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2 POLÍTICAS DA ESCUTA

2.5 Genealogias da escuta psicológica

Nikolas Rose (2008) apostou nas duas primeiras noções (disciplina e governo) para produzir uma extensa genealogia das práticas psicológicas em contextos institucionais. Para Rose, o século XX pode ser definido como “século da psicologia”. Não somente devido a sua consolidação como disciplina científica, nem também à difusão da profissão, mas pelo impacto social exercido através dela, que pode ser aferido pelo modo como as pessoas passaram a conceber a si mesmo em termos de uma linguagem psicológica.

Isso se deve, segundo ele, a própria origem da psicologia, a qual segue caminho inverso de outros saberes. Ao invés de surgir como empreendimento científico ou através de sua regulamentação profissional, a partir do qual passa a ter uma aplicação prática com efeitos sociais, os dois primeiros são, para o autor, consequência do modo como a psicologia emerge como um conjunto heterogêneo de aplicações a partir da necessidade de distintas instituições administrar pessoas. Rose (2008) argumenta que a psicologia emergiu no século XIX nos espaços onde “problemas de conduta coletiva e individual humanas eram de responsabilidade das autoridades que procuravam controlá-las” (p. 156), tais como a escola, as fábricas, as forças armadas, etc.

Em seus primórdios, aponta Rose, a psicologia se constitui como uma “tecnologia de individualização”, a partir das exigências crescentes de manejo dos indivíduos por instituições de acordo com determinadas formas de governo, regimes, funções e competências. Esses projetos administrativos de individualização são beneficiados pela conceituação de várias

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capacidades psicológicas, tais como percepção, inteligência, personalidade, dentre outras, de modo que a psicologia se estabelece como uma forma de diferenciação individual. Constitui, assim, diferenças e normalidades que não se associam a um conhecimento integral do humano, mas, em acordo com Canguilhem (2009), derivam das normas das próprias instituições que gerenciam os indivíduos, as quais se hibridizam com leis, estatísticas e filosofias.

As instituições nas quais a psicologia prolifera, ao administrarem seres humanos de acordo com o conhecimento/produção de suas diferenças, tornam-se menos arbitrárias e mais eficazes, reforçando, desse modo, sua autoridade. Ao mesmo tempo, se transformam em espécies de laboratórios onde os indivíduos são observados e controlados em prol da eficiência. Nesse processo se dá, a partir de uma linguagem psicológica, uma produção de identidades que se espraia pelo tecido social e modifica o modo com que os indivíduos são julgados não só por outros, mas a maneira como entendem a si mesmo.

A psicologia, assim, como “ciência do indivíduo” compôs, juntamente com outras ciências, uma racionalidade liberal de governo em que uma concepção abstrata de liberdade se associa a formas concretas de moldar o sujeito. Forneceu a tecnologia capaz de operacionalizar o individualismo das sociedades liberais em “um conjunto de programas específicos para regulação da existência” (p. 159).

Ainda nessa etapa individualizante, Rose (2008) reconhece na psicologia uma ciência social, no sentido de sua estruturação em torno de fins sociais. No entanto, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, ela se torna social em outro sentido, à medida que se direciona às coletividades humanas, a fim de administrar não só indivíduos, mas também grupos e organizações.

A psicologia social produzida entre as décadas de 1930 e 1950, nota Rose (2008), faz frequentemente referência à democracia. Seu problema passa a ser “regular cidadãos democraticamente”, ou seja, através das interações de uns com os outros, conceituando e intervindo nestas. Essa psicologia social, portanto, cria um vocabulário para formular questões advindas das relações humanas e formas de manejá-las, baseada tanto numa racionalidade científica, quanto nos valores de sociedades liberais democráticas. “A psicologia social proporciona tanto a tecnologia humana quanto a intelectual para possibilitar que o governo democrático opere” (p. 159).

Rose (2008) chama ainda atenção para a emergência de uma nova articulação entre governo, sujeito e psicologia a partir dos anos 1980, com base na noção de empreendedorismo. Diversas práticas e instituições sociais foram se transformando de modo a acomodar uma concepção regulatória do self empreendedor, entendido, de modo geral, como aquele que se

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empenha por seus objetivos. Essa noção de self emerge em espaços nos quais o vocabulário da empresa associa-se a retórica da política, promovendo programas administrativos baseados no autocontrole do indivíduo:

um bom governo é aquele baseado nas maneiras pelas quais as pessoas se governam. O “self” é para aspirar autonomia, para esforçar-se para alcançar satisfação pessoal em sua vida na terra, para interpretar sua realidade e destino como uma questão de responsabilidade individual, enfim, encontrar significado na existência moldando sua vida através de escolhas (ROSE, 2008, p.162).

Esse modo de pensar sobre si associa-se a uma forma de agir sobre os outros. Tendo em vista a falência da autoridade religiosa ou de moralidades tradicionais na orientação da conduta dos indivíduos, emergem então “especialistas da subjetividade” capazes de formular questões existenciais em termos técnicos, tornando a vida administrável.

Embora afirme que sua intenção não seja uma crítica à psicologia, ao menos no sentido de que é parte de uma estratégia de dominação e exploração, a discussão de Nikolas Rose se presta a tanto. Ao colocá-la exclusivamente como técnica de regulação, dificulta compreender se e como a psicologia pode oferecer quaisquer resistências às relações hegemônicas de poder. Possivelmente, esse problema se dá na medida em que (a semelhança de Foucault em relação à filosofia) Rose concebe a psicologia apenas a partir de sua discursividade, alijando-a de uma sensibilidade. Ao tomá-la assim, acaba lhe conferindo indevidamente certa pureza, ao não permitir apontar não somente as resistências, mas suas imbricações em outras práticas e governamentalidades, como se o governo a partir da psicologia se desse de maneira linear, sem tensões ou transmutações.

Talvez essa conclusão tenha sido facilitada pelo corpus ao qual sua análise está circunscrita, a saber a psicologia europeia e norte-americana dos séculos XIX e XX. Ao se pensar sobre a psicologia no Brasil e na América Latina, ainda que predominantemente possa ser descrita também como técnica de regulação, é necessário problematizar sua insurgência ante a opressões e injustiças sociais. Considerado, por exemplo, o contexto das ditaduras que se instauraram no continente, a psicologia pode ser vista tanto como legitimando os regimes instituídos, quanto como resistindo a eles.

Cecília Coimbra (1995) descreve como, após o golpe de 1964, a psicologização operada no Brasil fortaleceu junto às classes médias o que denomina como “intimismo” e “familismo”, entendidos como refúgio do privado contra “os terrores da sociedade”, obstruindo o acesso à esfera pública e alienando a própria subjetividade. Além disso, a psicologia também contribuía para o regime ditatorial oferecendo argumentos “científicos” para o aprimoramento do aparato

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de repressão estatal, ao identificar um perfil psicológico do “terrorista”; psicologizando comportamento dos militantes, os quais passam a ser tratados como “desviantes”; e, finalmente, silenciando ante os problemas vivenciados pela maioria da população.

Apesar disso, Ana Maria Jacó-Vilela e Sérgio Luís Braghini (2015) referem novas formas de se pensar e se fazer psicologia surgidas no contexto da luta revolucionária. Afirmam que o recrudescimento das lutas sociais no Brasil e na América Latina proporcionaram a radicalização de teorias e o trabalho de conscientização popular, contribuindo para isso a educação popular, a sociologia militante, e a teologia, filosofia e psicologia da libertação, bem como a psicologia comunitária. Todas, de certo modo, produzindo críticas à realidade brasileira e latino-americana, enfrentando desigualdades estruturais e combatendo injustiças sociais.

Não se trata aqui de adaptar a reflexão de Rose para os nossos trópicos, mas apenas apontar sua limitação a partir do contexto de produção da psicologia ao qual se refere. Embora não haja intenção de delinear uma historiografia da psicologia brasileira, é relevante considerar o modo como se produz e se pratica, bem como seus efeitos. Ao mesmo tempo, se critica tomar a relação do sujeito com a psicologia apenas a partir da sua discursividade, sem levar em consideração suas fissuras e tensões, bem como os regimes de sensibilidades produzindo também a partir de práticas de saber/poder, dentre as quais a escuta psicológica participa.

De fato, a investigação das “tecnologias psi” por Rose questionou em grande medida o modo como saberes e técnicas psicológicas transformam problemas sociais em individuais, traduziram relações de poder em categorias nosológicas e domesticaram populações. No entanto, não só os sujeitos não se reduzem e são governados pela psicologia, mas também resistem a ela e a outras relações de poder/saber, como nem tão pouco a psicologia é pura discursividade, mas praticada por psicólogos/as (e, em sentindo amplo, por quem se autorizar se valer de seus saberes) que, além de capazes de refletir criticamente sobre seus usos, não se exaurem em sua formação profissional.

Nesse sentido, se aposta na potência de uma reflexão que, resguardando-se de abarcar uma perspectiva mais ampla e histórica que favorece pensar como a psicologia disciplina indivíduos e governa populações tal qual Rose (2008), se vale de uma análise micropolítica de exercício, a partir do qual é possível entrever seus conflitos, contradições e composições, bem como processos de resistência. Tomada a psicologia como um conjunto de saberes social e hierarquicamente difundidos, ainda que seu exercício não seja exclusivo de profissionais, é interessante distingui-lo quando feito a partir destes/as que em alguma medida têm a autoridade e legitimidade socialmente reconhecida para tanto. É a esse exercício micropolítico e situado da psicologia, realizado por psicólogos/as que não se (con)formam apenas a sua profissão, mas

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são habitados por sensibilidades diversas e transitam em distintas instituições nas quais desempenham seu fazer, que julgamos mais proveitoso refletir como escuta psicológica. Trata- se, portanto, de concebê-la não só enquanto discursividade, mas como ação corpórea desenvolvida em território, na qual integra atividade relacionais e plurais, as quais desejamos problematizar com base nas noções trabalhadas de disciplina, governo e resistência.