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6 MARIA JESUS: “EU ESTOU EM RISCO”

6.3 Afetação de Maria Jesus na escuta psicológica

Maria Jesus falou também das diversas formas que a escuta às adolescentes e mulheres a afeta. Não somente em relação ao temor e a sensação de constante perigo que vivenciou inicialmente a partir dos atendimentos no SAM-WL, mas também dor, raiva, espanto e indignação. Admitiu se angustiar com casos que são de algum modo mais próximos da realidade que ela vive. Por exemplo, quando o autor da violência é um vizinho, ou um motorista de UBER.

Contou sobre o atendimento a uma senhora idosa, com mais de 80 anos, residente em município de interior, que chegou ao SAM-WL encaminhada de um estabelecimento de saúde dessa cidade, onde havia ficado internada. Em seu relato, a paciente disse que um homem desconhecido invadiu sua casa e a estuprou, tendo ela se mantido rezando e de olho fechado durante o ocorrido. Como ela sofreu uma lesão vaginal durante o estupro, buscou serviço de saúde de sua localidade, alegando, devido a vergonha, ter sofrido um acidente, até que conseguiu contar sua história para uma assistente social, que a encaminhou ao SAM-WL. Maria Jesus disse ter ficado surpresa ao escutar, durante o atendimento, ela falar: “Minha filha, eu tô viva. Deus foi tão bom comigo”! Descreveu a escuta como dolorosa: “Essa senhorinha me fodeu! Parecia que eu tava vendo minha avó violentada”. Refletiu, a partir dessa história, sobre como a escuta no serviço lhe provoca a “sair do seu lugar o tempo todo”.

Outra situação que lhe trouxe mal-estar e a fez se sentir “extremamente vulnerável”, devido à lesbofobia envolvida, foi a de um casal de mulheres que foram ambas assaltadas e, em seguida, estupradas por dois homens. Maria Jesus contou que um dos agressores as questionou: “quem é o homem”? Uma delas, que Maria Jesus referiu como mais experiente e com mais acesso a reflexões, contou ter respondido: “Não tem isso”! Apesar disso, a outra, que segundo Maria Jesus, afirmou que eles não iriam ficar em paz enquanto não escutasse uma resposta, se colocou: “Sou eu”! Maria Jesus relata que foram mais cruéis com a última, chegando a utilizar instrumentos para penetrá-la. Falou, ainda, que ela não havia sequer tido relação sexual com a parceira, era o seu primeiro relacionamento com uma mulher e elas ainda estavam se conhecendo. Atendeu as duas juntas: “estavam as duas lascadas”. Voltaram duas ou três vezes só, disse. “Era tudo muito dolorido... foi muito pesado”. Questionava-se: “como isso deve ter marcado a vida delas?”

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Essa violência ocorreu, segundo Maria Jesus, nas proximidades da rodoviária de Recife, o Terminal Integrado de Passageiros (TIP). Na mesma época, outras pacientes foram atendidas relatando ter sofrido estupro na mesma região, também por dois homens com as mesmas características. “Eu sabia que isso tava acontecendo e a gente não tinha como falar”, constatou indignada. Uma dessas pacientes era, colocou Maria Jesus, uma mulher negra do candomblé que foi junto com um amigo fazer um ebó na mata, onde foi abordada por esses agressores, que apontaram a arma para aquele e, enquanto a estupravam, a xingavam: “macumbeira”. Questionada sobre se percebia também alguma relação entre racismo e violência sexual, ela atribuiu a percepção de que a maioria das pacientes são mulheres negras devido a “vulnerabilidade social” que vivenciam,

Enquanto nesse último classificou a violência sexual também como uma forma de intolerância religiosa, outros dois atendimentos realizados por ela se referiram a pacientes que foram violentadas por autoridades religiosa: uma adolescente que disse ter sido estuprada por um pai de santo, o qual a ameaçou de fazer “trabalhos” contra ela, caso ela contasse a alguém; e uma mulher que sofreu estupro por um pastor.

Acompanhou uma paciente que relatou também ter vivido estupro por uma autoridade, não de cunho religioso, mas por um médico. Essa paciente afirmou ter sofrido a violência sexual durante atendimento numa UPA. Maria Jesus refletiu, com base nessa situação, que apesar das discussões e das tentativas no sentido de demover qualquer suspeita da fala da mulher durante o atendimento – o que acredita não ser frequente no SAM-WL –, ainda assim a dúvida pode ocorrer em determinadas situações “esdrúxulas.”

Esse caso teve uma certa repercussão midiática e, nas notícias da internet, havia uma série de comentários violentos e culpabilizantes, que a paciente lia e trazia aos atendimentos, contou Maria Jesus. As pessoas foram extremamente cruéis nesses comentários, condenou, exemplificado com alguns: “Como ela tava vestida? Ela bem que queria.... Tá querendo dinheiro”! Precisou intervir de maneira firme para que ela parasse de lê-los, recomendado, caso a adolescente desejasse saber das notícias, que se servisse da própria Maria Jesus como mediadora.

A própria paciente disse em atendimento que achava que ninguém acreditaria nela. Foi só após sua mãe perceber, depois dela passar dias chorando, que havia algo errado, que ela quebrou o silêncio e fez a denúncia. Daí então, com a exposição de seu caso na mídia, mais treze pessoas denunciaram haver sofrido violência sexual pelo mesmo médico, o qual foi finalmente preso.

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Pelo menos, treze pessoas foram estupradas por esse médico e não disseram nada, Maria Jesus contou chocada. Uma delas, segundo ela, acordou da anestesia da cirurgia a qual foi submetida sendo violentada e, como também achava que ninguém acreditaria nela, ficou calada. Maria Jesus, se lembrado do relato de amigas que foram assediadas em consulta médicas, se colocou no lugar delas: “isso pode acontecer comigo também”. Por isso, concluiu, mesmo diante das “situações mais esdrúxulas”, não duvida da mulher. “Até que provem o contrário, a palavra da mulher tem sentido. Jamais vou abrir minha boca para desconfiar de uma mulher”.

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