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A escola democrática estudada: história, organização e relações estabelecidas

4 REFLEXÕES SOBRE AS ESCOLAS NO BRASIL

6. TRÊS CASOS DE ESCOLAS ALTERNATIVAS

6.1 Escola democrática

6.1.1 A escola democrática estudada: história, organização e relações estabelecidas

Localizada na periferia de um município do interior de São Paulo, a escola democrática aqui estudada trata-se de uma escola municipal de ensino fundamental. Uma escola pública, fundada em 1982, mas que deu início ao seu processo inovador em 2013. Atualmente9, a escola atende 488 alunos do ensino fundamental (1º ao 9º ano), em dois turnos, no período da manhã, das 7h00 às 12h20, frequentam a escola os alunos do 5º ao 9º ano; enquanto a tarde, das 12h50min às 18h05min, estão presentes os alunos do 1º ao 4º ano do ensino fundamental. Estes períodos, manhã e tarde, são destinados às aulas previstas na matriz curricular, enquanto outras atividades, incluindo as esportivas da comunidade, podem durar até às 20h30min, ou ocorrer aos finais de semana.

A presente escola se autodenomina como “democrática” e de acordo com a coordenadora pedagógica DC: “o modelo pedagógico atual surge a partir da análise de experiências internas bem-sucedidas, além de inspirações externas baseadas em estudos da Escola Municipal Amorim Lima, da cidade de São Paulo/SP, e da Escola da Ponte, de Portugal”. Para DC, ambas as escolas foram importantes fontes de inspiração, entretanto, o contexto de conflitos internos e de falta de professores em que a Escola Amorin Lima emergiu reflete melhor o contexto da presente escola na busca por inovações.

De acordo com a coordenadora pedagógica, a necessidade de mudança se intensificou no ano de 2013, quando as salas de Ensino Fundamental dos anos finais, que funcionavam no período da tarde, passaram para o período matutino. Com essa troca de turno, houve também a saída de alguns professores, que por questão de acúmulo de cargo ou de emprego, não tinham disponibilidade para trabalhar no novo horário. Ou seja, essa mudança culminou na falta de professores, afetando diretamente os alunos que, sem algumas aulas semanais, começaram a

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apresentar mudanças de comportamento, tornando-se apáticos, desinteressados e indisciplinados, gerando relações tensas na sala de aula.

Nesse ambiente de conflitos e de problemas enfrentados corriqueiramente, não só por esta, mas por várias escolas públicas de nosso país, a gestão da escola decidiu tomar uma iniciativa diferente. Utilizando os momentos de reunião pedagógica a gestão decidiu instigar e discutir com o corpo docente os motivos que estavam levando os alunos aos conflitos e à indisciplina. Em grupo, começaram a procurar por possíveis soluções para esses problemas.

De acordo com o relato de DC, o principal exercício reflexivo dessas reuniões tinha como base a pergunta “Que tipo de ser humano queremos formar?”. Concluíram, então, que a formação do ser humano de forma integral, enquanto cidadão ativo, seria o objetivo principal a ser atingido. Para isso, o grupo percebeu que respeitar as individualidades e conceder mais voz e autonomia aos alunos seria um processo fundamental. Em conjunto, gestão e corpo docente passaram a discutir diferentes possibilidades metodológicas para que pudessem chegar a esse resultado de forma mais eficiente. Para a coordenadora DC, esse não foi um período fácil, uma vez que havia muita resistência e muitos conflitos internos, entretanto, foi a partir dessas discussões metodológicas que as mudanças e inovações começaram a surgir.

A escola municipal organizava, anualmente, uma Semana Literária, na qual eram feitas exposições de produções dos alunos e oferecidas oficinas literárias, ministradas por um conjunto de professores ou por palestrantes externos, com temas diversos. O grupo de estudos, montado por gestão e corpo docente, notou, então, que durante as oficinas oferecidas na Semana Literária, o comportamento dos alunos se modificava. Os episódios de conflito e indisciplina se tornavam escassos e os alunos se demonstravam interessados pelas aulas que aconteciam durante as oficinas. O grupo começou, então, a se questionar “O que as oficinas apresentam de diferente que traz essa modificação benéfica no comportamento dos estudantes?”.

Conforme relatado por DC, os alunos tinham a liberdade de escolher e se inscrever apenas nas oficinas de seu interesse. Além disso, as oficinas não eram oferecidas por série ou faixa etária, participavam de uma mesma oficina estudantes de diversas séries do ensino fundamental, o que proporcionava uma rica troca entre eles. Por que, então, não criar disciplinas que se desenvolvessem dessa mesma forma?

O problema estava em como criar e implementar tais disciplinas no currículo escolar. Foi então que entraram as inspirações e exemplos de experiências externas de forma a orientar a escola

nesse processo. De acordo com o relato de DC, o estudo das experiências vivenciadas pelas escolas Amorim Lima, de São Paulo e Escola da Ponte, de Portugal, foram as fontes de inspiração externa. Após ver e discutir o vídeo da instituição portuguesa (Escola da Ponte), a gestão e o corpo docente se inspiraram a conhecer a escola Amorim Lima, que se “democratizou” através de inspirações e experiências trazidas por José Pacheco, educador e orientador da instituição portuguesa.

Dessa forma, com base em experiências internas bem-sucedidas e em exemplos externos, a inovação teve início com a criação do projeto de ateliês, escrito em conjunto com o corpo docente e apresentado a Secretaria de Educação do município em 2014. De acordo com DC, a secretaria gostou no projeto proposto e o aprovou, porém, sugeriu que a escola fizesse mais estudos e começasse a implementação das novas ideias apenas em 2015. Apesar da resposta positiva, mas que postergava as ações, os membros da escola se reuniram com a comunidade em Conselho Escolar e decidiram que as mudanças poderiam começar já em 2014.

A primeira mudança partiu da percepção, feita pelo grupo de professores, de que as aulas simples, de apenas 50 minutos, rendiam menos do que as aulas duplas, de 100 minutos. A partir dos relatos dos professores e em consenso com os alunos, as aulas de cada disciplina começaram a ser reorganizadas semanalmente, de forma a possibilitar que as disciplinas ocorressem sempre em aulas duplas, como podemos observar no Quadro 5.

Quadro 5 – Organização das atividades em um dia de aula do Ensino Fundamental anos finais na escola democrática.

Com essa nova configuração de aulas semanais, foram criadas e implementadas as aulas ateliês e as aulas tutoriais. Os ateliês se constituíram como disciplinas e são oferecidos atualmente no período de aula dos estudantes, duas vezes por semana, ocorrendo também em aulas de 100 minutos (aulas duplas), configurando uma disciplina com carga horária total de aproximadamente quatro horas semanais, enquanto as tutorias ocorrem no contraturno do estudante, como apresentado no quadro 5.

Elaborados de forma multidisciplinar e multi-seriada, os ateliês e tutorias trabalham diferentes temas com os alunos, que possuem a liberdade de escolha sobre qual ateliê ou tutoria participar. Os grupos de ateliês e tutorias são formados, portanto, de acordo com o interesse de cada estudante e não por sua idade/série. A única diferença entre eles é que os ateliês ocorrem como disciplinas curriculares para todo o Ensino Fundamental, no período de aula dos estudantes; já as tutorias ocorrem uma vez por semana no contraturno dos alunos e, por questão de infraestrutura (falta salas) são oferecidas apenas aos estudantes dos 8º e 9º anos, sendo que os mesmos recebem atividades que devem cumprir a distância, “atividades online”, além das atividades presenciais, como podemos observar no Quadro 5.

Para DC, “tanto os ateliês quanto as tutorias oferecem mais autonomia aos alunos, já que estes podem escolher seu tema de preferência para os estudos”. Ainda, as observações feitas durante os ateliês e os registros no Diário de Bordo da Escola Democrática mostraram que organização para desenvolvimento dos ateliês e tutorias é sempre feita em grupos de alunos, que pesquisam, estudam e desenvolvem as atividades conjuntamente, sendo o professor um mentor, que orienta as atividades e auxilia no desenvolvimento da mesma.

A forma de organização dos ateliês e tutorias vai ao encontro das experiências realizadas tanto na Escola da Ponte quanto na escola Amorim Lima, fontes de inspiração para essa escola municipal. A partir dessas mudanças e com novos conhecimentos adquiridos, o grupo de trabalho desta escola viu a necessidade de organizar uma nova matriz curricular. De acordo com relato de DC, a escola pôde modificar a organização curricular oficialmente, incluindo no currículo as tutorias e ateliês como disciplinas, apenas em 2015, quando a proposta foi publicada em Diário Oficial. Antes da oficialização, quando os ateliês foram implementados no ano de 2014 eram desenvolvidos como projetos e/ou oficinas, não disciplinas.

Entretanto, é importante pontuar que, apesar da inserção dos ateliês e tutorias na grade curricular, estes ainda não substituem ou unem completamente as aulas dos demais componentes

curriculares, como ocorre atualmente na Escola da Ponte e na escola Amorim Lima. As demais aulas semanais continuam sendo distribuídas e organizadas em disciplinas convencionais (Ciências, Geografia, História, Artes, Educação Física, Português e Matemática).

Para oferta e organização dos ateliês, a escola conta com um grupo de trabalho denominado Estudos e Planejamento de Ateliês (EPA). Nesse grupo, os professores dos diferentes componentes curriculares escolhem os temas a serem trabalhados e formam duplas para que o trabalho ocorra de forma multidisciplinar. Os projetos e temas desenvolvidos pelos ateliês e tutorias ocorrem de forma semestral, ou seja, com a mudança de semestre mudam-se também as duplas de professore e os temas e projetos que serão ofertados pelos ateliês e tutorias.

Nos anos de 2014 a 2016, as reuniões para discussão dos ateliês e tutorias ocorriam junto com as reuniões pedagógicas semanais. A partir de 2017, a participação no grupo de trabalho EPA começou a fazer parte da jornada de trabalho dos professores, sendo que os mesmos devem dedicar quatro horas semanais ao Estudo e Planejamento de Ateliês, como mostra o excerto publicado em Diário Oficial, no dia 30 de julho de 2017 (Figura 1).

Figura 1 – Excerto de publicação em diário oficial que regulamenta a participação dos professores no grupo de trabalho EPA da escola democrática (destaque nosso).

Fonte: Diário Oficial do município, 2017.

Para que todas essas mudanças e inovações fossem conquistadas, a coordenadora DC relata que foi preciso o apoio dos docentes, funcionários, estudantes e familiares, enfim, de toda comunidade escolar. Isso se deu através de assembleias e de atuação fundamental do Conselho Escolar e do Grêmio Estudantil, as decisões eram sempre tomadas de forma coletiva e por votação, sendo que tudo o que era decidido, para se efetivar, precisava da aprovação da Secretaria de

Educação do município. Ou seja, não foi um processo rápido, nem fácil, porém em conjunto conseguiram chegar a bons resultados.

Em 2015, após um ano do processo inicial para inovação, a escola decidiu participar do programa Mapa da Inovação e Criatividade (BRASIL, 2015), criado pelo Ministério da Educação (MEC). Para que a escola pudesse ser incluída no Mapa da Inovação e Criatividade teve que passar por um processo avaliativo.

A escola foi avaliada por inovação e criatividade de acordo com cinco critérios: gestão, currículo, ambiente, métodos que levassem em consideração o estudante como protagonista da sua aprendizagem e articulação com agentes externos(PPP – Escola Democrática, 2017).

Após avaliação do MEC, a escola, atualmente, faz parte da lista de instituições que compõe o Mapa Brasileiro da Inovação e Criatividade na Educação Básica, sendo uma, entre as 178 escolas brasileiras selecionadas. Tal resultado trouxe prestígio e visibilidade à escola, que passou a ser mais procurada e chegou a receber recursos, que foram investidos em materiais e na estrutura da própria escola.

Quanto à infraestrutura, a escola atualmente conta com:

[...] nove salas de aula com tamanho adequado, porém com pouca ventilação e claridade; uma pequena sala de professores; uma sala de direção; uma sala de orientação pedagógica com o espaço dividido reservado para a concentração do computador que fornece acesso às câmeras de segurança interna e externa; uma secretaria, uma pequena sala para algumas atividades específicas de educação especial, uma quadra coberta, uma tenda de tamanho 8m x 8m, um quiosque pequeno, um parque com casinha, mesa de ping-pong de cimento no pátio, duas áreas com mesas e bancos de cimento (PPP – Escola Democrática, 2017).

Alguns desses elementos podem ainda ser observados conforme vista superior da escola apresentada na Figura 2.

Figura 2 – Escola Democrática vista de cima por imagem via satélite.

Fonte: Google Maps, 2019.

Legenda: 1– Quadra coberta; 2 – Cozinha e refeitório; 3 – Biblioteca, salas de reunião e sala dos professores; 4 – Jardim/pátio, com mesas e bancos de cimento; 5 – Prédio com salas de aula.

Além disso, cerca de 30 novos laptops foram adquiridos para que os alunos pudessem utilizar em suas pesquisas, durante as aulas, tendo acesso à internet. A escola conta também com equipamento multimídia (Datashow) em todas as salas de aula. Porém, a coordenadora DC lembra que todos os espaços da escola também podem ser utilizados como espaços de aprendizagem e que alunos e professores não precisam ficar restritos à sala de aula.

Nas visitas realizadas, percebemos que o prédio possuía uma estrutura comum, térrea, semelhante ao de outras escolas públicas. Paredes pintadas de cores claras, as salas de aula com cortinas em diferentes cores e, na maioria delas, as carteiras estavam agrupadas e não enfileiradas, havia um pátio entre as salas de aula, com um pequeno jardim ao centro. O refeitório, de tamanho razoável, se localizava no centro do prédio e as refeições eram colocadas à mesa para que os alunos pudessem se servir. Dentro dessa estrutura, um fato que nos chamou a atenção foi o uso constante dos espaços externos, tanto por alunos quanto por professores.

O PPP da escola também chama atenção, relatando todo esse processo inovador instaurado. Além das ações já citadas, o PPP traz um capítulo intitulado “Intercâmbio e Ações Conjuntas”, no qual podemos ler sobre a parceria da escola com diversos atores como: o centro comunitário do bairro, o centro de saúde, o conselho tutelar da região e faculdades da área de saúde. Essas características realçam ainda mais algo que é comum às demais escolas democráticas: a parceria e o uso de diferentes espaços de aprendizagem. De acordo com Singer (2010, p. 68), “desde Tolstoi,

a exploração e vivência dos espaços externos à escola permanecerão como elemento estruturante da educação democrática [...] Esta vivência inclui a atuação da escola com sua comunidade [...]”. Para a autora, as parcerias e o uso dos espaços externos permitem que os alunos vivenciem novas experiências, conheçam novas culturas, além de proporcionar novos espaços para reflexões e debates sobre os temas tratados.

Vale retomar, nesse momento, os outros pontos em comum, também observados por Singer, para as escolas democráticas: “a gestão participativa [...]; a organização pedagógica [...] sem currículos compulsórios; e as relações não hierárquicas entre estudantes e educadores. (SINGER, 2008, p. 8)”. Observamos todas estas características na presente escola. Encontramos a gestão participativa quando, através dos relatos da coordenadora DC, dos documentos analisados, e das visitas realizadas, observamos a participação ativa da comunidade escolar no grupo de trabalho EPA, no Conselho Escolar e no Grêmio estudantil. Vivenciamos a organização pedagógica sem currículos compulsórios através da organização e desenvolvimento dos ateliês e tutorias de acordo com o interesse dos alunos, sendo os mesmos selecionados por eles. E notamos as relações não hierárquicas entre estudantes e educadores, quando os mesmos atuam como mentores, e não como únicos detentores do conhecimento, durante os ateliês e tutorias.

Entretanto, apesar da inserção de vários elementos democráticos na escola, como já comentado anteriormente, a mesma ainda possui maior carga horária destinada ao desenvolvimento das disciplinas tradicionais, o que a diferencia das escolas democráticas já estudadas pela literatura (Escola da Ponte, Amorim Lima etc.). Em conversa com a coordenadora DC, a mesma relatou que o grupo gestor juntamente com o grupo docente apresenta preocupação e propõe reflexões sobre a forma como se organizam e distribuem as disciplinas, sendo que já conquistaram espaço na grade curricular para os ateliês e tutorias, e pretendem ainda conseguir a não “hierarquização” das disciplinas, distribuindo carga horária semanal igual a todos os elementos curriculares, não oferecendo maior quantidade de aulas para Matemática e Língua Portuguesa apenas, como é feito atualmente. De acordo com o relato de DC, um pedido documentado para que essa mudança na carga horária das disciplinas ocorra já foi encaminhado à Secretaria de Educação do município, porém esse é um processo burocrático e demorado que acaba limitando as ações da escola nesse sentido.

Dessa forma, apesar dessa constatação referente às disciplinas, compreendemos que a escola estudada possui características democráticas que puderam ser vivenciadas por meio dos

diálogos, das entrevistas e das observações realizadas durante as visitas. Mesmo com um cerne ainda tradicional, compreendemos que tal característica presente na escola se deve principalmente a um conjunto de fatores externos como políticas públicas, avaliações externas, documentos oficiais e burocracias, que ainda prendem seus atores a ele.

Dizemos isso, pois, como descrito no livro “Escola da Ponte”, quando José Pacheco chegou à escola em 1976 ela se defrontava com um conjunto complexo de problemas, entre eles: indisciplina, agressão a professores, isolamento face à comunidade, isolamento dos professores, exclusão escolar e social dos alunos, entre outros. Os quais, de acordo com Pacheco (2010), foram sendo solucionados aos poucos, ao longo de um processo de partilha entre os membros da comunidade escolar, um caminho feito de pequenos êxitos e muitos erros até a transformação escolar se dar. Sendo assim, os dados avaliados indicam um processo de democratização dessa escola pública, semelhante ao que ocorreu na Escola da Ponte assim que José Pacheco a assumiu.

Trata-se de um processo lento, porém possível, o que nos fez seguir com os estudos na mesma, já que ela possui muitos elementos do modelo democrático em sua prática. Veremos, agora, como o Ensino de Ciências se organiza nessa instituição e quais são suas características.

6.1.2 O Ensino de Ciências na escola democrática estudada: leituras, vivências e diálogos.