A EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA

A apropriação das ideias de Schön no contexto de reformas curriculares para a formação docente ocorreu em diferentes países onde se questionava a necessidade de formar professores aptos a ensinar em situações instáveis e conflituosas, o que problematiza o ensino-aprendizagem como prática social em uma diversidade de

contextos. Também se questionava a participação docente nas construções de propostas e diretrizes curriculares. Como a prática pedagógica dos professores era incorporada aos planos, projetos e diretrizes curriculares implantadas? São esses profissionais meros executores de planos propostos por quem não vive as problemáticas da educação? Surgiu desta composição a importância de se considerar a participação dos professores, de seus conhecimentos e suas representações como saberes imprescindíveis para a implantação de novas diretrizes, projetos e mudanças, construindo nessa direção o conceito de professor reflexivo (PIMENTA e GHEDIN, 2002).

As principais ideias de Schön que são importantes para a análise nesta pesquisa são também consideradas por Alarcão (1996b). Na obra The Reflexive Practitioner (1983), Schön critica o racionalismo técnico da educação profissionalizante e propõe uma epistemologia da prática que considere os saberes subjacentes à prática. Em Educatingthe reflective Practitioner (1987) apresenta seu pensamento pedagógico ao defender a formação do profissional com base na reflexão e vivência de situações práticas para aprender a tomar decisões na complexidade da vida real. Assim, é possível elencar os principais temas de estudo de Schön de interesse para aprofundar nesta pesquisa: os saberes da prática, a relação entre teoria e prática profissional e a educação para a reflexão. Buscou-se nesses temas analisar um modelo de formação que considere uma nova epistemologia da prática tendo como referência aptidões e habilidades subjacentes à prática na formação de professores e que conduzam os docentes aos caminhos da educação reflexiva na superação do racionalismo técnico.

Schön (1992) estuda a atividade profissional como um saber-fazer teórico e prático que concede ao profissional pensar e agir em contextos complexos, de forma dialógica com a realidade apresentada aos professores e estudantes. Essa característica dos estudos de Schön encontra uma das principais particularidades dos professores tutores, sujeitos desta pesquisa. Eles não tiveram uma formação prévia para trabalhar como tutores, foram se formando no percurso dos seis meses de duração do curso de aperfeiçoamento em situação prática. Esse fato os levou a desenvolver uma aprendizagem por meio do fazer, como diz Alarcão, em situação oficinal.

Este componente da formação profissional prática (practicum) em situação oficinal, real ou simulada, é concebida como uma espécie de prisma rotativo que possibilita ao formando uma visão caleidoscópica do mundo do trabalho e dos seus problemas e, permitindo uma reflexão dialogante sobre o observado e o vivido, conduz a construção activa do conhecimento na ação segundo uma metodologia de aprender a fazer fazendo (ALARCÃO, 1996 b, p. 14).

Schön (1992) procurou entender a atividade da prática profissional como um saber- fazer prático e teórico de um ambiente complexo e inconstante, em que cada situação de aprendizagem é nova e exige análise e reflexão por parte do professor que a pratica, em um diálogo constante com o contexto apresentado. Na maioria das formações de professores (inicial e continuada), essas situações de aprendizagem e de análise contextual não são ensinadas, os professores são treinados para aplicar os conhecimentos científicos e os conteúdos como respostas prontas para todos os problemas da vida cotidiana. Porém, no exercício profissional, esses docentes deparam-se com situações novas, complexas e ambíguas que não conseguem resolver, o que gera uma crise de desconfiança, desmotivação e descrédito profissional (ALARCÃO, 1996 b)

Para subverter a lógica desse processo é que Schön (1983) propõe a formação sobre a perspectiva da prática refletida, de forma que o profissional tenha a possibilidade de tomar consciência da natureza dos problemas da vida real que se manifestam. Desconstruindo e reconstruindo as dificuldades apresentadas no exercício da prática, do fazer, para compreendê-las. Reformulando o problema, observando-o sobre outras perspectivas, relacionando-o a outras situações, buscando alternativas e caminhos para se chegar a um consenso que começa por meio da dialogicidade entre os aprendizes práticos. Esse movimento que parte da identificação da dificuldade e caminha pela estruturação de um problema real provoca o exercício mental e a flexibilização cognitiva que são verbalizados pelos processos de reflexão na ação prática.

A ação profissional interpretada por Alarcão (1996 b) sobre a teoria saber-fazer de Schön (1992) diz que o conhecimento tácito (subentendido e implícito) está presente na ação do professor. Os profissionais que conseguem atuar nesses processos de reflexão, seja no momento da ação, seja posterior a ela, são pessoas talentosas e sensíveis, pois o saber-fazer não é simples, nem fácil, e algumas vezes o professor praticante desse processo não sabe descrevê-lo por ser inerente e por estar

implícito nos conhecimentos da pessoa. Schön (2000) nomeia essa característica do profissional que consegue atuar com habilidade e criatividade nos processos reflexivos práticos de talento artístico. Apenas dominar teorias e conteúdos é insuficiente para torná-los utilizáveis na solução de problemas e conflitos, mesmo porque não existem respostas prontas. O problema precisa se concebido, (re) criado por meio do talento artístico.

É preciso olhar para esses sujeitos que manifestam esse talento artístico como habilidade e aptidão natural utilizada para adquirir novos saberes com o objetivo de aprofundar os estudos sobre ações práticas em programas de formação continuada de aprendizes práticos. E como desenvolver o talento artístico? Como desenvolver o saber-fazer? Um dos indícios é aprender em condição prática, aprender fazendo, experimentando e refletindo.

Para Alarcão (1996 b), esses dois tipos de reflexão na ação, durante e posterior à ação de ensino e aprendizagem, em determinados momentos não são tão distintos por terem um valor construído com bases filosóficas, históricas, lógicas e contextuais que conduz o profissional a avançar no seu desenvolvimento e a construir seu modelo próprio de conhecer de maneira que auxilia o professor a decidir suas ações, a compreender problemas e buscar novas soluções.

Está claro que a racionalidade técnica deve estar associada à prática reflexiva para o enfrentamento da complexidade e da diversidade das situações da formação de professores, portanto, busca-se nas áreas de atuação profissional refletir sobre o exercício vivenciado da profissão. As concepções e experiências de Schön (1992, 2000) sobre o profissional reflexivo se desenha neste cenário, apresentado como fundamentação teórica. Os momentos e modelos de reflexão na ação, reflexão sobre a ação, emoções cognitivas, praticum reflexivo e talento artístico são investigados por meio das interações entre os professores no curso de Aperfeiçoamento do OBECiM. Neste capítulo, discutem-se esses conceitos e se indica onde eles aparecem na formação dos tutores em suas aprendizagens por meio do fazer, da experiência e da razão prática no contexto das interações reflexivas e dialógicas entre os professores do curso. Nas análises, serão apresentadas conjecturas com mais profundidade, fundamentadas nas falas dos tutores a respeito desses conceitos desenvolvidos aqui.

Para além dos conhecimentos dos conteúdos de ensino, os professores tutores e cursistas desenvolvem saberes mais abrangentes que são construídos por meio de trocas no contexto da formação contínua. O paradigma reflexivo do autor concilia o cotidiano da sala de aula, a razão científica e prática, os saberes da experiência e o desenvolvimento profissional docente, possibilitando fazer uma análise do curso com o objetivo de reconhecer erros e acertos, entender o percurso que foi trilhado no decorrer do processo formativo dos professores tutores, conscientes das ações praticadas.