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CAPÍTULO I DO LIVRO LITERÁRIO À TELA DA T

CAPÍTULO 2 PERCURSO METODOLÓGICO

2.4. A Estética da Recepção e do Efeito Estético no Texto

O foco da estética da recepção preconizada por Jauss (1979) são os procedimentos de leitura, tomando o objeto estético como um acontecimento provocado pela relação entre leitor e obra, em que a constituição do sentido se daria em função das orientações do texto, de um lado, e de outro, dos horizontes de expectativa de um sujeito historicamente situado. No conjunto, o horizonte de expectativas é criado pelas informações que a obra encerra em

si mesma, mas também pelo conhecimento e repertório cultural do receptor prestes a lê-la. Essa teoria considera a literatura um sistema que se define por produção, comunicação e recepção, tecendo uma relação de interação entre autor, obra e leitor.

Iser, ao lado de Jauss, também foi membro do grupo de Constanza, com sua teoria do efeito estético, que busca descrever o processo de interação entre o texto e o leitor, partindo da noção que a própria estrutura do texto conforma e controla essa interação. Para o autor, a análise da estrutura de apelo do texto se configura como eixo fundamental no processo de compreensão dos atos de leitura.

A teoria do efeito estético, portanto, oferece condições de avaliar a recepção do texto literário televisivo Hoje é dia de Maria, permitindo buscar o leitor dentro do próprio texto, através das estruturas que condicionam a sua participação, os lugares vazios, que atribuímos ser uma das razões que proporcionou à microssérie receber o selo de qualidade da televisão, destacando-se como uma das produções ficcionais da televisão brasileira, formato minissérie, mais premiadas em 2005.

Nesse universo em que a leitura televisual não é uma atividade que ocupa a preferência dos currículos escolares e nem dos jovens leitores, surge uma série de questionamento sobre os motivos desse sucesso: estaria no texto? Na temática, na composição da trama, nas personagens, no enredo? Ou estaria na resposta de seus leitores que atendendo a um chamado do texto, evidencia a necessidade de uma nova forma de leitura, coerente com a era em que vivemos?

Para compreender o caráter estético e a função da obra, é essencial perceber a recepção e o efeito que ela alcança. É imprescindível, portanto, entender o que antecede e resulta da leitura da obra, para, assim, compreendê-la em sua profundidade.

Para analisar Hoje é dia de Maria é necessário montar um horizonte de expectativas, criado pelo público, a partir da divulgação que a microssérie teve, do conhecimento das lendas e folclore brasileiro e de referências a outras obras que remetam ao mesmo tema. Mas, um horizonte de expectativas não é criado apenas com elementos exteriores à obra em si – os cerca de 45 minutos por episódio. O gênero, o formato, o canal e o horário em que a microssérie é exibida, indicam qual a proposta da obra e qual o público com o qual ela quer dialogar.

As séries de televisão são antecedidas por uma massiva publicidade que não tem apenas a função de anunciar o novo produto, mas é um dos elementos que ajuda a formar o horizonte de expectativas do público em relação à obra. As chamadas de TV dão ao

espectador uma mostra do que eles irão assistir, despertando interesse e criando expectativas. Isso determina muito as expectativas que o público terá da série. Associados a esses elementos citados, destacamos a sua comparação com outros produtos midiáticos do mesmo gênero e da mesma temática. Hoje é dia de Maria pode ser associada à

minissérie “Auto da Compadecida”, do escritor nordestino Ariano Suassuna; ao filme “Morte e Vida, Severina”, de João Cabral de Melo Neto; e, ao filme “Vidas Secas”, de

Graciliano Ramos, que possuem pequenos pontos em comum com a microssérie – o formato, gênero e a abordagem são diferentes –, sendo, assim, passível de comparações, e logo, de influenciar o horizonte de expectativas, mesmo que seja para um número menor de indivíduos.

Nesse caso, na medida em que essa microssérie é analisada em conjunto com as expectativas do leitor, delineia-se uma suposta pergunta: o que traz Hoje é dia de Maria ao seu público que ele ainda não saiba e não tenha visto? Talvez a resposta esteja na inovação de sua linguagem e no caráter que assumiu de superprodução, tornando-se a série de TV mais cara – 50 milhões de reais – da época – 2005 –, de acordo com o site globo.com5. O dinheiro gasto com a produção – exibida em comemoração aos 40 anos da Rede Globo –, cenários, figurinos, caracterização dos atores, foi essencial para uma reconstrução impecável da realidade nordestina, evidenciada na ampla visão oferecida da cultura popular, exibindo personagens ricos e fascinantes do imaginário brasileiro.

Para uma eficaz comunicabilidade entre produto e espectador, é necessária a construção de uma narrativa visual com tanta peculiaridade, retratada no desejo do diretor Luiz Fernando de Carvalho de resgatar a infância pelo viés dos contos e da oralidade

populares e por acreditar “em um patrimônio genético do Brasil, suas histórias, raças, línguas e seus sons”.6

A estética usada na obra é composta pelo inconsciente brasileiro, conduzido delicadamente pelo fio da infância, com o cuidado de não ser regionalista. Sua marca principal é a ancestralidade, o que lhe permite imaginar mais que copiar, sentir mais que descrever e explicar. A ancestralidade transpassa fronteiras e, assim, inexplicavelmente, como ela só, uniu João Cabral a Sevilha, João Gilberto ao jazz, Ariano Suassuna a Cervantes. Uma estética construída a partir da reciclagem de todo material usado em cena, fazendo uma ligação com o tempo, em uma intenção visível de reencontrar a antiga vida

5 Dados coletados da Internet. Site www.globo.com. Acessado em 10de novembro de 2009.

6 Entrevista do diretor de Hoje é dia de Maria, Luiz Fernando de Carvalho. Site: www.globo.com acessado em 18 de agosto de 2009.

daqueles objetos, assim como a alma daquelas histórias. Uma história que sai da gaveta de brinquedos velhos, mas que carregam uma dose de imaginação aos olhos de quem estará com eles, pois estão carregados de sonho humano.

Caracteriza-se por uma construção ficcional, em que o ser humano é um ser de forte envergadura moral, que rompe barreiras, obstáculos, com a ajuda de forças estranhas. Nesse contexto narrativo, delineia-se uma identificação entre obra e espectador, pois a personagem heroica, como arquétipo, apresenta aspectos inerentes e tocantes a qualquer ser humano.

O desenrolar do enredo corrobora para novas (re)construções. Em um primeiro momento da microssérie, a personagem Maria inicia sua jornada como criança, chega à idade adulta e retorna à infância, mergulha e promove a narrativa do inconsciente coletivo a partir das expressões folclóricas brasileiras, com a participação de figuras emblemáticas da cultura popular. A magia da infância vai surgir à frente do espectador. A produção popular dialoga com o passado, estabelecendo formas especiais de intertextualidade.

A trama poética propõe ao telespectador recuperar as tradições mais antigas da miscigenação cultural, valorizando a diversidade de manifestações artísticas populares. A microssérie reúne, visualmente e acusticamente, o universal e o local da cultura em sua multiplicidade.

É um texto televisual que se vale de uma linguagem que não se revela por inteiro em uma primeira exibição, uma vez que é pontuada de expressões e dialetos que definem a especificidade do campo semântico dos sertões do interior nordestino.

Do ponto de vista da estética da recepção, podemos dizer que o texto Hoje é dia de Maria apresenta condições de promover uma fusão com o horizonte de expectativas do leitor, pois o conhecimento que detém sobre a cultura e o folclore brasileiros é evocado no ato da leitura da microssérie, facilitando a compreensão do texto, o que lhe propicia a ampliação de seu horizonte. Dessa maneira, a literatura participa da construção do indivíduo como membro de uma sociedade. Configura-se, assim, uma combinação recepção-efeito.

A estrutura de apelo de Hoje é dia de Maria, ao que parece, está fundada, principalmente, em duas estratégias: a segmentação do texto, promovida pela adaptação, e os procedimentos do diretor na construção narrativa. A divisão da história em oito episódios introduz indeterminação no texto de duas formas: primeiro, pelo momento em que são realizados os cortes e, depois, porque insere um vazio pela suspensão de

determinadas informações entre um episódio e outro. Além da estratégia do corte e segmentação, há, também, a quebra da continuidade, os ganchos que desencadeiam outros significados. Ambas as formas mobilizam a entrada de estratégias do leitor, incentivando- o a fazer conexões capazes de formar uma representação do que foi lido.

O momento em que é efetuado o corte na narrativa é importante na medida em que se estabelece um marco na sequência de perspectivas apontadas pelo texto, gerando significado. Na microssérie é efetuado com mais frequência após o confronto entre o protagonista e o vilão, que consegue escapar, apontando para um determinado horizonte de sentido que evoca, tanto o retorno do mal, quanto suposições de novas perspectivas. Maria sai da luta quase sempre perdendo alguma coisa, principalmente nos diferentes duelos que trava com o demônio Asmodeu, o que sugere que novos elementos vão entrar na trama a fim de justificar um novo embate, o que requer tanto do personagem como do leitor, uma necessidade de refletir sobre os últimos acontecimentos.

Ao fundir realidade e ficção, o autor propõe possíveis novas leituras sobre a vida do homem sertanejo, conduzindo o leitor a analisar sua maneira de perceber as relações que são tecidas no transcorrer da história, possibilitando uma interação maior da obra com o leitor.

A morte da protagonista, no início da obra, parece ser uma morte sacrificial, ou seja, em função da situação. As relações possíveis referentes à morte do personagem, da mesma forma, ascendem para um sentido maior se levarmos em conta a morte sacrificial no contexto do cristianismo, ou até mesmo, a questão da vida como uma fase de purgatório. Assim, toda ação e enredo se voltam para um significado maior, o da existência e conflito humano em sua trajetória de vida.

Desde as primeiras linhas, o texto vai tecendo uma rede de enigmas, provocando o leitor que, de início, indaga sobre quem é Maria? É uma menina órfã, forte e corajosa, que, cansada da vida do lar, foge sem rumo, em busca das franjas do mar. E, em seguida, revela características do personagem, como personalidade, caráter e conduta,, que, de certa forma, estão relacionadas com sua vida. Seus olhos tristes, seu ar de desânimo, retratando dor e angústia, levam o leitor a imaginar que se trata de uma criança sofredora, submissa à sua condição feminina, que, apesar da árdua travessia, não desiste de buscar seu caminho.

Valendo-se do significado do nome, Maria lembra uma entidade bíblica, e, ainda no contexto cristão, a mãe de Jesus. Emerge daí uma relação com a religiosidade que o personagem demonstra através das orações que realiza em todos os momentos aflitivos,

quando busca a proteção de sua mãe, que se apresenta na imagem de Nossa Senhora, em um desejo pulsante de encontrar a felicidade.

Informações no decorrer do texto exigem que o leitor refaça certas expectativas, pois o autor vai desconstruindo a história à medida que os mistérios da vida de Maria vão sendo lançados, em uma perspectiva de desvendamento do problema existencial que carrega ao longo de sua caminhada e que, supostamente, poderia ter influenciado na formação de seu caráter.

Porém, não é exatamente essa conduta adotada pelo personagem que veementemente se compraz em atitudes de amor e solidariedade por todos aqueles que caminham com ela em busca de uma vida melhor. Mesmo tendo que enfrentar os maus tratos do pai, Maria não se deixa contaminar por seus desalentos e entrega-se a uma desesperada busca para reencontrar o amor familiar.

Na sequência do enredo, Maria surpreende o leitor, quando em um duelo entre o bem e o mal, enfrenta as artimanhas do demônio, senhor dos descaminhos, que, em uma atitude de perversidade, desvia Maria de sua infância, transformando a menina em mulher. Essa transformação dá margem às expectativas do leitor quanto à traição sofrida pelo personagem, e, ao mesmo tempo, suscita questionamentos no que se refere ao final da história. Até o narrador inserir outros personagens na narrativa, como é o caso do homem- pássaro que se revela como o amado de Maria, o texto vai provocando o leitor. Contudo, a justificativa que explica essa transformação faz o leitor começar a torcer pela vida de Maria na busca de sua realização amorosa.

O texto traz as emoções, medos, inseguranças, inquietações e tormentos que invadem a alma humana desde a infância. Possui uma narração iniciática, em off7, dirigida ao leitor, chamando sua atenção para os fatos que serão contados, traçando, desse modo, um fio condutor da história, reforço do pacto interativo com o leitor, atribuindo-lhe a condição de ouvinte de uma narrativa de tradição oral. O autor incita o leitor para a apreensão de um dado essencial: trata-se de um narrador tentando reconstruir as cenas que, por estarem distantes no tempo, serão contadas como recortes e desvios inventivos do próprio ato de resgate da memória.

O texto oral que assume, na narrativa principal, a função de uma história da avó que narra o desejo de uma menina em encontrar as franjas do mar, pertence à tradição do conto

popular, cujo objetivo é documentar usos e costumes de um povo, sendo essa a forma mais universal de transmissão da cultura.

O enredo se constrói a partir do drama central vivido pela filha Maria. O leitor insere-se no universo psicológico e espacial de sua família. A mente do personagem apresenta-se como o espaço de confronto de pensamentos, pois é dele que surgem os sentimentos contraditórios em relação ao mundo e à vida.

A relação de intimidade entre leitor e texto se mantém com a utilização de uma linguagem construída de fragmentos, os quais são captados na observação tanto de um narrador onisciente como na criação de situações metafóricas, recurso utilizado com o objetivo de expressar emoções. A composição das cenas cotidianas, do ambiente simples e da incansável trajetória de Maria, vai, pelas imagens poéticas, construindo belos momentos em que a poesia e a simplicidade se reúnem para descrever a vida.

Essa linguagem poética suscita a fantasia e, por meio dela, o leitor adquire experiência, não como busca de modelos, mas a partir de uma operação de reconstrução que ele próprio realiza nos limites do imaginário. Desse modo, o leitor é levado ao desconhecido, às inquietações, sentimentos capazes de colocá-lo em alerta.

O recurso lexical “Era uma vez”, que dá início à fala introdutória da narradora-avó,

é utilizado como uma referência atemporal que conduzirá o leitor ao mundo da imaginação dos contos de fadas.

O leitor implícito infantil inscreve-se textualmente por meio dos recursos imagéticos, nas cenas em que Maria aparece saltitando e cantando alegremente. Parece-nos que esses recursos, além de destacarem a narrativa da avó da narrativa principal, colocam o leitor da trama principal na condição de ouvinte da história contada pela avó.

Dessa forma, esse leitor passa a reconhecer-se como parte integrante da narrativa principal, assim como o personagem infantil da trama apresenta a mesma expectativa em relação aos fatos. Estabelece-se, portanto, uma interação do texto com o leitor, que se processa através de atos imaginativos do leitor implícito.

Destaca-se, assim, o leitor virtual, que foi criado com base no leitor real, empírico, dos contos de fadas. Nesse sentido, os recursos visuais e as sensações criadas a partir das imagens atuam como aliado capaz de estimular a fantasia desse leitor, conduzindo-o aos fatos narrados. Esses efeitos e sensações são transmitidos pela voz narrativa do texto, e nele, o leitor é levado a construir-se como ser e a confrontar questões existenciais que afligem o homem desde a infância.

Como vimos, o alvo é o leitor, a necessidade de uma atividade com o imaginário na obra literária. O leitor não é apenas um construtor de sentidos, mas alguém capaz de ampliar esses sentidos e colocar em prática sua própria experiência.

A partir da leitura dessa obra, percebemos que é possível tratar de temas delicados como o das relações familiares, problemas existenciais, não colocando a criança, o jovem diante de obras que resgatam o final feliz, mas, transformando em experiência os dramas que fazem parte de seu cotidiano. O leitor infantil, assim como o leitor adulto, é conscientizado de que existe um mundo real cheio de coisas simples e coisas complexas como a morte, e os sofrimentos causados pelo medo e pela dúvida.

O texto televisual Hoje é dia de Maria, em sua primeira jornada, trata de sentimentos conflituosos: medos, dúvidas, ou ainda, valorizando a linguagem e a imaginação. Dessa forma, o autor mobiliza, também no leitor, a sensibilidade e o desejo de expressão.

A obra televisiva convive, harmoniosamente, com tendências díspares, organizando uma narrativa múltipla, tornando-se objeto de inúmeras leituras, sucessivas fruições, não se esgotando em si mesma e ensejando as mais variadas interpretações. Além de Maria, aparecem outros personagens que fazem e cometem o mal, semeiam violências e dominam os mais fracos. As duas figuras maiores da encarnação desse mal são a madrasta e o Asmodeu, que deixam as marcas de suas perversidades por onde passam.

A saga dessa menina imprime uma série de situações, toca a experiência da precariedade da vida, da transitoriedade das coisas; apalpa a negatividade do mundo, o absurdo, e, às vezes, a falta de sentido, enfrentando o jogo da vida, no qual, mistério e enigma fazem a humanidade debater-se com o problema do mal. Esse embate, que tem a forma exterior de brutalidade entremeada e atravessada pela beleza e amor, faz com que o personagem realize a viagem – travessia – ao fundo de si mesmo.

Como podemos ver, os efeitos estéticos por que passa o leitor a partir do que é apresentado no polo artístico de Hoje é dia de Maria produzem-se pelos embates entre a perspectiva do narrador e as ambiguidades ocasionadas pelas vivências de uma menina que, em sua potencialidade do vir-a-ser, fundamenta o clímax da narrativa através de olhares substituindo palavras e palavras que dizem e escondem gestos que se insinuam e se intimidam como possibilidades de incitar o leitor à reflexão.

Pela construção de um possível horizonte de expectativas do público e posterior análise da recepção de Hoje é dia de Maria, podemos avaliar positivamente quanto ao

êxito naquilo em que a obra se propunha, ou seja, mostrar ao seu público uma produção literária ficcional na TV com marcas diferenciais, tornando-se alvo de elogios da crítica especializada e detentora de vários prêmios.