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4 PRODUÇÕES NARRATIVAS SOBRE ESCUTAS PSICOLÓGICAS A

4.4 O processo de produção de narrativas sobre escuta psicológica no SAM-WL

Tendo em vista as distintas formações, trajetórias profissionais, espaços de atuação e militância dos psicólogos/as do SAM-WL, optamos como estratégia utilizar individualmente da metodologia da MPN a fim de se produzir narrativas da escuta psicológica por cada um dos/as psicólogos/as a meninas e mulheres em situação de violência sexual. Optamos assim também pelo desejo de que emergissem uma diversidade de formas de exercer a escuta

32 O CAPS Livremente, localizado no bairro de Boa Viagem, pertencente ao distrito sanitário VI do município de Recife, atende a pacientes com transtornos graves, em situação de sofrimento psíquico, fazendo parte da Rede de Atenção Psicossocial da Prefeitura da Cidade de Recife, a qual se estrutura a partir de oito distritos sanitários.

33 O Cemitério Senhor Bom Jesus da Redenção, mais conhecido como Cemitério de Santo Amaro, é o maior da

cidade de Recife, localizado no bairro de mesmo nome, em área central do município.

34 Roberto Efrem (2017) define essa chamada como um ritual de pranteamento próprio dos movimentos sociais, a

partir do qual se lamenta a perda de companheiros de luta que se foram e se reforça a constituição de um sujeito político.

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psicológica, mas também devido: 1) a ausência de um norte ou delineamento coletivo ou institucional dessa escuta; 2) a comodidade em acessar cada profissional separadamente em seu plantão; 3) a curiosidade pessoal de conhecer melhor a conduta de cada colega no serviço; e 4) a tentativa de evitar se criar alguma animosidade ou comparação entre as distintas formas de proceder.

Esperávamos, de algum modo, que a diversidade dos relatos contemplasse aspectos não só pouco discutidos no SAM-WL em específico, mas que diziam a respeito a escuta psicológica de um modo geral, principalmente, no tocante a poder e relações de gênero, sexualidade, raça, classe etc. Para isso, buscamos trazer esses elementos mais explicitamente no próprio roteiro da entrevista realizada junto aos psicólogos/as do SAM-WL (ver Apêndice A). Esse roteiro foi adaptado de pesquisa anterior do GEMA/UFPE para psicólogos/as em serviços de atendimento a pessoas em situação de LGBTfobia, realizada no ano de 2018, cujo título era “Atenção psicossocial no contexto das estratégias governamentais para enfrentamento à violência baseada em orientação sexual e/ou identidade de gênero”.

Antes das entrevistas propriamente dita, no dia 12 de setembro de 2019, embora a tese já fosse assunto informal de conversa entre a equipe do SAM-WL, apresentamos formalmente em reunião uma síntese dos objetivos da pesquisa. Essa apresentação foi feita com o intuito de fortalecer a transparência e o compromisso junto a equipe em busca ensejar um processo cuidadoso de reflexão crítica sobre o fazer profissional. As conversas foram realizadas, posteriormente de 25 de setembro a 10 de outubro de 2019, duraram em torno de 1h30 cada. A primeira versão dos relatos foi concluída e enviada aos psicólogos/as 17 de dezembro, terminando o processo de modificação em 30 de janeiro de 2020.

Inicialmente, enfrentamos dificuldade em relação a escrita do relato inicial, por se se manter preso aos moldes de uma pesquisa qualitativa tradicional, respeitando a ordem e a fala do entrevistado, tal qual uma transcrição fosse. Durante o processo, no entanto, antes mesmo de enviar a primeira versão aos profissionais de psicologia, se fez uma revisão dos relatos, buscando compreendê-lo como uma coprodução, sem receio de que a edição e o uso de expressões que julgamos mais adequadas para a escrita fossem utilizadas, já que ainda seriam posteriormente validadas.

O relato foi escrito tomando a mim como narrador, com intenção justamente de me fazer mais visível na autoria do texto, muito embora tenha se escolhido omitir a dialogia, a fim de facilitar a leitura do texto. Quando se quis enfatizar algum termo ou expressão da pessoa entrevista, se usou aspas. Assim, as narrativas produzidas foram organizadas de acordo com a seguinte sequência: 1) Apresentação do/a psicólogo/as; 2) Escuta a meninas ou mulheres em

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situação de violência sexual no SAM-WL; 3) Acompanhamento psicológico no SAM-WL; 4) Afetações no processo da escuta no serviço.

Uma das psicólogas aprovou o texto sem modificações, outro fez algumas modificações pontuais e duas relataram algum desconforto com a leitura das narrativas. Uma delas, embora não tenha discordado do conteúdo em si, relatou incômodo em ter se colocado de maneira tão “desprotegida”, tendo receio a respeito da “exposição” que poderia gerar, não só dela mesma, quanto de pacientes. Segundo ela, embora se sentisse segura quanto a sua atuação, a informalidade da conversa proporcionou que alguns trechos do relato pudessem ser mal interpretados. A ela, foi assegurada a possibilidade de revisão completa, inclusive, um novo encontro no qual pudéssemos analisar conjuntamente o que ela consideraria pertinente de manter ou retirar e, caso fosse seu desejo, excluir o relato da pesquisa. Nenhuma dessas possibilidades se mostrou necessária, tendo ela preferido realizar sua revisão também virtualmente, a partir de marcações e anotações no Word.

A segunda demonstrou desconforto com a possibilidade de ter cometido algum equívoco, afirmando inseguranças na profissão e na atuação profissional. A ela, foi assegurada a qualidade do conteúdo do seu relato, inclusive a possibilidade de explorar as inseguranças e equívocos como uma vantagem não só da metodologia, mas para discussão da escuta psicológica no SAM-WL, visto que são exatamente esses problemas que, acreditamos, são silenciados nos modos como falamos e escrevemos sobre nosso fazer. Reasseveramos o compromisso ético na promoção de reflexão crítica sobre o fazer profissional, não a crítica pessoal, tendo em vista que os problemas e dificuldades apontados não podem ser atribuídos a um ou outro profissional individualmente, mas aos problemas da formação em psicologia e do seu exercício precário em um serviço público de saúde.

Tais preocupações, contudo, não são irrelevantes. Em se tratando de pesquisa sobre uma atuação profissional que atravessa temas tão sensíveis como a violência sexual e o aborto, num serviço tão invisibilizado quanto o SAM-WL, cujos profissionais podem ser facilmente identificados por quem estiver mais familiarizado, o compromisso ético do pesquisador em proteger os pesquisados, bem como as pacientes presentes em seu relato, não pode se reduzir ao Termo de Livre Consentimento Esclarecido (TCLE) exigido pelo Comitê de Ética da UFPE, ao qual essa pesquisa foi submetida.

No que diz respeito às pacientes, quaisquer riscos de quebra de sigilo e violação da privacidade são facilmente dirimidos ao se omitir o nome e outros elementos que caracterizem especificamente de quem se fala. Já em relação aos/as profissionais, ainda que se faça o uso de pseudônimo, isso não elimina a possibilidade de reconhecimento pelos demais profissionais ou

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por quem de algum modo conheça mais a respeito do SAM-WL. Isso, no entanto, foi colocado e negociado junto aos/as psicólogos/as tanto durante a conversa realizada, quanto na capa da primeira versão do relato enviado (ver Apêndice B).

Nessa instrução, descrevi tanto o que foi feito, quanto o que esperava que eles pudessem fazer e, ainda, o que não pôde ser feito. Esse último tópico referia-se à intenção de poder compartilhar entre nós os relatos construídos para que pudéssemos discutir coletivamente, o que, infelizmente, devido ao prazo para entrega da tese, não foi possível realizar. Mas assumimos o compromisso de fazê-lo posteriormente.

Enquanto esperava o retorno dos psicólogos/as em relação aos relatos, iniciei a construção de ensaios a partir das reflexões que a primeira versão destes geraram. Cada narrativa, não se prestando a ser submetida a análise, visto que já traz em seu bojo um processo dialógico e reflexivo por si só, é apresentada independentemente. A elas se seguem as provocações ou ensaios gerados pelas inquietações emergidas na própria feitura das narrativas, em conjunto com a minha vivência enquanto psicólogo do SAM-WL, pesquisador do GEMA/UFPE e doutorando no Programa de Pós-Graduação de Psicologia da UFPE.

Os ensaios não tem pretensão de exaurir, nem se ater exclusivamente a apenas um dos relatos, mas se deu com base em elementos que se encontram dispersos entre eles. Constituiu num esforço de conjugar certa sistematicidade ao efeito de fragmentação e heterogeneidade das narrativas, a fim de dar conta de múltiplas perspectivas possíveis sobre a escuta psicológica, quanto contribuir para propor uma reflexão crítica sobre estas. Aos psicólogos/as do serviço foram dados nomes com fins de homenagear figuras importantes para o feminismo e a educação em Pernambuco, a saber Ivone Gebara, Maria Jesus de Moura, Betânia Ávila e Paulo Freire.

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