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11 ENTRE LUGARES DE FALA E DE ESCUTA

11.2 Lugar de Escuta

Toda fala se realiza numa escuta, que pode ignorá-la, confundi-la, bem ou mal entendê- la. Se Ribeiro (2017) e Mombaça (2017) propõem a partir da noção de “lugar de fala” uma política dos saberes em disputa, tomando a redescrição da escuta em Foucault por Siisiäinein (2010) dos nossos ouvidos como espaços de luta situados entre relações de poder e formas de resistência, podemos pensar essa disputa dos saberes a partir da escuta.Não se trata apenas, nessa perspectiva, de assumir a existência e os saberes de grupos oprimidos e/ou privilegiados, mas dos modos como esses se fazem escutar, sendo ou não reconhecidos por pessoas que pertencem a outros grupos, ou como ressoam em instituições e espaços socialmente relevante.

Desse modo, a noção de lugar de fala ao propor uma agonística das culturas e dos saberes requer administrar o modo como esses antagonizam, hibridizam ou se transformam através dos contatos e conflitos entre distintos grupos sociais nos mais diversos contextos. A fala, ao implicar a (não) escuta, compreende assim os diálogos, debates, brigas e silêncios entre sujeitos distintos cujo encontro ou atrito são passíveis de pôr em jogo os próprios posicionamentos e marcas políticas dos corpos a partir do modo como são autorizados a falar/escutar num local distribuído de acordo com diferenças, desigualdades e violências.

A escuta psicológica, nesse sentindo, é exemplar. Apenas aos profissionais de psicologia, tidos como aqueles quem detém a autoridade e legitimidade do manuseio das teorias e técnicas psicológicas, são habilitados a desempenhá-la. A psicologia, no entanto, é ela mesma um conjunto de saberes em disputa, sendo estas, contudo, produzidos em grande medida por grupos sociais privilegiados, aos quais se contrapõe mais recentemente problematizações trazidas por mulheres, negros/as, LGBT, pessoas com deficiência etc., a partir não só da circulação desses corpos nas universidades e espaços de atuação profissional da psicologia, mas da enunciação dessas demarcações como modo de questionamento do saber psicológico então instituído.

O “lugar de escuta”, portanto, a partir do qual se exerce a psicologia em suas mais diversas modalidades profissionais, ao passar a ser ocupado e demarcado a partir das múltiplas identidades dos/as psicólogos/as, denuncia o regime discursivo hegemônico da própria psicologia como “neutra”, “técnica”, ou “não militante”. A escuta psicológica passa a ser progressivamente concebida e denunciada como situada e corpórea, a partir do modo como a produção de conhecimento psicológico e o uso de técnicas psis assume ou não sua localização, favorecendo ou silenciando inteligibilidades e sensibilidades diversas.

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Ao se apontar, por exemplo, a cisgenereidade de um determinado psicólogo/a não necessariamente se atesta a existência de uma escuta cis, mas sua demarcação evidencia o modo como a inscrição de um dado corpo relativamente condizente com essa normatividade o posiciona através da escuta numa relação de poder perante aqueles que não se enquadram na mesma matriz de gênero. Nesse sentido, a noção de lugar de fala/escuta serve também à psicologia para questionar o modo como ela é povoada por essas relações de poder e dominação, interrogando tanto posições de privilégio (cisgenereidade, heteronormatividade, branquitude, colonizador etc.) e opressão, como seus efeitos a partir dessas relações.

Se a escuta psicológica, portanto, é aquela exercida pelos/as profissionais de psicologia, demarcar nossas posições de privilégio e opressão implica em questionar quem pode ou não ser reconhecido a partir dessa categoria profissional. Significa, em última instância, pôr em suspeição seus efeitos de verdade e sua aparência de neutralidade a partir do barulho produzido pela luta política capaz de ressoar as estruturas de privilégio e dominação que configuram uma determinada profissão como necessária e útil – a quem, para que?

Sob essa perspectiva, considerar a escuta psicológica como uma micropolítica exercida por psicólogos/as junto a pessoas de outros grupos sociais implica pensá-la não somente como relação profissional, mas como uma relação que é também racial, de gênero, de classe, sexualidade em associação intersseccional. Não se quer com isso reduzir a diversidade de possibilidades de experiência produzidas e vivenciadas a partir da atuação dos/as psicólogos junto aos demais, mas contribuir para problematizar ética e politicamente a pratica profissional no que diz respeito ao enfrentamento das iniquidades sociais.

A noção de lugar de escuta para psicologia pode servir de ferramenta para combater teorias e práticas psicológicas que mantém ou produzem desigualdades. Isso exige o reconhecimento de histórias de opressão e a responsabilização pelo legado de privilégios dos profissionais de psicologia em contextos locais ou mais amplos. Com isso, é possível produzir uma análise crítica das relações de poder em intersecção ensejadas a partir da posição de psicólogo/a junto aos/a seus/suas usuários/as. E, desse modo, orientar a escuta psicológica em seus microssistemas a partir de uma perspectiva de igualdade condizente com um macrossistema mais democrático.

Consciência social, relativismo cultural, ou sensibilidade política associam-se, desse modo, na “construção de vínculo” necessário para se produzir transformação através das diferenças entre profissionais de psicologia e seus/suas usuários/as. Afinal de contas, ao ser tomada em sua dimensão político-cultural, já que envolve o uso de linguagem, práticas discursivas e conceitos, a escuta psicológica pode ser abordada a partir das identidades sociais

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que interconecta, formando, portanto, dinâmicas de poder. Sendo assim, o exame das opressões e privilégios no contexto da escuta psicológica pode contribuir para apontar a localização social e institucional que delimita a relação entre profissionais de psicologia e usuários/as, permitindo o questionamento tanto das referências teóricas, dos métodos utilizados, da moralidade e das sensibilidades envolvidas em sua prática e, finalmente, das políticas da profissão.