• Nenhum resultado encontrado

10 DO RISCO-VULNERABILIDADE À VIOLÊNCIA SEXUAL COMO

10.1 Consentimento e vulnerabilidade

Para Laura Lowenkron (2015), a linguagem dos direitos e da violência é atualmente o regime discursivo hegemônico para regulação da sexualidade. Embora, a exemplo da moralidade cristã, concorra com outros modelos de compreensão até mesmo em instituições públicas e governamentais pretensamente laicas, os princípios da autonomia e liberdade individuais têm assumido lugar de destaque nas economias morais da sexualidade, tornando-se o consentimento o elemento central na definição de legalidade/ilegalidade, legitimidade/ilegitimidade dos comportamentos sexuais.

De inspiração liberal, esse “modelo consensualista de regulação da sexualidade” tomou vulto a partir das décadas de 1960 e 1970, com a atuação do movimento feminista e homossexual, que provocaram o questionamento e o deslocamento parciais do “sexo heterossexual e reprodutivo” para o “sexo consentido e seguro”. Essa transformação exigiu – e continua exigindo –, a construção e o descarte contínuos de sexualidades dejetas. A produção, portanto, da liberalização ou diversidade sexual como valor não se fez sem a eleição de novos inimigos da “boa sexualidade”: os “irresponsáveis”, que não tomariam cuidado consigo ou com os outros e, no extremo, os estupradores e abusadores, que violam o consentimento, o qual baliza o sexo como livre, digno e legítimo (LOWENKRON, 2015).

153

Ainda que o estupro e as diversas formas de violência sexual não sejam um problema recente, passaram a ser reformulados em função dessa transição da moralidade sexual em voga, sendo concebidos como graves violações de direitos humanos no campo da sexualidade; a recusa do consentimento o principal critério utilizado para defini-los. No entanto, como aponta Maria Filomena Gregori (2014), sendo a estrutura da sociedade de direito em que vivemos constituída pela relação entre sujeitos desiguais, a determinação do consentimento se torna difícil e complexa. O problema passa a ser se, diante de contextos assimétricos, em meio a relações de opressão e dominação, é possível asseverar a existência de consentimento genuinamente autônomo.

Segundo Flávia Biroli (2013), a noção de consentimento se tornou chave para a crítica feminista de finais do século XX, que apontou aquela como fundamental para democracias liberais e suas contradições, sendo a dualidade entre livre-escolha e coerção colocada como insuficiente a partir das desigualdades materiais e simbólicas que restringem a autonomia individual das mulheres, sobretudo no que diz respeito à sexualidade. A autora cita como exemplo uma ampla pesquisa realizada na década de 1990 nos Estados Unidos (Nussbaum, apud BIROLI, 2013), em que se constatou uma enorme disparidade entre a percepção que homens e mulheres possuíam de sexo consentido e sexo forçado, na qual 22% das mulheres diziam ter sido forçadas à prática sexual, enquanto apenas 3% dos homens relataram ter usado a força para manter relação em algum momento de suas vidas. Mais do que mentira ou recusa em assumir o uso de força por parte dos homens, a pesquisa conclui que a maioria destes não reconhecem o quanto as mulheres percebiam seu comportamento como coercivo.

Do mesmo modo, Lowekron (2015) busca apontar a insuficiência do binarismo livre- escolha/coerção em matéria de relação sexual dentro de um paradigma liberal. Ela faz isso explorando a tensão entre as noções de consentimento e vulnerabilidade, entendendo-as como constructos sociais e políticos formulados em contextos histórico e culturais específicos, aos quais se associam distintas concepções sujeito.

O consentimento, do ponto de vista liberal, pode ser entendido tanto como ato de vontade, como capacidade para exercer livremente a própria vontade, pressupondo a noção um sujeito livre de coações e constrangimentos, capaz de governar racionalmente a si próprio. A essa concepção de um indivíduo autônomo, a mesma que Foucault (2007) nomeia como autodisciplinado a partir de normas que não necessariamente o reprimem, mas o constituem através propriamente da sua sujeição a um regime discursivo que o concebe como dotado de liberdade, que a autora busca colocar sua crítica.

154

Seja a partir da constatação da distribuição desigual de capacidades que garantem o exercício da liberdade entre homens e mulheres, seja no que diz respeito a atomização do indivíduo às custas de suas qualidades relacionais, responsável por expurgar a intersubjetividade, a corporalidade e a afetividade como aspectos considerados inferiores, irracionais ou femininos, a compreensão de sujeito autônomo do liberalismo é, na perspectiva de Lowekron (2015), tida como masculina. Para a autora, portanto, a “autonomia racional” socialmente descontextualizada e desassociada de emoções não contribui para conceber a dimensão situada da tomada de decisões éticas no cotidiano, além de valorizar capacidade e competências de determinados grupos sociais os quais foram responsáveis por definir as formas “corretas” de percepção e ação que podem ser definida como propriamente autônomas e, portanto, o que é capaz de ser lido como consentimento.

Ela aponta com isso para as limitações da noção jurídica de vulnerabilidade, a qual anula a possibilidade de consentimento pela inexistência de uma autonomia da vontade, como restrita a atributos individuais ou a situações específicas, que, por um lado, ignoram as desigualdades sociais e de gênero, por outro, reduzem pessoas tidas como vulnerável à uma pura passividade e sua vitimação.

Nesse sentido, autonomia e vulnerabilidade são noções geralmente colocadas como antagônicas. De maneira geral, a vulnerabilidade, compreendida como passividade, dependência, debilidade ou possibilidade de ser ferido, supõe a anulação ou, pelo menos, a limitação da autonomia. Do mesmo modo, ao se entender esta como uma propriedade do sujeito, se considera que ele/a tenha ou não autonomia a depender das condições socio- estruturais em que se encontra, variando desde aqueles com autonomia plena àqueles que em sua condição de sujeição e dominação lhe são despojados (Itziar GOIKOETXEA, 2019).

Cinde-se, desse modo, o sujeito da ação. Pressupõe-se, assim, que há sujeitos que pré- existem às suas ações e, portanto, são capazes de agir; enquanto outros, compreendidos como não de todo sujeitos, apenas são passíveis de ser alvo da ação de um outro. Essa noção de autonomia, portanto, não é reconhecida a quaisquer pessoas, mas àquelas que encerram uma concepção normativa de quem pode ou não ser reconhecida como sendo de fato sujeito (GOIKOETXEA, 2019).

Por exemplo, qualquer ato sexual com menores – de 14 anos, no ordenamento jurídico brasileiro, de acordo com o artigo 217-A do Código Penal (CP) – corresponde ao crime de estupro de vulnerável, sendo entendida como uma relação sexual não consentida. Na lei brasileira, o/a menor de 14 anos é tido como objeto, nunca como sujeito de uma relação sexual, seu desejo e autonomia desconsiderados do ponto de vista jurídico, sendo por isso mesmo

155

tuteladas sob o dever de proteger àqueles/as que não são considerados capazes de governar a si próprio.

No caso da menoridade, entretanto, o não reconhecimento da autonomia da criança e/ou adolescente e sua consequente tutela recoloca a contradição entre autonomia/vulnerabilidade, livre-escolha/coerção a partir da moralidade problemática dos operadores do direito. Lowekron (2015) aponta que a idade não é o único critério jurídico utilizado em casos concretos para determinar a vulnerabilidade na relação sexual, sendo por vezes relativizado com base em diferentes argumentos. Relembra acórdão do STF de 1996 de um caso em que um acusado foi absolvido de estupro de vulnerável (estupro presumido, na legislação da época) com uma menor de 12 anos, em que os magistrados enfatizaram a “aparência madura” e a “experiência sexual precoce” da menina, concluindo que:

o que está em negociação nesse processo de relativização da lei que define a idade do consentimento não é a ideia de que crianças são incapazes de consentir em relações sexuais com adultos, mas sim a delimitação de uma idade a partir da qual termina a infância bem como a classificação de sujeitos específicos como crianças. Observa-se, assim, uma exigência moral de corresponder ao ideal de infância para ser juridicamente reconhecido e protegido enquanto criança (p. 237).

A vulnerabilidade, nessa circunstância, diz respeito a um atributo individual menos maturacional ou cognitivo do que moral. Associa-se a uma compreensão naturalizada da infância como inocência ou ingenuidade que se reconhece e se tutela, invalidando ou não a possibilidade de consentimento, a depender das exigências que cumpre a menina.

No campo da saúde, a partir da tensão com o direito, adolescentes que chegam ao SAM- WL devido a estupro de vulnerável colocam para os psicólogos/as contradições em outros termos. Ivone, por exemplo, fala de uma cautela no caso de adolescentes para que sua concepção de violência não se imponha a dela. Aposta, entretanto, na possibilidade de explorar junto a ela noções sobre autonomia, consentimento e limite corporal. Maria Jesus prefere usar o termo “sedução” e leva em consideração o desejo da adolescente, avaliando se há alguma precocidade nessa iniciação. No entanto, questiona-se, inclusive se a definição dessa precocidade se dá de acordo com seus critérios morais (“condições de privilégio”), ou se é coerente com a vivência da sexualidade na comunidade da adolescente. Paulo aponta um “vazio de sentido” em adolescentes devido à falta de educação doméstica em relação a sexualidade, drogas, desejo e política que pode encontrar possibilidade de elaboração a partir da psicoterapia. Betânia, consternada, em uma das situações mais sofríveis narradas, faz crítica ao próprio acompanhamento no SAM-WL de uma adolescente grávida decorrente de estupro de vulnerável

156

com déficit cognitivo, submetido a situação ao aborto legal, sem que tivesse compreendido o que se passava, por desejo da mãe e do padrasto, questionando-se de quem deveria ser o direito nessa ocasião.

Aliás, além da menoridade, como define o primeiro parágrafo do artigo do 217-A do CP, a vulnerabilidade é atribuída a quem “por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. A falta de discernimento do parágrafo, concebida também como atributo individual, pode ser discutida na mesma linha da anterior, assemelhando-se em alguma medida a menoridade.

No entanto, a incapacidade de resistência, remete a ausência de consentimento por um elemento situacional. Essa “situação de vulnerabilidade” é a única forma, a partir dessa perspectiva liberal do CP, em que se reconhece posições de subordinação ou inferioridade social. Ainda assim, a incapacidade de resistência atribuída nessa situação aponta menos para a relação de assimetria entre autor e vítima da violência mais a ausência de alternativas justificáveis que possibilitem a recusa do consentimento. Lowekron (2015), com base nisso, questiona: essas alternativas devem ser justificáveis do ponto de vista de quem?

A “situação de vulnerabilidade” recoloca, desse modo, a moralidade na identificação de circunstâncias que seriam aceitáveis como forma de validar ou invalidar o consentimento no caso de pessoas adultas de maneira similar à menoridade para adolescentes com menos de 14 anos ou a quem falta discernimento. Ao se concebê-la a partir de quaisquer elementos da violência vivenciada, seja intrínsecos ao autor, seja da vítima, seja da relação ou de alguma circunstância, é como se fosse possível diagnosticar, prever e generalizar características que definem quem supostamente pode ou não ser reconhecida como vitimizada a partir do alijamento de sua capacidade de agência. Tais definições, mesmo quando assumem critérios como idade, gênero, sexualidade, raça etc. dependem de concepções morais a partir dos quais se passa a definir a vítima segundo aqueles elementos como inevitavelmente vulnerável à violência, podendo acarretar como efeito a redução da agência de pessoas tidas supostamente como vulneráveis e excluir da condição de vítima quem desse modo não for concebido.