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2 POLÍTICAS DA ESCUTA

2.4 A escuta como modo de resistência

Para isso, é necessário refletirmos sobre a escuta no quadro conceitual do período final do pensamento de Foucault, a saber, em seu curso denominado “A Hermenêutica do Sujeito”, finalizado em 1982, no qual ele discute sobre a filosofia helênica, sobretudo estoica, cínica e epicurista. Neste curso, ele aborda, dentre outras, as noções de cuidado de si, arte de viver e parresía, as quais se articulam com aquilo que para o autor é a finalidade precípua da filosofia: a superação e prevenção do medo e do terror ou, de outro modo, a coragem para enfrentar os perigos, dificuldades e perdas.

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O interesse de Foucault na filosofia helênica se dá justamente pelo modo como era praticada como uma arte de viver, através de um conjunto de exercícios, técnicas e habilidades que constituíam a existência como obra a ser trabalhada. Dar forma à própria vida é, nesse sentido, a principal função da filosofia, conclui Foucault em sua análise do período helênico, o que para ele pode ser retomado como possibilidade de atualização no presente. Para essa autocriação, a liberdade é a condição necessária da qual a ética/estética assume sua forma reflexiva; o cuidado de si assumindo o valor mais alto na prática e aperfeiçoamento da liberdade.

Oposta à liberdade e, desse modo, à possibilidade de uma ética/estética da existência, estão os estados de passividade e dependência, aos quais Foucault denomina como medo e terror, produzidos quando um evento de algum tipo invade ou subjuga o indivíduo, influenciando e governando suas escolhas e ações. Esses eventos, para o autor, não influenciam o sujeito apenas negativamente, inibindo, constrangendo ou limitando, mas também positivamente, estimulando, excitando, seduzindo.

A arte de viver e o cuidado de si, portanto, implicam numa batalha contínua e irreconciliável do sujeito contra o modo como estes eventos o afetam. Esta batalha requer que o sujeito se arme do logos ou discurso filosófico, entendido como equipamento protetivo capaz de tornar possível a resistência bem-sucedida contra estes eventos. Sem ele, o sujeito se torna vulnerável à privação de sua liberdade; ao medo e ao terror. Desse modo, o cuidado de si implica na resistência contra eventos capazes de dominar o sujeito.

A ausência do medo e do terror, provida a partir do equipamento discursivo apropriado e seus exercícios correlatos, é definida como coragem, estado em que o sujeito se torna impermeável a tentativas de influenciá-lo e governá-lo. A coragem é conferida uma relevância política ao permitir a resistência não só aos infortúnios, mas também às ordens e autoridades que nos governam. A luta contra o medo e o terror, ainda, não se limita apenas a resistência a violência ou formas de poder coercitivas, mas se aplica também àquelas produtivas.

É lícito, portanto, supor, embora não esteja explícito em seu texto, que a luta contra o medo e o terror e o equipamento discursivo filosófico necessário possam ser pensados como condição geral das resistências em contextos distintos do apontado pelo autor no período da filosofia helênica. Afinal, para ele, a luta mais urgente de hoje é a submissão da subjetividade. De tal modo que localiza a resistência na relação consigo mesmo, apostando na potência da reinvenção de práticas e técnicas de si

Retomando nossa questão a respeito da escuta, cabe questionar qual a sua contribuição a noção de resistência foucaultiana. Siisiäinein (2010) aposta na problematização inexistente

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naquele autor da materialidade das diferentes mídias e das qualidades sensoriais e perceptivas do “equipamento discursivo” apontado por Foucault. Ele critica a ênfase exclusivamente semântica, voltada apenas ao conteúdo do discurso filosófico, abstraindo a forma específica com que se dá, o que acredita ser paradoxal em se tratando de uma reflexão sobre estética (da existência) que alija a sua dimensão propriamente estética, ao excluir qualquer referência a percepção/sensorialidade.

Aponta, ainda, uma passagem da Hermenêutica do Sujeito, em que Foucault (2006) reflete de maneira problemática sobre a significância do som, ao abordar a relação da arte de viver com a Paideia grega que, de modo simplista, pode ser entendida como a educação oficial na polis:

É a paideía que se constata em pessoas que, diz a tradução, são “artistas do verbo”, muito exatamente, phonês ergastikoús. Os ergastikoí são artesãos, operários, isto é, pessoas que trabalham não para elas mesmas, mas para vender e obter lucro. Sobre qual objeto elas trabalham? Sobre a phonê, quer dizer, a palavra enquanto ruído, não como o lógos ou a razão. Elas são, eu diria, “fazedores de palavras”. Pessoas que fabricam, para vender, certos efeitos ligados à sonoridade das palavras, não pessoas que trabalham para elas mesmas no plano do lógos, isto é, do arcabouço racional do discurso. Portanto, temos a paideía definida como aquilo que serve para jactar-se entre os outros e que é o próprio objeto dos artesãos do ruído verbal (FOUCAULT, 2006, p. 291)

Siisiäinein (2010) nota que nesta passagem Foucault contrasta de um lado o cuidado de si, a estética da existência e seu equipamento discursivo indispensável - logos - e de outro a Paideia, os artistas e artesãos do ruído verbal, separando dessa maneira a semântica do discurso de sua sonoridade. Embora não retorne a discutir, nem explicitar melhor seu sentido, nessa passagem ele opõe fone, a sonoridade e seus efeitos, ao logos, discurso significativo, comunicacional, baseado na razão, numa atitude de suspeição ante a primeira

Siisiäinein (2010) destaca ainda que Foucault era cioso da utilização da música e da poesia na Paideia, as quais ocupam uma posição singular na constituição e preservação da polis grega. A Paideia, em Foucault desponta, portanto, como uma forma de governo do irracional, como um conjunto de tecnologias do poder produtivas para o controle dos impulsos, disposições e afetos. Assemelha-se, em certo sentido, dada as devidas diferenças e particularidades históricas, à concepção moderna de disciplina, na medida em que ambas visam afetar e sujeitar indivíduos a determinadas normas.

A sonoridade, em Foucault, aparece, aponta Siisiäinein (2010), exclusivamente a partir da chave da sujeição e do governo do outro, alijada do cuidado de si e da arte de viver. No entanto, Siisiäinein não acredita que a análise das práticas discursivas filosóficas na

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“Hermenêutica do Sujeito” se propõe a oferecer uma compreensão exaustiva do que constituem formas de resistência ética/estética/política. Nesse sentido a oposição entre fone e logos pode ser lida como situacional, restrita a periodização histórica da filosofia helênica, mas não necessariamente uma distinção a ser tomada de forma absoluta. De modo que é possível manter em aberto a questão sobre a participação da escuta nas formas de resistências.

Ao recusar a distinção entre fone e logos, materialidade e semântica, audição e escuta, se exige a atenção ao caráter situacional da análise destas na produção de regimes de sensibilidade a partir de práticas de poder/saber, o que pode servir aqui como eixo norteador da nossa reflexão sobre a escuta psicológica. Não se pretende aqui uma discussão exaustiva no que diz respeito a escuta em Foucault, mas utilizá-la para demarcar sua historicidade, seu caráter político e situado a partir de distintas práticas, cuja análise a partir das noções de disciplina, governo e resistência parecem úteis para enriquecer a compreensão de como ela se exerce.