• Nenhum resultado encontrado

4 PRODUÇÕES NARRATIVAS SOBRE ESCUTAS PSICOLÓGICAS A

4.2 Pedagogia sensível de uma escuta psicológica

A escolha do uso por essa metodologia se dá dentro de um processo também passível de ser narrado. No entanto, o passado é tecido nas narrativas do presente e sua costura produz um desejo ou uma ameaça de futuro. Tomar de memória o novelo da formação da minha escuta psicológica exige eleger qual fio tomar e com quais outros entrelaçar. Gostaria, inicialmente, de recusar o barulho mecânico da indústria de máquinas têxteis e a malharia de imagens pré- fabricadas com datas etiquetadas, retomar a tecelagem em seu aspecto artesanal, feita à mão, em grande medida por mulheres, junto a família e no espaço doméstico.

Se é a escuta a nossa matéria, qualificada na formação em psicologia, é nas memórias sensórias do ouvido, entretecidas com outras sensorialidades, que talvez possa se começar essa história. Antes mesmo que se entendesse como ouvido essa articulação cava do mundo que em mim se incorporou, já havia seus sons e linguagens. Foi no português, com sotaque de Recife e gramática branca de classe média que fui nomeado e nomeando a mim e meu entorno.

“É um menino”, devem ter me dito em barriga de mãe. Ela escolheu: “Tiago”, adicionou do seu sobrenome “Matheus”, enquanto meu pai me pôs o “Corrêa”. Sabe-se lá quantas palavras, sensações e afetos se aferraram a mim antes que emergissem esse senso de si que ora parece definido, ora borrado e impreciso. Veio então um pesadelo de monstro que urrando me puxava pra debaixo da cama. A ceninha edipiana dos trópicos dormindo em meio a mamãe e

81

papai silenciosos. O grito pela amputação do dedo polegar que precisou ser reimplantado por causa de uma “traquinagem” do irmão mais velho. Tudo discutidos e rediscutidos com diferentes analistas (freudiana, lacaniana, bioenergética e “uspiano”) pelos quais passei após meu início da graduação em psicologia.

Vivi a maior parte num típico apartamento de um prédio de muros cada vez mais altos de família da classe média recifense. No bairro de Setúbal, o mesmo do coronelismo urbano, do medo difuso e da iminência da violência de “Som ao Redor”, filme de Kléber Mendonça. Arroz, estrogonofe e batata palha servidos com piadas racistas na mesa do almoço. Minha mãe ensinava a rezar santo anjo às noites e se queixava da empregada doméstica durante o dia. Meu pai, militar da aeronáutica, pregava ordem e disciplina quando chegava em casa, mas se não percebia os abusos físicos perpetrados contra mim pelo meu irmão mais velho: “irmãos tem que ser unidos”. Havia amor, conflito, descontração e delírio. Havia também bastante televisão ligada na Rede Globo todas às noites e aos domingos. Entre limites e possibilidades, era inegável o esforço mútuo e um senso perene de ambos com a educação dos três filhos, ambos trabalhando para poder pagar as “melhores escolas” ou, ao menos, as melhores para aprovação em uma universidade federal, cujo processo seletivo, à época sem cotas raciais ou sociais, privilegiava ainda mais aqueles que tinham acesso ao ensino bancário, bancado e embranquecido.

Durante dois anos, contava eu com cinco a sete anos de idade, moramos numa vila militar próximo da Base Aérea do Galeão, onde meu pai serviu durante a época. Via sem saber da varanda do meu apartamento um dos principais locais de práticas de tortura durante a ditadura no Rio de Janeiro, algo que só aprenderia – já havia contraído a coceirinha gostosa do conhecimento – com o estudo de História no ensino médio. Do outro lado da avenida, que separava a base da vila, foram outras as perversidades praticadas: os ritos de iniciação da masculinidade (histórias de terror, diversões sádicas e agressões) de gerações distintas de meninos, que conviviam juntos e longe das vistas das mães, crentes das salvaguardas imposta pelos muros e soldados que circundavam o vasto terreno da vila. Apesar disso, havia também festas ao som de DJ Marlboro, tardes de videogames com amigos regada a biscoitos e boatos curiosos que circulavam sobre algum menino mais velho ter comido uma menina e, às vezes, um outro menino mais novos.

Se o uniforme de militar é fetiche sexual para uns, tudo indica, Sr. Presidente, que para alguns filhos e pais dos militarismos a homossexualidade seja a orientação sexual mais desejada. Foi bem mais tarde, junto a filhos de militares, com quem convivi durante a adolescência em Recife, que conheci Aline, a qual tempos depois namoraria com Angélica, as

82

quais me levariam com dezoito anos feitos para Boate Metrópole, onde ao som de bate estaca e em meio a boys de grife, pela primeira vez me senti à vontade com minha sexualidade.

Até então, era apenas segredo entre amigas e pornografia durante as madrugadas de internet discada. Na mídia ou na (des)educação sexual escolar, cazuzas esquálidos sem música, nem poesia. Entre amigos e colegas, escárnio: “viado”! Em casa, fora necessário a saída de armário um tio, meu avô materno também militar, vinte anos feitos e uma foto desleixada de um beijo com o primeiro namorado para que virasse assunto familiar – para minha surpresa – , bem-vindo.

É que o filho dedicado, o estudante disciplinado e o amigo cordato eram figuras que tomaram vulto na minha adolescência ante o temor da discriminação pela minha homossexualidade. Povoava a vida, a meu jeito, com música erudita tocada no violino, os saberes de mármores, encantadores, mas um tanto gélidos, dos livros de teologia e filosofia e as histórias orais compartilhadas de mundos de fantasia e criaturas míticas em jogos de RPG. Foi neles, que eu conheci Angélica: além de sapatão, negra e psicóloga. Logo em sequência, abandonei a Faculdade de Direito do Recife (FDR) pelo Centro de Filosofia e Ciências Humanas.

Como outras pessoas LGBT, o curso de psicologia foi desejado menos como um conjunto de saberes ou técnicas específicos, mais como a possibilidade de um espaço acolhedor em relação a sexualidade e/ou identidade de gênero. É, acredito, precisamente por isso, que me incomoda tomar a formação em psicologia apenas a partir dos parâmetros curriculares, numa didática conteudista, ignorando fluxos, desejos e projetos de conhecimento numa leitura ética. Foi também na sala de aula, mas ainda mais nas relações construídas, nos prazeres experimentados e nos saberes compartilhados junto a amigos/as e – ao menos alguns e algumas – dos/as professores/as do curso que o conhecimento em psicologia se incorporou como experiência vívida. Sem dúvida, isso só foi possível no ambiente de uma universidade pública, a UFPE, a partir da aproximação com estudantes que compunham o movimento estudantil, a integração como pesquisador do GEMA/UFPE e a participação no Núcleo Pernambucano da ABRAPSO

Se fui em busca de um ambiente mais acolhedor, mais do que isso, o que eu obtive a partir da politização possibilitada do campus universitário foi uma pedagogia erótica e sensível a partir da qual pude ter acesso não só a uma diversidade de saberes, mas um espaço através do qual eu construí grande parte das minhas amizades e conheci quase todos meus namorados: dois se formaram pela FDR e três no Centro de Artes e Comunicação. O curso de psicologia, mais propriamente, dentro de uma universidade pública, em seu tripé de ensino, pesquisa e

83

extensão, abre possibilidades de múltiplas vivências. A minha, graças a participação no GEMA/UFPE e da ABRAPSO, se deu principalmente nas discussões e aprendizado ética e politicamente situados sobre psicologia social, gênero, sexualidade e feminismo.

Se essa vivência foi possível a partir dos privilégios com os quais pude viver a universidade e suas múltiplas possibilidades sem discriminações e obstáculos, ter acompanhado desde minha entrada num curso branco e elitista até o final do doutorado a inclusão de pessoas negras, de escola pública, do interior do estado, com deficiências, não-binárias, travestis e transexuais, permitiu repensar esses privilégios de uma maneira crítica, assanhado recentemente, ainda que apenas de forma introdutória, o interesse pelo feminismo negro e decolonial. A possibilidade de conviver junto as diferenças também se acentuou com minha participação no movimento LGBT, possibilitada através da minha inserção no GEMA/UFPE, o que resultou na minha dissertação sobre a Parada da Diversidade em Pernambuco.

Posteriormente, o desejo de atuar como psicólogo em políticas públicas, levou-me por alguns meses ao Centro Estadual de Combate à Homofobia, equipamento de direitos humanos do estado de Pernambuco para atendimento a pessoas LGBT em situação de violência. Qual a frustração ante as (im)possibilidades de atuação num aparelho que se propunha a abranger um estado inteiro apenas com cinco pessoas em sua equipe. Logo em seguida, fui nomeado na FUNASE, onde testemunhei impotente por um ano a aniquilação das subjetividades de adolescentes negros em medida socioeducativa de semiliberdade.

Agora, no SAM-WL, atendendo meninas e mulheres que chegam devido a abusos ou estupro sofridos, em meio a outras formas de violência, apesar de entrar em contato com o horror dessas experiências, tenho podido entre angústias e indignação, encontrado também algum prazer em cuidar. Talvez meus trabalhos anteriores e o percurso analítico pessoal tenham contribuindo em alguma medida para me fortalecer ante a escuta de narrativas de violência. Sem dúvida, porque as relações entre a equipe são mais descontraídas, solidárias e saudáveis. De certo, contou a formação na UFPE e a produção de conhecimentos e amizades no GEMA/UFPE. Também porque, apesar de nem sempre povoada por trajetórias heroicas e ascendentes, é reconfortante acompanhar e aprender com a capacidade de meninas e mulheres sobrepujar o terror e aniquilação impostas. Entre a LGBTfobia, o encarceramento da juventude negra e o terrorismo patriarcal contra as mulheres que pude acompanhar, o pressentimento da mesma necropolítica em formas distintas, a partir dos modos como o Estado precariza determinados corpos, relações e comunidades, tornando alvos do facismo de gênero, cis- heteronormativo e supremacista. “É preciso estar atento e forte”, mas quem tem o privilégio de não temer (a violência e) a morte?

84