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7 ANÁLISES

7.1 CATEGORIA DIÁLOGO

7.1.1 O Diálogo em Freire: entre práticas e realidade social

Para Freire (2005), o processo dialógico significativo acontece na oportunidade das pessoas de expressarem suas ideias em seu meio social. Na articulação do pensamento expresso na fala é possível desvelar os fatos vivenciados pelos sujeitos, e emergem os problemas da realidade para serem discutidos na coletividade. Freire (2005) articula o processo reflexivo dialógico a uma nova ação transformadora da prática dos sujeitos e situações de aprendizagem mútua com base nas experiências de si e do outro. O livro Pedagogia da Autonomia (1996) é permeado pela reflexão sobre aprender a ser professor partindo do que é ser professor, sendo que as circunstâncias sociais devem encaminhar o diálogo sobre as visões de mundo das pessoas como princípio para a construção do conhecimento.

O trecho seguinte demonstra a importância do diálogo para conhecer a realidade social vivida pelos sujeitos nas interações entre tutora e cursistas durante a aula presencial da disciplina de Metodologia do Ensino de Ciências que aconteceu dia 2/8/2014 na turma de Ciências no campus Vitória. O assunto da aula foram os temas Sociocientíficos Controversos.

Tutora J.: Agora algumas perguntas pra gente pensar sobre ciências, tecnologia, cultura e educação. Quem produz ciência no país? E como produzir esta ciência? Quem produz tecnologia no país? [...] Como evoluir mantendo a cultura, ou como não perder a cultura do país? Quem fará a educação do país, e o que é a educação do país?

Cursista T.: Perguntas complexas!

Tutora J.: [...] Por exemplo, eu vi trabalho de uns alunos lá em Roda d‟água, eles fizeram histórias em quadrinhos envolvendo a questão de máscaras [...] um curta que eles foram premiados no festival anima mundi [...] foi onde eles conseguiram preservar a cultura local que está se perdendo muito hoje [...] muitas vezes os alunos estudam numa escola e não sabem como que ela

surgiu, a origem do bairro [...] no sentido deles terem este sentimento de pertencimento ao local, saber como se desenvolveu a história ali [...]

Cursista Z.: [...] Roda d‟água está localizada em uma região quase que rural, de periferia, e sair uma pérola dessa, eles envolveram o congo, as danças [...] conheço este trabalho.

Cursista E.: Já que você falou em periferia,quando eu saio com os alunos existe um preconceito velado. A primeira coisa que perguntam, a escola é da onde? Aí eu falo Cariacica, Qual bairro? Nova esperança. [...] Eles esperam que os alunos sejam uns “bicho” soltados assim, no mundo. E eu vi isso assim, foi um tapa de luva, depois eu conversei com meus alunos de 6° ano, quando a gente voltou dessa visita técnica na Cesan, eu falei olha, vocês estão de parabéns, foram elogiados, foi um tapa de luva. Porque eles elogiaram? Eu aposto que se fosse um Darwin [Escola particular da Grande Vitória] da vida eles não iam falar nada [...] eles esperavam uma atitude contrária de vocês, eu falei pra meus alunos. E a gente demonstrou que independe do lugar que vocês moram que vocês estão vocês são cidadãos de direitos e deveres e tal... então, eu aproveitei o gancho pra falar estas coisas. [...] Pra mim foi muito gratificante mesmo e para os alunos, os olhinhos brilhavam, porque eles saíram completamente da realidade e viram que existe um mundo lá fora [...].

Tutora J.: Aí nós temos Freire né, em Pedagogia do Oprimido, tem um trecho do livro dele que ele fala: “(...) no mundo que se configura globalizado, a participação crítica exige a formação de cidadãos, sendo que a construção da cidadania só se efetiva por intermédio da educação, principalmente a educação básica, cuja qualidade é fundamental para se construir direito de ter direitos.” Ou seja, foi o que a colega E. falou, o direito de poder fazer uma visita a um espaço não formal, o direito de aprender e sua participação crítica que é o que a gente vai mediar, como a colega fez.

Na primeira parte do diálogo, a tutora J. e três cursistas T., Z. e E. interagiram falando sobre a realidade social conhecida por elas por meio de duas atividades práticas (Roda d‟água e visita à Cesan) e buscam fazer relação com as perguntas iniciais feitas pela tutora J.. Apesar do direcionamento inicial da tutora trazendo as perguntas, o espaço de discussão é livre e aberto; a fala da cursista E. relata uma situação vivida que revela um dos mecanismos sociais (negação de direitos e preconceito) que conduz à negação aos alunos da EJA a uma educação pública de qualidade. Como mediadora, a tutora aproveitou a oportunidade para fundamentar a experiência relatada pela cursista E. com uma citação de Freire do livro Pedagogia do Oprimido, demonstrando a importância da disponibilidade e abertura para o diálogo e a reflexão crítica sobre a prática educativa na formação de professores da EJA e suas especificidades. A realidade social vivida/conhecida pelos professores cursistas se apresenta como conteúdo a ser discutido e relacionado ao tema da aula para a construção do conhecimento por meio do diálogo. Quando os professores falam, demonstram uma ideia de pertencimento, do tempo e lugar em que atuam,

das dificuldades que enfrentam, revelam propriedade e conhecimento sobre as situações vivenciadas. “Tudo foi resumido por uma mulher simples do povo: gosto de discutir sobre isso porque vivo assim. Enquanto vivo, porém, não vejo. Quando falo, observo como vivo” (FREIRE 2005, p. 13). É no momento da troca de experiências por meio do diálogo que acontece o reconhecimento de si e do outro, impulsionando o desvelamento da realidade e a tomada de consciência sobre as reais condições de práticas e do trabalho docente.

Ao continuar a mesma aula presencial, que segue transcrita abaixo, o cursista T. retomou a pergunta inicial da tutora para colocar sua opinião. A retomada do assunto demonstra a liberdade que a tutora proporciona aos cursistas nesse momento, agindo novamente como mediadora no diálogo. É importante observar quando quem retoma o assunto principal não é a tutora, mas sim o cursista T., seu papel de mediadora também se torna transitório, demonstrando que todos se encontram em um patamar de igualdade e liberdade de fala, linguagem e expressão de suas experiências e concepções. Rompe-se, assim, o paradigma da transmissão do conhecimento pelo professor.

Cursista T.: Vou voltar naquela primeira pergunta né, quem faz ciência hoje, eu acho que hoje quem faz ciência são as universidades [...] com as pesquisas de mestrado e doutorado, a primeira pergunta era isso, né? Quem faz ciência hoje?

Tutora J.: Mas, por exemplo, eu levei meus alunos a uma visita a um espaço não formal, trabalhei todo o conteúdo com eles [...] passei o termo de consentimento pra eles, escrevo todo o trabalho, mando pra um congresso e ele é aprovado. Eu, professora do Estado, vou para o congresso e faço a divulgação do trabalho, eu estou fazendo ciência? Então, a gente pode estar fazendo ciência na escola, na sala de aula, agora, a diferença que eu vejo da universidade pra sala de aula é a falta de incentivo, porque pra gente sair é muito complicado.

Cursista L.: [...] e o dia a dia da escola não pode virar uma produção científica? Vocês estão falando isso?

Pesquisadora: L., como Freire diz que o investimento tem que ser na educação básica, tem uma questão que é mostrar para o aluno desde as séries iniciais que ele, o aluno, faz ciência, não é só quem está na universidade.

Cursista G.: Existe uma ideia que quem faz ciência é cientista, né! Que é aquele cara intocado, e que principalmente a ciência é uma religião no sentido de que o que está dito, está dito e acabou.

Cursista G.: [...] então, eu não coloco no quadro o que eu quero que você encontre, eu instigo eles a pensar [...] e aí eles me falam, mas Professor, você acredita nisso? Eu falo, bom, aqui não é crença [...] você acha que não é? Então vamos buscar uma explicação, me mostra porque você acha que é diferente! Isso daqui, até uma época não se pensava assim [...]

Pesquisadora: Desmistificar isso de que a ciência tem que dar certo, quantas coisas na ciência não deram certo? E porque que não deu certo? Tutora J.:[...] e aquela impressão de que a ciência vai salvar tudo?

Cursista P.: [...] e quando a experiência que a gente faz não dá certo é legal também porque aí você vai investigar porque ela não deu certo [...] É muito interessante quando eles percebem que eles sabem a resposta...

Tutora J.: [...] e quando você deixa eles falarem, né!

Pesquisadora: Aí, a gente entra no que vocês vão fazer depois que é a questão da argumentação, né!

A problemática trazida inicialmente se desenvolveu durante a primeira hora da aula no sentido de desvelarem juntos, cursistas, tutora e pesquisadora, o que é fazer ciência. As perguntas que começaram a discussão se tornaram o pano de fundo e o ponto de partida para se analisar o desenvolvimento das falas, a participação e a importância do diálogo em condições de igualdade, emergindo, a todo instante, a realidade vivida e problematizada pelos sujeitos.

Freire (1993) nega exposições teóricas que partem da visão de uma única pessoa como quem sabe mais que os outros. Observa-se que durante o tempo do debate, todos contribuem, elaboram e respondem perguntas que vão surgindo no decorrer da aula. O cursista G., nesse contexto, descreveu como desenvolve e estimula o diálogo em sua prática com os alunos. Nesse momento, não se pretendeu somente encontrar respostas, mas construir o conhecimento por meio da abertura de espaço/tempo para a fala e para o diálogo que emergisse do interesse, da experiência e da realidade de todas as pessoas presentes naquele momento: cursistas, tutora e pesquisadora. Pois a emancipação humana renuncia à visão que atribui tarefas estanques ao professor e ao aluno, cabendo ao primeiro ensinar e ao segundo aprender (FERREIRA, 2009 b).

Ao considerar os exemplos durante as falas de todos os sujeitos, que são professores antes de qualquer outra função exercida no contexto, o diálogo transcorreu pelo estímulo a novos questionamentos e argumentações por meio das perguntas que proporcionaram novas reflexões.

A prática dialógica como base para desenvolver as aprendizagens e o pensamento crítico é o fundamento escolhido em Paulo Freire para falar de formação docente. Na interação dialógica analisada, o desenvolvimento do processo de formação foi possível na medida em que os professores (tutora, cursistas e pesquisadora) foram capazes de falar e refletir sobre suas práticas, assumirem-se como intelectuais, superando a ideia da transmissão do conhecimento.

Quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razões de ser de porque estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar de promover- me do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica (Freire, 1996 p.44).

Confirma-se este propósito citado por Freire na formação, fazer falar, ter como base a dialogicidade para entender o que acontece no dia a dia da sala de aula, para possibilitar a percepção do ser, do fazer que, embora ingênua inicialmente, pode ser conduzida pelo formador para a criticidade.

O movimento de reflexão crítica e dialógica não surge milagrosamente na formação, ele precisa ser pensado, planejado, provocado e desenvolvido e abrir espaço/tempo para as falas, como ensina Freire (2005, p. 12) em Pedagogia do Oprimido: “Com a palavra o homem se faz homem. Ao dizer sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua essencial condição humana.”. O tutor precisa estar preparado para essa mediação dialógica e, principalmente, para a mediação dialógico-crítica. É fundamental abrir espaço nesta categoria para tratar de forma incipiente dos temas sociocientíficos na perspectiva da produção científica atual, conteúdo que é o pano de fundo dos diálogos transcritos da aula analisada e estarão evidenciados também nas análises da categoria Reflexão mais adiante.

Os temas sociocientíficos têm por objetivo provocar debates, possibilitam a aproximação das reais condições de produção da Ciência e das suas conexões com a Tecnologia, com a Sociedade e com o Meio Ambiente (SILVA e CARVALHO, 2007).

Para a fundamentação dos diálogos dos professores nas interfaces da produção científica como cultura, Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002, p. 34) ressaltam que:

[...] a ação docente buscará construir um entendimento de que o processo de produção do conhecimento que caracteriza a ciência e a tecnologia constitui uma atividade humana, sócio-historicamente determinada, submetida a

pressões internas e externas, com processos e resultados ainda pouco acessíveis à maioria das pessoas escolarizadas, e por isso passíveis de uso e compreensão acríticos e ingênuos; ou seja, é um processo de produção que precisa, por essa maioria, ser apropriado e entendido.

Ao relacionar a perspectiva dos autores supracitados aos episódios de discussões, é possível reconhecer nas falas dos docentes concepções críticas da não neutralidade e transitoriedade da ciência, desmistificando-a, rompendo com a ideia do conhecimento científico como verdade absoluta, bem como a importância de fazer esses questionamentos sobre a produção científica. É possível constatar o posicionamento da tutora e do cursista G. em fugir dos padrões positivistas da educação, tanto no que se refere à produção científica em suas próprias ações na sala de aula quanto nos questionamentos sobre as verdades absolutas do conhecimento. A quebra desses paradigmas científicos ocorre por meio do diálogo na perspectiva Freireana de mediação dialógico-crítica que se desenrola em todos os instantes da investigação e no reconhecimento do ser humano como sujeito central do processo. É preciso que se pronuncie sobre o mundo e o sujeito para que haja um compromisso com a emancipação humana. E é por meio do diálogo que acontece a transição da consciência ingênua para a consciência crítica (FREIRE, 1996).

Para Freire (1996), o diálogo requer, além da organização coletiva, uma temática comum aos interlocutores. O desenvolvimento profissional docente na perspectiva dialógica é favorecido dentro dos pressupostos da abordagem sociocientífica que aconteceu nessa aula presencial do OBECiM. Essa abordagem contribui para a reflexão crítica da prática dos professores cursistas, tutora e pesquisadora organizados coletivamente. Nesse contexto, foi possível desenvolver a formação de professores de ciências por meio dos questionamentos sobre a produção científica considerando os problemas vivenciados e propostos pelos próprios docentes na construção de conhecimentos e aprendizagens mútuas.