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7 ANÁLISES

7.2 CATEGORIAREFLEXÃO

7.2.1 A reflexão exige criticidade

Para Paulo Freire, na formação de professores, é preciso ir além de pensar a prática pedagógica, essa reflexão requer criticidade. "A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência na relação teoria/prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática ativismo” (FREIRE, 1996, p. 24). A indissociação e a complementaridade da teoria e prática, do ensino e da pesquisa no contexto do profissional pesquisador são um ponto fundamental de convergência entre Freire (2005) e Schön (1992).

Para falar da reflexão que conduz à criticidade, é preciso entender a relação dialética entre ensino/pesquisa e teoria/prática na formação docente. Para Freire (2005), a ação-reflexão é uma unidade dialógica da prática, o saber reflexivo realimenta o fazer crítico, cuja consequência incide novamente sobre o conhecimento, como um círculo.

A reflexão crítica busca superar a dicotomia tradicional entre o fazer e o saber, entre a teoria e a prática, entre a educação para pensar e a educação para o mundo do trabalho, entre a pesquisa científica e a prática cotidiana da sala de aula. Assim sendo, existem dois contextos indissociáveis e complementares a serem considerados: o contexto teórico do conhecimento científico e o contexto prático da realidade social. Os sujeitos estão em ambos os espaços. Dessa forma, as interações e experiências dos professores, provenientes dos meios de discussões na formação continuada, precisam permitir a veiculação de teorias didático- pedagógicas do meio acadêmico/científico nas mesmas condições em que transitam nas práticas dos professores nas escolas e salas de aula (MALDANER, 1997).

Para exemplificar o processo de desenvolvimento reflexivo crítico do professor pesquisador, a tutora R. escreve em seu relatório de estágio supervisionado - PES1 a respeito da relação entre os saberes profissionais docentes e os

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Prática de Estágio Supervisionado que se constitui como componente curricular obrigatório para os mestrandos do terceiro período do EDUCIMAT.

programas/conteúdos de ensino. A tutora R. relata uma situação vivida em uma aula presencial com cursistas do OBECiM, ressaltando a vinculação entre conteúdos matemáticos e a forma de orientar a aprendizagem (metodologia) desses conhecimentos.

A experiência enquanto tutora formadora nessa turma de professoras cursistas “não matemáticas” foi que não se pode desvincular conceitos matemáticos e prática metodológica, pois se assim fizermos, podemos cair no erro de só ensinar matemática ou somente didática de forma desvinculada, não executando a formação de professores de forma eficiente. O formador tem que fazer a prática conforme a teoria que ele se propõe a trabalhar. Pude perceber um encantamento matemático desenvolvido pelas cursistas, não somente pelos conceitos/conteúdos matemáticos que passaram a fazer sentido para elas, mas também pelo método do qual esses conceitos foram trabalhados – pela resolução de problemas. (Tutora R.)

Não basta transpor, professor e aluno o conhecimento científico do senso comum para o ensino formal, não se trata de uma transposição, mas sim da associação das duas representações de saberes (formal e vivido) no entendimento de sua complementaridade. Uma complementaridade que deve ir além da teoria e metodologia proposta pela tutora R., ela deve abarcar também temas que envolvam o contexto social dos aprendizes.

Para relacionar a importância da complementaridade da teoria/prática/realidade social, do ensino/pesquisa, Paulo Freire (1996) fala sobre o professor pesquisador, que esta não é uma qualidade ou forma de ser do professor, “faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa” (FREIRE, 1996, p. 32). É necessário que na formação continuada o professor se perceba como pesquisador de sua prática, correlacionando sua experiência/vivência prática às teorias educacionais, e exercitando o pensamento crítico e o questionamento, fios condutores da criticidade.

O desenvolvimento da capacidade crítica na formação de professores está intimamente ligado a dois pressupostos: a pesquisa e a curiosidade. A reflexão sobre a prática no contexto da pesquisa acontece em diversos momentos, no sentido de avançar no desvelamento da curiosidade ingênua que vai se desenvolvendo e se tornando epistemológica e crítica. Na construção do conhecimento, o exercício da curiosidade é praticado ao tomar distância do objeto de estudo para observá-lo, delimitá-lo, compará-lo e principalmente fazendo novas perguntas. “Estimular a pergunta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta, o que

se pretende com esta ou aquela pergunta em lugar da passividade em face das explicações discursivas do professor [...]” (FREIRE, 1996, p. 96).

Assim, será descrito um trecho abaixo da aula presencial da disciplina de Metodologia do Ensino de Ciências com a turma de ciências do campus Vitória que abordou o assunto Temas sociocientíficos controversos, que demonstra a importância da postura questionadora do professor tutor na condução da reflexão na formação. Observa-se na fala da tutora a importância da pergunta no sentido de aguçar a curiosidade dos professores cursistas. As respostas são apresentadas em forma de novas perguntas, ingênuas inicialmente, que vão se tornando mais críticas e elaboradas no decorrer da aula, desvelando a reflexão crítica sobre o conteúdo de Ciências (reações químicas de saponificação e tratamento de água/esgoto).

Tutora J.: E nós temos temas que são sociocientíficos controversos. O uso de controvérsias é próprio pra provocar debates [...] você não está respondendo uma pergunta, você responde com uma pergunta e vai deixando a pessoa chegar a uma conclusão, você vai, no caso, mediando, que é esse nosso papel em sala de aula, mediando o conhecimento e o processo de ensino aprendizagem. Então, aqui nós temos um exemplo: tomar medicamento, curar-se ou envenenar-se?[....] Outra, o óleo das frituras, jogar no ralo da pia que é mais prático ou você tentar juntar? E aí o que a gente faz? Cursista JP: Jogar no ralo da pia, risos... é, ué, eu vou juntar e depois vou fazer o quê?

Cursista G.:Deixa eu fazer uma pergunta aqui que sempre rodeia minha cabeça: Do ponto de vista do ambiente qual é a diferença de botar o óleo no ralo da pia e ele é adicionado a produtos químicos [inaudível] Se eu tô lavando a vasilha e jogo água junto com o óleo ele vai in natura para o rio? Tutora J.: Sim, ele vai ficar boiando eternamente na natureza porque não mistura com a água.

Cursista G.: Agora, quando eu penso ele adicionado a outros produtos químicos que geralmente é a soda, eu vou lavá-lo, ele vai junto com a água para o ralo, qual a diferença?

Tutora J.:A diferença é se você pega a soda in natura, misturar com a água e jogar no ralo, o ph da soda é um ph alto e muito básico, então o que vai acontecer? Vai ser prejudicial para o meio ambiente, agora quando você faz aquela mistura, você vai fazer uma reação, vai misturar a soda com o óleo que já foi bem saturado reutilizado, frito, então você coloca esta reação que tende a ficar com o ph próximo do neutro, o que se torna menos prejudicial p o ambiente

Cursista G.: Agora uma outra questão, eu não sou da área da química por isso que estou perguntando. [...] Partindo do princípio que o aumento do tratamento da coleta de esgoto está existindo, há uma diferença na hora de processar este tratamento de óleo bruto né, ou ele na forma de sabão?

Tutora J.: Na estação de tratamento? Cursista G.: É, é será que tem?

Tutora J.: Aí eu não sei, mas eu acho [...]

Cursista R.: Você gasta muito mais água contaminada com óleo, até porque o óleo ele forma uma pedra no esgoto, quando você faz o sabão tem aquela propriedade polar e apolar que acaba que você diminui [... ].

Tutora J.: Ah, Lembrei, lembrei, que forma a micela que você consegue agrupar tanto do lado do óleo quanto de outro da água, aí forma a micela que provoca a limpeza [...] Este tratamento que tem aqui em Vitoria, eu nunca tive a oportunidade de conhecer, mas a primeira coisa que deve existir é uma barreira física [...]

Cursista E.: Eu já fui lá, então, existe um filtro, que é a barreira física, igual o tratamento de água, depois vai para a sedimentação, tem a questão de uma luz ultravioleta, só que quase nunca eles ligam, o próprio técnico quando eu levei os alunos na estação falou gasta muita energia, às vezes está queimada, essa luz é pra fazer a desinfecção . Mais é basicamente a barreira física e depois aqueles piscinões lá de decantação

Cursista L.: Mas em relação ao que acontece nas cidades que a maioria não tem estação de tratamento, já é uma evolução, não é 100%, mas já é um caminho, até que alguém descubra uma outra alternativa.

Tutora J.: Esta alternativa a gente já está discutindo também, a gente pode pegar o sabão, utilizar o óleo de cozinha para fazer o sabão, tudo isso envolve a alfabetização científica, já ouviram falar deste termo? Se você pega um rótulo, sei lá, pode ser este aqui da água mineral, você vai lá e olha a composição, tá aqui falando o cálcio, o sódio, se você pega um rótulo desse, na tô falando que você vai ser um químico pra entender profundamente, [...] hoje em dia tem o sal que é dito ligth, ele tem 50% menos de sódio, mas por quê? O que quer dizer ter 50% menos de sódio? O que o sódio pode fazer na gente? Você está ingerindo sal que tem alto teor de sódio? O que isso quer dizer?

Cursista L.: Pressão alta [...]

A transição da curiosidade ingênua para a crítica exige que seja ultrapassada a passividade diante das certezas, exige a busca de respostas para as perguntas que não foram feitas, sem negar a importância que expõe os conteúdos, as narrativas e a história da construção do conhecimento científico. Observa-se na transcrição da aula acima muitas “perguntas-respostas” ou “respostas-perguntas” dos professores na construção do conteúdo científico. Cada professor conhece uma parte do processo de saponificação da gordura e do tratamento de água/esgoto dentro de seu campo de conhecimento/formação disciplinar. Nesse episódio da aula presencial da turma de Ciências, a busca pelas respostas às indagações surgidas no decorrer da aula apresenta a construção do conhecimento/conteúdo problematizador, questionador e coletivo.

Freire (1996) entende que a reflexão crítica sobre a prática pedagógica já traz a teoria/conteúdo como exigência, tudo parte da vivência social dos sujeitos, de falar e compartilhar as experiências por meio do diálogo.

No exemplo da aula supracitada, a curiosidade inicialmente ingênua foi se tornando reflexiva e crítica quando todos contribuíram com suas experiências e conhecimentos prévios sobre a química da saponificação e do tratamento de água/esgoto. Para possibilitar esse movimento, é importante que a formação de professores de Ciências tenha como pressupostos básicos a reflexão e a dialogicidade nos momentos de discussão durante as aulas, conduzindo e estimulando os professores à exposição de suas experiências e realidade, o questionamento e a pesquisa.

Mas ainda é preciso ir além nas perguntas reflexivas, buscar compreender os motivos subjacentes aos fatos/narrativas/conteúdos óbvios e visíveis que se apresentam descolados da realidade. É preciso entender os mecanismos, os recursos, as políticas e os métodos tradicionais que aprisionam e cerceiam as práticas, a reflexão, as aulas, os conteúdos etc. Isso implica em que alunos, professores, tutores, cursistas, pesquisadores e especialistas sejam epistemologicamente curiosos para provocar a reflexão crítica e sustentá-la com argumentos progressistas a favor da compreensão da complexidade do contexto social ao qual estão inseridos.

O professor tutor precisa estar preparado para conduzir e mediar a discussão no âmbito da crítica social. Para Freire (1996, p.92), “uma das tarefas fundamentais do educador progressista é, sensível à leitura do grupo, provocá-lo, bem como estimular a generalização da nova forma de compreensão do contexto”.

Na mesma aula (Temas sociocientíficos), disciplina (Metodologia de Ensino de Ciências) e turma (Ciências-Vitória) analisada anteriormente foi possível observar outro episódio de interação entre tutora, cursistas e pesquisadora. Segue transcrito um momento de reflexão efetivamente mais crítico. Nesse episódio, surgiram dois questionamentos: a respeito da preponderância das metodologias, conteúdos e recursos tradicionais de ensino e sobre o processo de avaliação institucional externa imposto pela secretaria de educação estadual ao sistema educacional.

Tutora J.: [...] eu estava falando sobre Lavoisier e cheguei na revolução Francesa né, então fiquei conversando com os alunos, teve aluno que adorou,[...] outro falou: nossa, mais você não escreveu nada no quadro! [...] e a conversa começou a ficar tão rica que eu fui conversando, e EJA geralmente os alunos participam muito da aula, então, no final a maioria gostou e teve um que insistiu que a professora não deu nada, porque eu não tinha passado nada no quadro.

Cursista L.: Mas, se você for olhar os mecanismos de avaliação do processo de ensino-aprendizagem, os indicadores da educação eles são voltados para o ensino tradicional [...]

Cursista G.: Uma vez que eu tenho que pensar o ensino de meu aluno condicionado a uma realidade avaliativa igual foi colocado na proposição da secretaria de educação, qual é o foco no nosso caso do ensino médio? As avaliações externas, né? Agora, vendo a realidade do nosso Estado, o maldito bônus desempenho condicionado a uma questão de nota do aluno numa prova, então isso acaba engessando o processo.

Tutora J.: O bônus desempenho também pune o professor que dá atestado médico, quer dizer, você não pode ficar doente? Você é penalizado por ficar doente! Não recebe o bônus se apresentar o atestado!

Cursista G.: [...] lá na prova escrita, você não vai trabalhar outra coisa que não seja resolução mecânica de problemas [...] o conteúdo você esquece, eu só sei o conteúdo porque eu sempre dou aula pra essa série, se eu ficar dois anos sem dar aula para essa série eu vou esquecer como tem um monte de coisas que eu já esqueci, mas o que você tem que ter é construir mecanismos para buscar ele, informação você busca, você não guarda. Pesquisadora: Agora, vai ler e entender a lei que trata do bônus desempenho, ela valoriza a meritocracia, conteúdos e competências e não do significado da construção do conhecimento, nem de educação crítica.

Nesse trecho, as interações dos professores descrevem a rigidez e a hegemonia do ensino tradicional que parece estar enraizado nos alunos como sendo a única e principal metodologia de ensino-aprendizagem. Outro ponto importante de reflexão crítica foram as falas dos interlocutores sobre os mecanismos políticos que subjazem e condicionam esta preponderância no ensino tradicional: as avaliações externas do sistema educacional e a lei do bônus desempenho, questões que estão entrelaçadas. As avaliações são legitimadas pela Secretaria de Educação do ES que condiciona o pagamento de uma bonificação em dinheiro por desempenho profissional ao professor e demais servidores da educação cuja escola tenha bons resultados no processo avaliativo institucional. Esta bonificação por desempenho é regida pela lei complementar número 504-20/2009 e pelo decreto n° 2761-R/2011. É o que o professor cursista G. denomina de “maldito bônus desempenho”, cujo primeiro critério para a concessão pecuniária aos professores da rede estadual se baseia nos resultados do Programa de Avaliação da Educação Básica do Espírito Santo (PAEBES), e o segundo critério é a assiduidade do professor, sendo

descontados inclusive atestados médicos como afirma a tutora. Diante dessa análise,pode-se constatar o nível mais aprofundado e crítico dos discursos dos professores, no sentido de desvelar o que está oculto na legislação do sistema educacional. Sendo assim,se tornam um dos entraves que dificultam as práticas de uma educação integral, humanista e progressista no contexto da realidade vivida por esses docentes.

Concorda-se com Echeverría, Soares e Benite (acesso em 2015), que pensar sobre a reflexão crítica da prática pedagógica é pensar além da prática cotidiana e suas vicissitudes, é ir além das discussões metodológicas e dos conteúdos de ensino, sem desconsiderar sua importância,

[...] o professor necessita analisar as condições sociais, políticas e econômicas que interferem e m sua prática pedagógica. Dessa forma, se queremos que na escola o professor modifique sua ação, nós professores formadores,temos que modificar a formação inicial que estamos oferecendo, temos que fomentar a aquisição de instrumentos intelectuais que lhes possibilitem sair das ideias do senso comum não refletido. Não estamos propondo um retorno à racionalidade instrumental, mas uma abordagem dialética da formação profissional. (ECHEVERRÍA, SOARES e BENITE (acesso em 2015 p. 6)

Esta formação crítica está intimamente ligada à concepção de educação como ato político na perspectiva Freireana. O caminho para trabalhar no âmbito das forças político-sociais exige que se reconheça que a educação é ideológica e deve ser vista como componente essencial do conhecimento e da prática educativa na formação de professores. Na ideologia está ancorada a verdade dos fatos, que muitas vezes são ocultados para tornar a realidade com aparência de neutralidade, para que não enxerguemos o que se esconde no discurso fatalista, no pragmatismo e cientificismo das práticas pedagógicas descoladas da formação integral, humanista, crítica e emancipadora. Concorda-se com Freire (1996, p. 145) “que nenhuma teoria da transformação político-social no mundo nos comove, sequer, se não partem de uma compreensão do homem e da mulher com seres fazedores da história e por ela feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção”.