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8 PAULO: “IMAGINA EU FALAR ISSO PARA UM HOMEM?”

8.1 Escuta inicial por Paulo a pessoas em situação de violência sexual

Para ele, não somente ser homem, mas ter cabelo grande, são elementos que recorrentemente despontam como tema dos atendimentos. “Me chamam de vários nomes: Jesus, Capim Cubano etc.”. Em muitas ocasiões, principalmente com adolescentes, pontua, conversar sobre o cabelo é um “quebra-gelo”.

Aliás, tem em mente ao atender a uma paciente pela primeira vez no SAM-WL, principalmente nas situações de violência sexual, a possibilidade de ofertar a escuta por uma psicóloga. A maioria, “aparentemente”, faz a ressalva, fica tranquila. Outras, afirmou, chegam já dizendo: “é bom que já vejo se aprendo a conviver melhor com homem”. Apenas em duas ocasiões necessitou, de fato, encaminhar pacientes para uma psicóloga do serviço, devido ao

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mal-estar expressado em ser atendida por um profissional do sexo masculino. Ainda assim, uma delas retornou posteriormente para ele.

A partir da recordação de uma escuta realizada no dia anterior à nossa conversa, com uma idosa que atendeu no SAD, refletiu sobre seu lugar como homem e psicólogo. Tratava-se do primeiro atendimento a uma senhora de 60 anos que, “do nada”, passou a falar sobre sua vida sexual com o marido. “Como assim eu sou um homem e ela começa a falar sobre sexualidade e sexo comigo? Ela me enxerga como um profissional, naquele pedestal, de quem sabe muito”. Se ele fosse tido apenas como homem, supõe, talvez ela não se sentisse à vontade. Mas, ao que parece para ele, a condição de profissional facilita que as pacientes se sintam um pouco mais confortáveis.

Acompanha no SAM-WL uma paciente que tem uma “disfunção sexual”. “Imagina ela falar com isso com um homem”? De praxe, em sua primeira escuta, sugeriu a possibilidade de ser acompanhada por uma psicóloga. Mesmo assim, ela escolheu continuar com ele. Isso não significa, em sua perspectiva, que haja alguma regularidade no modo como as pacientes se portam em relação a masculinidade de profissionais de psicologia. No entanto, considera que “o suposto saber” acaba sendo mais importante. Até porque, diferente de um consultório particular, onde se pode escolher ser atendido por homem ou mulher, no SUS já há dificuldade de encontrar profissionais de saúde disponíveis, quanto mais de optar em função do gênero.

Apesar de transpor barreiras de gênero ao versar sobre sexualidade, entende que a escuta psicológica no SAM-WL se dá em moldes mais tradicionais, “porque tem esse quadradinho aqui” (referindo-se à sala de atendimento psicológico). Aprecia isso, no entanto, já que em sua opinião, a prescrição de adaptação e diversidade do setting da psicologia na saúde em muitas situações dá a impressão de que tem que ser “a psicologia de qualquer jeito”. Ao contrário, para ele, é fundamental ter um espaço legal e tranquilo para poder trabalhar. Queixa-se apenas, da espessura fina das paredes, que deixam vazar som tanto de dentro para fora, como de fora para dentro.

Para Paulo, o SAM-WL obedece a uma lógica hospitalar de atendimento em saúde, constituindo-se num serviço híbrido tanto emergencial, quanto ambulatorial. Enquanto emergência, independentemente da situação na qual a paciente chega, a escuta funciona como um “plantão psicológico”, cujo objetivo é realizar o “acolhimento” e construir o “vínculo” da paciente com o SAM-WL: “Algum elo, por menor que seja, um pouco de confiança. No primeiro atendimento, você não vai conseguir fazer isso, mas abre o espaço para um começo”. Não se trata, em sua concepção, de uma psicoterapia, até porque algumas mulheres não vêm com o desejo de fazer um acompanhamento de maior duração. Por exemplo, as três últimas

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mulheres que atendeu numa primeira vez antes de nossa conversa, já faziam psicoterapia com profissional da rede privada.

Na primeira escuta, embora acredite que dependa muito do caso, em geral busca desvincular o SAM-WL das instituições jurídicas e policiais e da lógica de investigação da violência destas. Denominou isso de “meta-análise da saúde”, na qual busca explicar o que é o campo da saúde, como se insere nele o SAM-WL e qual a proposta de cuidado e compreensão do sofrimento desenvolvido nele. Por mais que busque desfazê-la, compreende que há uma associação do cuidado à pessoa em situação de violência à “questão jurídica”. Não só por parte da paciente, mas também dentro do próprio serviço. Especificamente, aponta, nas demandas de aborto previsto em lei.

Nas situações de relato de gravidez decorrente de estupro, busca ainda desvencilhar o espaço do atendimento do procedimento médico, apontado que a escuta pode ocorrer antes, durante e depois do aborto legal. Apesar disso, não lembra de uma paciente que tenha continuado em acompanhamento posteriormente a interrupção da gestação. Aponta como possíveis obstáculos “o peso” que seria voltar a um espaço cuja referência foi associado ao processo de sofrimento que ela vivenciou. Ou, ainda, o desejo de apagá-lo de sua vida, sendo o aborto “a borracha que ela precisava para aquilo”.

Inclusive, se disse preocupado com a ausência de uma paciente que ele havia atendido antes e até mesmo no dia propriamente do aborto, mas que ainda não havia retornado. Sua família era do interior de São Paulo e ela morava sozinha em Recife. Em geral, comentou, faz contato telefônico diante de uma primeira ausência, mas caso ela não retorne posteriormente, não liga novamente.

Acredita que esclarecer o sentido da escuta a paciente, o lugar da psicologia e o sigilo profissional “quebra algumas travas”, facilitando à paciente dialogar. Apesar disso, na maioria das vezes, nota que apenas uma pergunta já é suficiente para a paciente “disparar uma metralhadora” de situações de violência que não se limitam aquela que a trouxe ao serviço, mas abrange outras que são relembradas a partir dessa ou, até mesmo, ganham mais relevo do que a atual.

Para ele, a presença de um/a acompanhante durante o atendimento atua também, em certo sentido, como um facilitador da escuta, na medida em que ela pode ter receio de ficar só com ele numa sala. Seja pelo receio de um homem, seja também pela dificuldade da situação, pode ser importante a presença de uma referência afetiva. Por outro lado, isso pode a constranger de falar “coisas que a pessoa do lado não vai gostar de ouvir”, mas que ela pode tratar posteriormente, quando se sentir à vontade para ser atendida individualmente.

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Lembrou de uma adolescente que não conseguia de jeito nenhum ficar sozinha no atendimento, sendo atendida durante dois meses na companhia de uma amiga até que ele “fez o corte” e ela continuou com ele sozinha. Nesse sentido, a presença de um acompanhante é uma estratégia para construção do vínculo, que pode ser dispensada em outro momento. A não ser, quando se trata de adolescente, em que é necessário chamar o/a responsável para discutir o andamento do processo e definir acordos quanto a horários, frequência etc.

Além do acolhimento e da construção do vínculo, busca compreender numa primeira escuta sobre a rotina da paciente, para determinar “como ela pratica saúde no dia a dia”. Adota perspectiva da integralidade da saúde e o cotidiano da pessoa é uma referência para avaliar o que ela faz e como se cuida. “Se vive só em casa, não tem família, não tem lazer, não faz nada, isso é algo a ter atenção”. Para ele, é importante saber se ela faz atividade física, se se alimenta bem, se dorme bem, vai para atendimento médico, faz prevenção etc.

Quanto ao início de um acompanhamento mais prolongado, não acredita que haja nada específico que favoreça a paciente que foi atendida na perspectiva de um “plantão psicológico” iniciar uma “psicoterapia”. Já atendeu pacientes que achou que teria bastante o que trabalhar, mas que não se vinculou ao serviço. “Às vezes, não bateu o santo, não tá a fim naquele momento”. Citou uma paciente, “com uma demanda arretada”, a qual reconheceu a necessidade do acompanhamento, ainda assim reiterou não ter desejo em fazê-lo, tendo Paulo apernas indicado a possibilidade de ela retornar quando caso sentisse vontade.

Relatou também ter atendido um menino trans, que pensou em encaminhar para o Espaço Trans do HC/UFPE. Havia sido encaminhado ao SAM-WL pelo Conselho Tutelar, devido a uma violência familiar. Ele tinha vindo a Recife recentemente, morava anteriormente em São Paulo e já lá havia passado a assumir identidade de gênero masculina. Embora sua família em São Paulo fosse “um pouco mais tranquila quanto a isso”, os parentes em Recife eram “evangélicos e militares”. Segundo Paulo, ele tinha o cabelo curto e usava roupas masculinas, desejando iniciar a hormonização. Como era adolescente, com dezessete anos, ainda dependia de autorização dos responsáveis para isso, mas em breve atingiria a maioridade. Não tinha, no entanto, afirmou Paulo, interesse em realizar acompanhamento psicológico, nem manifestava nenhuma demanda aparente. Pareceu, ao seu ver, se contentar com a orientação sobre a existência do Espaço Trans.

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