CAPÍTULO I DO LIVRO LITERÁRIO À TELA DA T
1.4. Adaptações Literárias na Televisão
Analisando questões relacionadas ao processo de passagem de uma obra para outro
meio, Adami (2000, p.73) afirma que adaptar “é principalmente, atualizar o texto em outra linguagem”. Tudo isso parece ser muito simples, porém, tem provocado profundas discussões entre escritores, roteiristas, diretores. De acordo com o autor, “o que deve ser
preservado é a espinha dorsal do texto original, o espírito do escritor, de modo a
percebermos nas entrelinhas a trama central”. (ADAMI, 2000, p.68).
O escritor e roteirista de televisão Rey (1989), entende que uma adaptação é um
roteiro original, porque “não precisa necessariamente conter tudo que está no livro”.
Quanto às críticas negativas com que a adaptação é julgada, Rey diz:
Quase perplexos constatamos que a palavra adaptação não consta do vocabulário de muita gente supostamente possuidora de bagagem cultural, como professores e jornalistas. Daí estar ela exposta a julgamentos apressados e superficiais, naturalmente injustos. (REY, 1989, p.63).
Diante do exposto, percebemos que, tanto Adami quanto Rey, abordam o traço mais polêmico entre as obras e suas adaptações: o sentimento de perda, quando não de destruição, que autores, críticos e às vezes até o público consideram ocorrer nesse processo. Lins (1977, p.61), analisando a relação entre a literatura e os meios de
comunicação, entende que a adaptação “surge aos olhos desavisados do público como uma
promoção, uma sagração, envolvendo-a em uma aura de prestígio”.
Dois autores que enfocaram a relação literatura e adaptação televisual em suas análises apontaram aspectos negativos. Averbuck (1984), no estudo sobre a telenovela
“Selva de Pedra”, obra adaptada do romance de Lígia Fagundes Telles, ao comparar as
que, por meio da obra adaptada, não se realiza o desejo do escritor. O sonho de “levar sua
palavra a milhões de possíveis leitores, se apresenta como uma ilusão, e seu desejo de
diálogo permanece ao fim irrealizável”. (AVERBUCK, 1984, p. 202).
Chegando a conclusões também negativas em relação à obra adaptada para a TV, Sodré (1978), analisando a adaptação televisiva do conto “A Cartomante”, de Machado de
Assis, diz que o teledrama subverte a intenção do conto e dele “resta um puro efeito de
prestígio – uma aura literária, um nome: Machado de Assis”. (SODRÉ, 1978, p.23).
A essas visões negativas, Figueiredo (1995) apresenta uma contrapartida: a possibilidade de, ao menos, tornar mais conhecidos autores e obras. Enfatiza a socialização da obra que, com a televisão, torna-se mais disponível ao grande público. Segundo a autora, a televisão, ao levar ao grande público uma obra da chamada literatura culta, constitui-se em veículo socializador e democrático. Esse aspecto não pode ser desconsiderado em um país como o Brasil, em que poucos leem obras de ficção.
Segundo PIZA (2010, p. 10), “no mundo inteiro, inclusive no Brasil, são lidos mais
livros de não-ficção do que de ficção”. Houve um tempo, como sabemos, em que a narrativa ficcional ocupava o centro da cultura. No século XIX, por exemplo, o grande
romance dava a medida de uma civilização. ”Hoje não mais”, complementa o autor. Para
Piza (2010), pode-se atribuir a perda da importância da leitura de ficção “à explosão de outros meios e linguagens, à concorrência de formatos audiovisuais, à internet, que têm uma eloquência mais direta; e todos eles não exigem o grau de concentração que os
clássicos”.
Não preocupado em confrontar e discutir os valores da obra literária e os da obra adaptada, é Comparato que, estudando a adaptação, de forma didática, apresenta suas características e seus diferentes graus. Sua concepção do que é adaptar aproxima-se da visão de autores que veem a obra adaptada como algo original:
Uma transcrição de linguagem que altera o suporte linguístico utilizado para contar a história. Isto equivale transubstanciar, ou seja, transformar a substância, já que uma obra é a expressão de uma linguagem. Portanto, já que uma obra é uma unidade de conteúdo e forma, no momento em que fazemos nosso conteúdo e o exprimimos noutra linguagem, forçosamente estamos dentro de um processo de recriação e
transubstanciação. [grifos do autor]. (COMPARATO, 1995, p.330).
Buscando maior especificidade ao emprego do termo adaptação às obras produzidas para a TV, Reimão (2004) afirma que:
A adaptação do texto literário para um programa televisivo e, em primeira instância, um processo de mudança de suporte físico. Trata-se de uma passagem de sinais e símbolos gráficos assentados em papel para um conglomerado de imagens e sons captados e transmitidos eletronicamente. (REIMÃO, 2004, p. 107).
Trata-se de uma definição que aponta para um sentido mais amplo do termo, assim
como para a expressão “tradução intersemiótica”, de Jakobson (s.d, p. 65), e adotada por
outros pesquisadores para designar o processo de adaptação – o trabalho de passar signos verbais para o sistema de signos não-verbais. Além disso, estão subjacentes a esse processo questões complexas e polêmicas como: autoria, audiência, participação e recepção.
Nesse processo, não podemos negar as diferenças básicas entre o meio pelo qual a mensagem da obra original e da obra adaptada é passada, mesmo em se tratando de um
mesmo texto. Nesse sentido, Adami (2000) ressalta que “adaptar talvez seja pegar as várias
leituras do mesmo texto e transformar em imagem, respeitando o que basicamente o autor
imaginou”. Um exercício de leitura e reconstrução de sentido de um texto. Assim sendo,
não há como admitirmos a existência de fórmula para a reconstrução de uma obra literária em texto fílmico ou televisivo. É uma trajetória marcada pela sensibilidade do autor, aquilo que está subjacente, metaforizado na obra de origem. Cabe ao adaptador, navegar entre a palavra-imagem.
As relações do autor com o universo da televisão significam um grande desafio a ser enfrentado pelo intelectual. Nessa operação é preciso decifrar a imagem como se decifra um texto, ou seja, encontrar um sentido, significações fornecidas pela imagem. Na TV possuímos os dois – texto e imagem. Isso requer uma nova leitura, diferente da leitura de um romance e de uma fotografia. Daí ser necessária uma releitura, pois estamos lidando com um novo texto, em que há a coexistência desses dois elementos responsáveis pelo dinamismo da televisão.
Walter George Durst (apud ADAMI, 1995), experiente adaptador e roteirista, lembra que, para uma boa adaptação, é necessário que seja lido o maior número de obras e informações possíveis sobre o autor, se possível, respirar, inclusive, o mesmo ar do autor, quando esse escreveu o texto de partida – o texto literário. “O essencial é captar a essência e as nuanças do autor e não fugir do proposto. É conhecer a sua obra e passar a visão do
Adami (op. cit.) ressalta que é errado pensar que os textos literários são um roteiro, faltando apenas enumerar as cenas. O principal motivo para essa visão está na diferença das linguagens. O texto televisual precisa ser sequencial, linear, apresentar as ações dos personagens, além da incursão dos elementos sonoros, musicais e imagéticos imprescindíveis na televisão. O autor continua lembrando que as contradições são o que realmente marcam uma narrativa ficcional, são elas as responsáveis pelo poder
dramatúrgico de um texto. Para ele, “adaptar é mais que simplesmente copiar em uma outra linguagem, é reconstruir, desconstruir um texto” (ADAMI 1995, p. 14).
No caso de uma adaptação, Adami (idem) acredita haver, no mínimo, três planos: o da história, o do discurso e o da narração, pois é dentro desses universos de partida que
“recriamos, construímos e desconstruímos situações, ações, vida de personagens, espaços”.
Por isso, é importante saber manipular a carga ideológica que o texto de partida traz consigo, que é percebida pelo universo imagético-discursivo, que o autor construiu, utilizando, também, o tempo e o espaço como fundamentação da sua história.
Sabemos que o elemento “tempo” é essencial na construção de qualquer narrativa, seja literária, fílmica, televisual. Esse fator acaba modificando os caminhos de todas as estruturas de um texto, internas ou externas a ele. O tempo é, portanto, um agente de muita importância para a realização de uma adaptação, por ser o responsável pela melhor compreensão da dimensão ficcional. O tempo é inseparável do mundo imaginário, vez que acompanha o estatuto irreal dos seres, objetos e situações.
Nesse contexto, a transposição de uma obra literária para a televisão, quanto aos aspectos estéticos, é marcada por diferenças entre a linguagem escrita e a audiovisual. Lembraremos, neste trabalho, três dessas diferenças, por consideramos fundamentais. A primeira, e mais evidente, é que na linguagem televisiva toda informação deve ser visível/audível. Isso parece óbvio, porém, quem escreveu um roteiro sabe como é difícil
evitar a tentação de escrever. Vejamos um ligeiro exemplo na seguinte frase: “João acorda e lembra de Maria”. Isso é muito fácil de escrever, porém, difícil de filmar. Palavras como “pensa”, “sente”, “esquece”, “lembra” e “percebe”, presentes em qualquer romance, são
complicadas para o roteirista, que só pode escrever o que é visível. A segunda diferença, e que diz respeito à natureza dessas linguagens, refere-se ao conhecimento prévio que o leitor tem da realidade, base estruturante de toda narrativa. Isso significa que na literatura, o escritor nos informa apenas aquilo que julga ser necessário, enquanto o leitor imagina todo o resto.
Na televisão, os roteiristas e cineastas precisam fazer grande parte do trabalho do leitor. Qual é a cor das paredes do quarto? Como é a luz do quarto? Há uma janela? A luz entra pela janela? Através das cortinas? Há móveis no quarto? A cama é de madeira? Há lençóis? O cineasta precisa, imediatamente, tomar essas decisões, enquanto o autor poderá adiá-las. Vimos, portanto, que a ordem em que as informações são liberadas na televisão ou na literatura é bem diferente.
O terceiro aspecto a ser considerado é quanto à realização do trabalho. A televisão é um trabalho coletivo, ao contrário do texto escrito, quase sempre expressão de um indivíduo. Configura-se, assim, uma questão de autoria. Em um roteiro para televisão,
temos que considerar o “olhar” do diretor de imagem, quando sublinha ou acrescenta esta
ou aquela cena, amplia ou reduz certo personagem, em especial. Sendo assim, a autoria é multiplicada, dada a participação da equipe envolvida na realização da obra.
A passagem de um texto literário para um texto televisivo pressupõe uma operação intertextual específica. Para tanto, objetivamos definir a intertextualidade, segundo Bakthin
(1992), como o “diálogo de um texto com outros”. Porém, um leitor só irá notar a presença
da intertextualidade, seja na literatura, na televisão e no jornalismo, se possuir leituras anteriores dos originais, que forneçam subsídios na identificação dos cruzamentos dos textos, caso contrário, podem não notá-los.
Quando explicitada nos próprios créditos, a adaptação revela a sua condição de obra resultante do que podemos chamar de uma relação intertextual. Mas, pode ocorrer dos adaptadores fazerem apenas referência à obra original, sem o uso do termo. Em ambos os casos, os realizadores se reservaram certo direito à liberdade na adaptação e, nesse sentido, deixaram claro que se trata de uma relação intertextual menos comprometida do que se
espera, quando os créditos dizem: “adaptação de...”. Qualquer que seja a gradação explícita
nos créditos, irá sempre diferenciar a obra adaptada da original.
Tratando-se de uma prática que atravessa os tempos e se mantém constante, não é, pois, de admirar, que a adaptação literária tenha despertado interesse à televisão e que, ainda hoje, motive diversas produções nesse domínio.
Seguindo linhas de investigação diversas, é significativo notar que existem várias abordagens teóricas relativas à adaptação literária, fenômeno tão vasto e com implicações de natureza diversa. Bulger (2004) refere-se a esse processo como sendo “transtextualidade literária ou adaptação”, o que considera como sendo um território de diversidade analítica,
no qual é difícil chegar a consensos, seja em relação a normas, metodologias e classificações tipológicas.
Por essa razão, Bello (2005, p. 156) considera mais prudente falar de “tipos de
adaptações”, em vez de usar o termo geral “adaptação”, uma vez que, para a autora, a palavra “adaptação” pode reportar-se a processos de transposição intersemiótica
substancialmente diferentes. Tendo noção de que a adaptação é um processo complexo de
dialogismo intertextual, Comparato (1995, p. 133) considera mais prudente falar de “graus de adaptação” do que em apenas adaptação, em sentido geral. Consideramos que o
fundamental da catalogação da adaptação em diversas tipologias é que o ato interpretativo de concretização de uma obra em um novo meio pode assumir diversas formas, dependendo da condição inventiva de quem redimensiona o texto original em um novo produto.
Sendo assim, podemos entender a transmutação do texto escrito para o produto audiovisual como uma interação dinâmica, ou, nos termos de Souza (2000), como um
fenômeno “muldimensional capaz de gerar novas funções sígnicas e de conferir, por
transfiguração/reconfiguração, mobilidade semiótica nas marcas pragmo-semânticas do texto literário”. (SOUZA, 2000, p. 67). Em um sentido semelhante, Xavier (2000) destaca que passaram a dar primazia ao diálogo inter-artes e à interpretação livre aos romances.
Observamos, por conseguinte, que é mais provável pensar a adaptação como processo dinâmico ou dialogismo intertextual, do que continuar seguindo as abordagens que associam a adaptação a termos como fidelidade e tradução. Na verdade, lidamos com um processo que implica na relação inter-artes que, todavia, não destrói e nem transforma a integridade de nenhuma das linguagens envolvidas, mas situam-se em domínios distintos.
Concordamos, então, na esteira de Bello (2005, p.160), que a adaptação é um
processo de regeneração ou um “encontro renovado” entre formas de expressão diferentes,
porém, julgamos significativo observar que todas as transformações geradas no seio da adaptação literária se processam levando-se em conta alguns aspectos fundamentais, como as características específicas de cada meio, e outros filtros, como as questões político- ideológicas, imposições de produção, considerações econômicas, motivos tecnológicos, todos eles envolvidos na gramática transformacional da adaptação.
Como vimos, a adaptação ocupa um lugar em um determinado contexto sociocultural que a determina e envolve uma diversidade de interesses, sendo, por isso, um processo estético que mediatiza motivações ideológicas, crenças, valores, sistemas de
ideias, atitudes e padrões comportamentais. É, portanto, um fenômeno cultural abrangente, pois na criação resultante da transformação, haverá espaço para uma referência inevitável ao texto original, e mesmo aqueles que nunca leram a obra escrita, são remetidos para ela através do produto adaptado.