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7 ANÁLISES

7.3 CATEGORIA APRENDIZAGEM

7.3.1 Aprendizagem social

A aprendizagem social decorre do ato de ensinar e implica na capacidade do sujeito apropriar-se das características do contexto aprendido. Para ensinar e aprender nessa perspectiva de aprendizagem é preciso estar aberto ao contexto geográfico e social dos estudantes. É necessário adentrar a realidade vivida pelos alunos, tornar- se, se não igual, o menos estranho possível a ela (FREIRE, 1996).

Dessa forma, para melhor compreender isso, segue o recorte do episódio de interação entre tutora e cursistas transcrito da aula presencial da disciplina de Recursos didáticos, que aconteceu no campus Venda Nova do Imigrante - turma de Ciências.

A tutora apresentou aos professores cursistas alguns materiais didáticos de Ciências e Matemática produzidos para a EJA: materiais do ProJovem Urbano, Cadernos da EJA e o Livro produzido pelos professores do Proeja/Matemática do IFES. A tutora propôs aos cursistas analisarem juntos esses materiais tendo como referência as categorias elaboradas por Freitas (2011, p. 136): “a- aprendizagem a partir das próprias experiências e reflexões, b-aprendizagem pela integração em grupo, c- aprendizagem com a busca pela liberdade e d- aprendizagem com o diálogo” em seu livro Educação Matemática na formação profissional de jovens e adultos. Essa dinâmica foi discutida e planejada entre tutores e professor especialista em reunião anterior à aula presencial.

Os cursistas demonstraram por meio de suas falas durante a aula um íntimo entendimento sobre a realidade dos estudantes da EJA, realidade que se apresenta complexa e que tem muito a ensinar aos professores cursistas e tutores sobre a leitura de mundo, sobre a cultura e a história dos alunos da EJA. Esse contexto é o lugar de onde alunos e professores falam. O aluno torna-se visível por meio das características do contexto social apreendido pelo professor. Assim, a discussão prosseguiu com o objetivo de analisar o material didático ao mesmo tempo em que

surgiram os relatos das práticas cotidianas dos cursistas envolvendo a realidade social de alunos da EJA.

Tutora JM.: Vamos comparar, vocês acham que o material exemplificado contempla as necessidades da EJA?

Cursista B.: Creio que sim, porque permite uma maior interação do aluno, uma linguagem mais específica, fazendo com que o aluno se sinta participante e não ouvinte só da aula. Ele não tá ali só pra ouvir o que o professor tem pra falar, ele tá dizendo que o que está sendo dito faz parte daquilo que ele vivencia, ele pode expor sua opinião sem medo do que ele vai falar.

[...]

Tutora JM.: E qual é o desafio no sentido de valorizar o que o aluno já tem, [...] como tem que ser este material didático pra ser aplicado em locais tão diferentes?

Cursista A.: [...] Quando eu valorizo aquilo que o aluno sabe e vive, ele sente-se parte daquilo, e a importância disso é fazer o aluno ser participante, né? Se eu consigo fazer ele se sentir participante, eu consigo o fazer ser crítico.

Cursista W.: O aluno precisa saber pra que ele está estudando aquilo, e na EJA eles querem saber, pra que eu vou precisar disso, professora? E, às vezes, eu também não consigo achar uma explicação [...]. Na EJA, eles precisam ver a importância daquilo que eles estão estudando pro dia a dia mesmo.

Cursista B.: Tem uma professora lá na escola, que é da disciplina de história, e aí ela resolveu dar uma aula sobre previdência, como aposentar, quais os direitos que eles tinham, e aí teve duas pessoas que conseguiram se aposentar por causa desta aula, e teve um cara que conseguiu aposentar a avó dele.

Tutora JM.: Olha que exemplo de aplicabilidade, que surgiu de uma necessidade da prática social dos estudantes

Cursista B.: Eles não sabiam que tinham este direito [...]

Cursista C.: Em Brejetuba, onde eu trabalhei, lá tem muito problema trabalhista com os fazendeiros, teve até problema de mão de obra escrava lá, e tal, eles estavam trabalhando em condições precárias, e aí teve os professores que se envolveram com a causa [...] Porque lá a maioria dos alunos da EJA são trabalhadores rurais, mas a repercussão do caso resolveu parcialmente a vida de alguns.

Tutora JM.: Pois é, esse trabalho aí, ajudou a entender a realidade desses alunos? E no seu caso, lá no presídio, você deve ajudar a transformar a vida de muita gente, né?

Cursista E.: Na verdade, elas me transformaram mais do que eu a elas.[...] Quando a gente começa dar um pouco de atenção, a gente acaba trazendo elas pra gente [...]

Tutora JM.: Acho que o seu papel na humanização é muito importante, ele ultrapassa a disciplina [...] você consegue enxergar a educação para além

das avaliações, para essas mulheres encontrarem um lugar na sociedade, no mercado de trabalho, pra poder realmente transformar a pessoa.

Cursista E.: [...] Eu falo pra elas, aprendi muita coisa com vocês, elas olham e pensam, é impossível que eu vou ensinar algo a alguém,eu estou aqui pra aprender, porque não tive condições de aprender antes [...]

Cursista F.: [...] O professor na verdade é aquele que ensina o caminho, ensina a caminhar, como esse exemplo aí de uma aula sobre previdência, ajudou o cara a aposentar.

Tutora JM.: [...] e o reflexo disso na vida dessa pessoa e da comunidade onde ela vive é para o resto da vida. É esse o papel da educação! [...] Vocês querem colocar mais alguma coisa, pra gente fechar?

Cursista G.: Eu acho assim, que independente da disciplina, aí é matemática, mas percebe-se que o professor tem uma visão muito parecida quando ele está desenvolvendo este papel que nós temos, do que precisa ser melhorado e mudado, de entender o que o aluno vive para transformar, para mudar as coisas.

As professoras (tutora e cursistas) apreendem das diversas realidades vividas a natureza da prática educativa quando discutem a necessidade e a importância de se conhecer não só o que o aluno da EJA vive e traz com ele para a sala de aula, como também os objetivos da aprendizagem que vai fazer diferença e transformar a vida dos alunos. O educador aprende quando cria oportunidades para a aprendizagem dos educandos (FREIRE 1996). É o saber do contexto histórico-cultural como possibilidade de aprendizagem mútua, no sentido da conscientização e transformação da realidade, distanciando da concepção da vida e do mundo como determinação e fatalismo. “O papel [do professor] no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências” (FREIRE 1996, p.85), pois o mundo não é determinado, ele é um constante ser/fazer.

A aula é um debate coletivo sobre a realidade imediata. A interpretação da leitura de mundo na concepção de Freire (1996) deve ir além do que foi discutido pelas professoras. É preciso fazer o desvelamento do contexto histórico-social apresentado, os fatores de sua gênese e evolução. O descobrimento dos fatores que conduziram ao contexto apresentado não se apresenta nas falas dos docentes. O processo de aprendizagem a partir da realidade social transforma-se em uma ação político-cultural, em que a interpretação das palavras e temas que emergem das vivências dos docentes somente serão levadas a efeito quando estiverem grávidas dos processos histórico-sociais correspondentes. É possível esta

constatação na aula exemplificada quando as cursistas falam sobre alguns temas de suas aulas: direitos previdenciários e trabalhistas, mão de obra escrava de trabalhadores rurais e detentas do presídio feminino. Porém, ainda se faz necessário aprofundar a discussão para o que Freire (1996) aponta como possibilidade de desenvolvimento epistemológico das práticas pedagógicas, práticas estas que precisam trazer o conteúdo para ser trabalhado de forma multidisciplinar, que já revela as necessidades do contexto dos estudantes e, por isso, não são neutras.

Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para inserção, que implica na decisão, escolha, intervenção na realidade. (FREIRE, 1996, p. 86)

Os temas geradores abordados na aula presencial analisada são oriundos da aprendizagem social e emergem da prática e realidade dos professores cursistas e tutora. Constatado este fato por meio das falas dos docentes, torna-se necessária a discussão da gênese e evolução histórica desses temas da realidade no sentido de desvelar a perspectiva sociológica, filosófica e ideológica do ensino e da aprendizagem na EJA. A formação continuada nessa perspectiva é capaz de compreender e intervir nas raízes dos problemas e das práticas vivenciadas de forma mais complexa, geradora de conhecimentos críticos.

Em relação às aprendizagens dos tutores, não podemos deixar de mencionar brevemente nesta categoria de análise sobre a experiência dos círculos de cultura de Paulo Freire (1993), que tem muitos aspectos a ensinar sobre aprendizagem social na formação continuada de professores. Nos círculos de cultura existia uma equipe multidisciplinar que acompanhava a formação dos alfabetizadores para fazer uma avaliação posterior dos encontros. Um dos pontos a ser considerado nessa avaliação é a importância de se tomar distância do objeto de estudo para analisá-lo. É possível analisar as respostas dos tutores ao questionário aplicado no término do curso, quando eles já se afastaram da sala de aula e da orientação da escrita do relato de experiência. A segunda pergunta do questionário indagou a respeito de suas próprias aprendizagens no decorrer das aulas (virtuais e presenciais) em contato com os professores cursistas. Seguem algumas respostas:

[...] Aprendi bastante com a experiência dos professores que lidam diariamente com o aluno que retorna para a sala de aula depois de um longo período sem frequentar a escola. Nos encontros, os cursistas aproveitavam para dividir suas experiências e as angústias que a profissão traz durante o

ano letivo e os problemas que são mais frequentes para eles e os alunos. (Tutor F.)

Aprendi que temos que ter paciência nessas relações de trabalho. Nem sempre é possível ao aluno entregar um trabalho na data planejada, estipulada. É preciso que tenhamos paciência e entendimento. (Tutor J.) Em minha vida profissional, nunca trabalhei como professor de turmas de EJA, então, ser tutor de professores que trabalham nessa realidade cotidiana possibilitou-me aprender muito sobre o contexto dessa modalidade de ensino principalmente sobre as realidades socioeconômicas e sobre as melhores estratégias de ensino para esse público. Os alunos do curso OBECIM, por meio de trocas de experiências e relatos de experiências, me fizeram perceber o quão é necessário um material didático e uma preparação profissional específica para aqueles que trabalham na EJA. (Tutor JR.)

[...] Fui capaz de perceber e identificar formas diferentes de ensino em contextos diferentes [...], fiquei especialmente impressionada com o material produzido pelos cursistas em tão pouco tempo e sem muita prática com a atividade proposta. Em alguns casos eu tive dificuldades em pensar num material para contemplar um determinado assunto, mas eles propuseram ótimas situações. (Tutora MA.)

Minha aprendizagem foi muito grande com os alunos de Itapina, polo em que ministrei duas disciplinas. Os alunos me mostraram as particularidades de sua vida no interior do Estado. Aprendi na prática como contextualizar uma disciplina para esses alunos. (Tutora N.)

O contexto social e as peculiaridades (dificuldades e desafios dos alunos) que envolvem a realidade da EJA é o que mais se evidencia nas análises das aprendizagens dos professores. Isso nos habilita a concordar com Freire (1996) de que a aprendizagem que decorre do ato de ensinar implica na apreensão substantiva do objeto. Nas palavras dos próprios professores tutores, suas aprendizagens/apreensões no curso estiveram diretamente relacionadas a “dividir as experiências e as angústias que a profissão traz”; “desenvolver a paciência e entendimento nas relações de trabalho”; “aprender sobre o contexto e as realidades socioeconômicas”; “as melhores estratégias de ensino para o público da EJA”; “contextualizar a disciplina e demais particularidades da vida no interior do Estado”. A distância do objeto de análise para pensar o ato acontecido e o contexto vivido, possibilita desvelar o que é vivenciado/praticado considerando as aprendizagens docentes subjacentes à prática, entender a complementaridade da teoria e da prática e suas relações de complexidade (FREIRE, 1993). Relações que envolvem conhecimentos, metodologias e situações de ensino e aprendizagem; “[...] implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias e ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política e de não poder ser neutra” (FREIRE, 1996, p.78). Por isso se faz necessário que a formação continuada

de professores persista na perspectiva de estudo do contorno social, político e econômico com o objetivo de formar professores mais críticos, capazes ir além da constatação, oferecendo possibilidades e caminhos para uma real transformação não só de sua prática, como também da realidade social que se apresenta desigual e injusta principalmente quando se fala da EJA.