tristão anunciam que partirão para Portugal, Dona Carmo e o seu marido parecem perceber que a sua “vida familiar” terminará em breve. N a última cena do romance, na derradeira entrada do diário (“sem data” ), Aires entra na casa dos amigos por uma porta que ficara aberta. Como, de longe, consegue perceber a tristeza deles, decide não lhes falar. Esse último

relance do olhar e as duas últimas frases fixam a tristeza dos Aguiar numa imagem belíssima:

Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na ati­ tude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos. Aires acredita que vê o esforço de seus amigos para sor­ rir e para parecerem alegres. M as, na verdade, o que os consola é “ a saudade de si mesmos” . A meu ver, uma leitu­ ra correta - mesmo se um pouco problemática, em termos gramaticais - deveria fazer corresponder às últimas pala­ vras a expressão “ a solidão deles” ; ou seja, os Aguiar acham “ conforto na própria solidão” . Porém, o sentido da palavra saudade é mais complicado do que sugere sua raiz latina, solitudo. Acima de tudo, saudade refere-se a um an­ siar por uma condição passada que se tornou irrecuperável para sempre. Se tomarmos esse sentido mais complexo como nosso ponto de partida, poderemos reescrever assim a última frase do Memorial: “ O que lhes dava consolo era a lembrança da felicidade passada - felicidade que sabiam perdida para sempre.” Ou poderíamos afirmar, alternativa­ mente, sob a forma de um paradoxo existencial: “ O que os consolava era perceber que eles mesmos e as suas vidas es­ tavam perdidos para sempre.” A memória de um passado feliz, combinada com a consciência da perda presente e fu­ tura, em experiência simultânea, dá à dor dos Aguiar uma forma que Aires observa encarnada na aparência dos dois: “Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dois velhos sentados, olhando um p ara o outro. Aguiar estava encos­ tado ao portal direito, com as mãos sobre os joelhos. Dona Carmo, à esquerda, tinha os braços cruzados à cinta.” E difícil dizer o que, exatamente, achamos de belo nessa

imagem - a forma que assume a tristeza dos Aguiar. Não farei especulações psicológicas, que são sempre banais. Certo é que Machado dá aos leitores a possibilidade de ver na dor das suas personagens algo de belo - e nisso nada há de cínico, pois essa beleza só aparece aos leitores se eles se identificarem com a dor das personagens.

N os dias de hoje, quem quiser discutir um autor periférico à cultura ocidental vê-se forçado a assegurar ao público que a parte em questão conseguiu atingir a mesma catego­ ria intelectual e estética de seus contemporâneos europeus.

No documento Gumbrecht - Atmosfera Ambiencia Stimmung (páginas 107-121)