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8 PAULO: “IMAGINA EU FALAR ISSO PARA UM HOMEM?”

8.2 Acompanhamento de Paulo a pessoas em situação de violência sexual

Já quando uma paciente tem desejo de se manter sendo acompanhada por um/a profissional, aí sim, em sua compreensão, se trata de uma “psicoterapia”. No trabalho psicoterapêutico, adota uma “referência psicanalítica”, conjugada a uma “leitura da psicologia social” associada a “esquizoanálise”.

Em um primeiro momento, para ele, não é cabível fazer nenhum “aprofundamento muito grotesco”, mas “fortalecê-la” a partir daquilo que ela vive no momento. Caso haja desejo de um maior aprofundamento, pode prosseguir o processo psicoterapêutico inclusive por períodos mais longos, já tendo acompanhado pacientes entre um ano e dois anos e meio.

Em sua avaliação, não há, pela ausência de dados, como determinar o impacto que tem a psicoterapia em pacientes do SAM-WL, diferenciando de outras pessoas em situação de violência que não vivenciaram esse processo. No entanto, novamente dentro de uma perspectiva integral de saúde, acredita ser importante na medida que assume um caráter preventivo. Segundo ele, a possibilidade de refletir sobre a violência vivida, “para que seja reelaborada, ressignificada, confrontada e não reprimida”, pode ter o efeito de inibir adoecimentos.

Sente isso principalmente quando se trata de adolescentes, a quem diz gostar bastante de atender. Recusa o rótulo de rebeldia, preferindo adotar uma compreensão da adolescência como um processo de construção de si, em busca de identificações, sobre o qual a família e a sociedade exercem uma série de pressões e cobranças. A partir da psicologia, é possível contribuir para a adolescente ao “mexer nos monstros que ela quiser mexer”, a fim de que ela possa “se construir de formas mais harmônicas dentro da desarmonia de cada um” e lidar “de forma mais amadurecida com a realidade dela, com os bichos que aparecem”.

Afirma perceber com mais clareza o efeito do processo psicoterapêutico sobre as adolescentes que atende, acredita conseguir “mexer mais um pouco”. Atribui isso a “falta de conteúdo e discurso sobre ela mesma”, já que “ninguém da família conversa sobre sexualidade, drogas, desejo de vida, sobre política... um vazio de sentido”. Acredita que a psicoterapia pode ofertar a possibilidade de ela construir sentido sobre ela, o ambiente em que ela vive e apontar outros espaços nos quais ela pode se identificar, seja religioso, artístico ou político.

Lembrou de uma adolescente que, num encontro terapêutico, após ele perguntar como havia sido a semana, respondeu: “eu tirei umas angústias que tavam me sobrando e aí foi tudo bem”. “Como assim umas angústias sobrando?”, riu ele, apontando ao mesmo tempo que ela passou a refletir sobre os sentimentos de uma forma reflexiva, reconhecendo sua importância, mas também abrindo caminho para se portar de uma forma diferente diante deles. Sinalizou,

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nesse caso, isso como um amadurecimento fruto do processo psicoterapêutico, juntamente com a perda da timidez e a construção de novas relações de amizade

Esse amadurecimento também vale para as mulheres adultas. Citou uma paciente que chegou “bastante fragilizada”, sofrendo “violência crônica” por parte do parceiro íntimo, a qual “qualquer problema que acontecia na sua vida durante o processo terapêutico, seja algo realmente grave no trabalho, seja uma desavença menor com o filho, virava uma questão que acabava o mundo daquela pessoa”. Ao final do processo, ela própria verbalizou: “esses problemas vão tá na minha vida, agora eu não vou me acabar por conta deles”. Para Paulo, esse amadurecimento se deu na medida em que ela passou a perceber o sofrimento como pertinente à vida e não algo desestruturante. “A tristeza é importante também, sabe? Dá acesso a esses sentimentos, que parece que são proibidos, é importante”.

Recordou, ainda, de uma idosa, a qual se sentiu particularmente à vontade em ter atendido, devido aos dez anos de experiência com idosos no SAD. Seu primeiro atendimento no SAM-WL foi iniciado pela assistente social do plantão, que prontamente solicitou o apoio de Paulo, porque a paciente estava “chorando horrores” e os dois profissionais realizaram juntos o acolhimento da senhora que vivia em situação de violência doméstica. Paulo relatou que, num primeiro momento, ela identificava a violência psicológica e física, mas não a sexual, a qual passou a reconhecer com o percurso terapêutico, porque entendia até então que manter relação sexual com seu esposo “era sua obrigação como mulher”.

Questionado sobre se já teve dificuldade em alguma situação, lembrou de uma paciente que, segundo ele, “ficava tentando testar minha competência técnica”, exigindo “garantias de que ela iria ficar bem”, perguntando “quais as habilidades minhas como profissional, quantos casos eu já havia atendido e quantos havia conseguido curar – olha que coisa!” Para ele, “foi bem chato e complicado”, até porque a paciente tinha uma história bem “difícil e pesada”, além do que passou a ser acompanhada por ele após uma psicóloga do próprio SAM-WL ter lhe encaminhado por ter considerado que não conseguiu estabelecer uma boa relação. “É difícil, mas ao mesmo tempo é bom”, concluiu. “Instiga a estudar, pensar, discutir, enfim”.

Lembrou de dois casos de mulheres que sofreram “estupros corretivos”35. Uma não quis atendimento. A outra era de uma mulher bissexual, que “tava mexida quanto a isso”, porque

35 O termo é usado coloquialmente para se referir ao estupro de mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais em razão da orientação sexual e/ou identidade de gênero, a partir da concepção do autor da violência que “ensinaria a ser mulher de verdade” impondo uma heterossexualidade compulsória através da violação, por isso corretivo, ou restabelecendo a ordem de gênero num ato que redobra o caráter misógino da coerção sexual sobre a vítima. Apesar de utilizar a expressão do profissional, prefiro referir a essa forma de violência como estupro lesbo, bi ou transfóbico, de modo a demarcar a discriminação da orientação sexual e/ou identidade de gênero.

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sua família não aceitava e chegou a achar que algum parente havia sido mandante do crime. Acompanhou ela durante quatro meses até que, ao iniciar uma relação afetiva, não quis prosseguir com os atendimentos. Avaliou, a partir desse caso, que é algo relativamente comum se encerrar o acompanhamento durante início de uma relação afetiva, “porque tá bem na vida, tá amando”.

Embora identifique que a maioria das pacientes são negras, não percebe na fala delas conteúdos relativos à raça ou racismo. Pergunta-se, inclusive, sobre a racialidade das pacientes que realizam o aborto legal, tendo a impressão de que se trata de mulheres mais brancas do que negras.

Apesar de ter realizado acompanhamentos de longo prazo e “dado alta” a algumas pacientes, afirma que a maioria se desliga. “Dá para contar quantas altas eu dei, altas combinadas, de finalização mesmo: umas dez a quinze”.