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4 FORMAÇÃO DOCENTE NA PERSPECTIVA FREIREANA

4.4 A PRÁTICA DOCENTE CRÍTICA

A prática reflexiva e dialógica como base para desenvolver o pensamento crítico é o principal fundamento escolhido para falar de formação docente. É possível destacar momentos da prática reflexiva crítica na formação dos tutores, tanto na interação com os cursistas quanto com os professores especialistas. Esse movimento de reflexão e diálogo não surge milagrosamente na formação, ele precisa ser pensado, planejado e provocado, sendo uma das formas por meio do planejamento e da execução das práticas pedagógicas; outra, como ensina Freire (1996), é na prática, na interação educando e educador.

Por isso é fundamental que na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador (FREIRE, 1996, p.43).

Seu desenvolvimento também acontece na interação dialógica entre os professores no processo formativo, por onde a consciência adquire evidência, tanto crítica quanto ingênua. Vale lembrar, nesse intento, sobre a dimensão epistemológica da conscientização que promove o que Freire (1996) chama de curiosidade

epistemológica, que conduz a pessoa pensar criticamente como uma característica vital. Essa curiosidade não é ensinada, nem transferida como conceito ou conteúdo, é uma característica que é consequência do aprofundamento da curiosidade nata, inerente aos seres humanos, ela é vivenciada na linguagem e no diálogo entre os docentes. Nesse sentido, o livro Pedagogia da autonomia relata que não existe diferenciação dessa curiosidade epistemológica entre professores, sejam eles estudantes de mestrado, leigos, graduados ou de quaisquer níveis de formação ou atuação. Segundo Freire (1996, p. 43) “o que se precisa é, possibilitar, que, voltando-se sobre si mesma, por meio da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, vá se tornando crítica”. Assim, considera-se que o momento fundamental para a reflexão crítica acontece no exercício da prática e a ponte para se chegar a esse princípio é o diálogo como forma de construção de um conhecimento representativo das vozes de todas as pessoas, democraticamente. “É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática” (FREIRE, 1996, p. 43). O discurso teórico sobre a prática precisa estar imerso nela, mesmo que se distanciem teoria e prática enquanto objeto de análise, pois quanto melhor se fizer essa aproximação, mais criticidade ganha a prática, superando a curiosidade ingênua e se aproximando da análise crítica da realidade de sua prática. Quanto mais o professor se assume como é, e percebe as razões de ser, mais se torna capaz de se transformar do estado de curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica.

4.4.1 O diálogo

O processo dialógico é abordado em Pedagogia do oprimido de Freire (2005) como valorização da capacidade das pessoas expressarem suas ideias; a oportunidade de articulação do pensamento evidenciado na fala proporciona sua ampliação para níveis mais complexos do desvelamento dos fatos vivenciados. A capacidade de articular e expressar suas ideias já é, em si, um novo instrumental para ampliar o processo de interação entre os sujeitos. As trocas de experiências favorecidas pelo diálogo permitem a demonstração do entendimento sobre a realidade. O constante processo dialógico-crítico-participativo deve ser possível para que todos possam compreender as razões e os fatos que constituem suas vidas e assim se engajar

conscientemente na luta pela transformação de uma situação social sobre uma perspectiva ativa e não conformista, superando a consciência ingênua.

Freire (2005) compreende que a intervenção no mundo é feita com práticas dialógicas, coletiva e problematizadora da realidade. “[...] Tudo foi resumido por uma mulher simples do povo: gosto de discutir sobre isso porque vivo assim. Enquanto vivo, porém não vejo. Agora sim, observo como vivo” (FREIRE, 2005, p.13). É preciso falar, escutar e se distanciar da realidade vivida para observá-la. A consciência vai sendo moldada dentro dessa perspectiva de desvelamento dos fatos e da vivência, de compartilhamento por meio do diálogo do que as pessoas fazem e representam em seu meio social.

[...] quanto mais eu me assumo como estou sendo, e percebo a ou as razões de ser e porque estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica (FREIRE, 1996, p. 44).

A capacidade de expressar ideias por meio da fala possibilita o mútuo reconhecimento e a percepção de pertencimento a determinado lugar e espaço social, renunciando ao princípio que atribui atividades distintas e desconexas ao professor que ensina e ao aluno que aprende. É essa capacidade de percepção do mundo e da complementaridade entre os atores sociais no processo educativo que constitui a essência da pedagogia freireana no que ela ensina sobre o diálogo e a leitura do mundo. As bases teóricas que consideram a participação argumentativa dos sujeitos por meio do diálogo, a linguagem e interação social na construção de ideais comuns são o ponto primordial de análise e de fundamentação convergente das ideias de Freire e Habermas.

Streck e Zitkoski (2010) fazem uma análise da Pedagogia do oprimido a partir da libertação da pedagogia do universalismo neutro que vela formas de dominação para que os sujeitos tenham oportunidades de se recriar a partir do outro. O diálogo não é concebido como método, não se opta pelo diálogo em um curso, em uma aula. A dialogicidade é uma forma das pessoas se relacionarem entre si e com o mundo, é uma exigência da natureza humana caracterizada pela consciência do vir a ser e da sua incompletude. A (re) construção dessa humanidade constitui-se na cultura, na história contada e revivida pelo ser social, o “vir a ser” não existe à parte do “estar sendo”, assim como o “ser mais” também não se constitui sem o “ser com”.

O diálogo é constituído com as pessoas na busca pela própria palavra, autêntica, grávida de mundo, a palavra geradora que revela o sujeito em construção, que encontra o outro para dizer e ouvir suas palavras, fazer juntos a leitura do mundo que, de acordo com a pedagogia freireana, antecede a leitura da palavra. Torna-se um exercício constante do educador disposto a ouvir, que está em processo constante de autoformação com seus pares.

Na obra Pedagogia da autonomia, Freire (1996) aponta a necessidade de o professor estar disponível para o diálogo respeitoso às diferentes relações e opções dos outros, mantendo a coerência entre o que se diz e o que se faz. A palavra docente é legitimada pelo saber da experiência, não no sentido de saber tudo ou de saber mais, sua segurança é ancorada na premissa de que todos sabem algo e ignoram algo. Na busca por compartilhar o que se sabe e abrir caminho para conhecer o que ignora, em um trecho do texto Freire (1996) demonstra a importância da disponibilidade ao diálogo e à reflexão crítica para a prática educativa e formativa nas relações humanas.

Me sinto seguro porque não há razão para me envergonhar por desconhecer algo. Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios são saberes necessários à prática educativa. Viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o momento tomar a própria prática de abertura ao outro como objeto de reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente. [...] A experiência da abertura como experiência fundante do ser inacabado que terminou por se saber inacabado (FREIRE, 1996, p. 153).

A humildade de se perceber inacabado e inconcluso por meio dessa abertura ao processo dialógico é que conduz a curiosidade, a busca de explicações, da razão de ser e das respostas que levam a novas perguntas. “O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude” (FREIRE, 1996, p. 153). A abertura ao mundo como seres históricos e inacabados, prontos para aprender indica a necessidade do movimento de formação permanente e contínua para educadores e educandos em espaços de construção do conhecimento pertencentes a quem escuta e quem fala.