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A estrutura dual da Língua Brasileira de Sinais

A dupla articulação é uma das propriedades comuns a todas as línguas, que apresentam unidades mínimas distintivas sem significado — no caso das línguas oral- auditivas, os fonemas — e unidades mínimas com significado (os morfemas). A LIBRAS é uma língua de natureza gesto-visual (ou visuoespacial), pois a realização desta língua não se dá por meio dos canais oral-auditivos, mas por meio de sinais corporais manipulados no espaço de enunciação (na frente do corpo, em uma área limitada pelo topo da cabeça e que se estende até os quadris), que são captados pela visão. Os sinais, que são produzidos por movimentos das mãos e, às vezes, pela combinação de movimentos das mãos e expressões faciais e/ou corporais, são equivalentes às palavras das línguas oral-auditivas, constituídas por sons produzidos pelo aparato articulatório. Segundo Felipe (2001, p. 20), os sinais “são formados a partir da combinação do movimento das mãos com um determinado formato em um determinado lugar, podendo este lugar ser uma parte do corpo ou um espaço em frente ao corpo.” Alguns sinais apresentam também traços distintivos constituídos por expressões faciais e corporais.

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FIGURA 1 – Espaço de realização dos sinais na LIBRAS. (Adaptado de Langevin e Ferreira Brito, 1988, p. 01. In:

Quadros, 1997, p.49).

A formação dos sinais obedece ao que os estudiosos das línguas de sinais denominam de parâmetros, que são equivalentes aos fonemas e, em alguns casos, aos morfemas5 de uma língua oral-auditiva. Stokoe (1960), lingüista norte-americano que descreveu a estrutura e o funcionamento da ASL, sugeriu que esses parâmetros, que são as unidades mínimas formadoras dos sinais, fossem denominados de ‘quiremas’, termo que consideramos mais apropriado, uma vez que o radical quiro- (do grego mão) alude a um fenômeno que pode ser realizado por meio dos parâmetros das línguas de sinais, ao contrário de fono- (do latim som).

Quadros; Karnopp (2004) informam que a adoção do termo ‘fonema’ se justifica pela necessidade de se estabelecerem paralelos entre as línguas de sinais e as línguas oral- auditivas, pois, apesar da diferença existente no que concerne à modalidade de produção e de recepção, as línguas de sinais compartilham princípios subjacentes de construção com as línguas orais. Conhecendo a luta dos surdos e dos pesquisadores interessados na educação desses indivíduos em fortalecer a idéia de que a LIBRAS é uma língua, assim como em obter a aceitação da comunidade científica, acreditamos que essa aproximação terminológica com aspectos das línguas orais pode até ajudá-los a legitimar a causa defendida. Embora compreendamos os motivos de Quadros; Karnopp e concordemos com a necessidade de estudos contrastivos, consideramos que a proposta terminológica de Stokoe, que marca a diferença entre os dois tipos de sistemas lingüísticos, longe de ser danosa — porque mais apropriada inclusive a comparações — é mais pertinente a uma análise científica.

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Os parâmetros da LIBRAS descritos abaixo, de acordo com Felipe (2001, p. 20-21), são:

Configuração das mãos - são formas das mãos que podem ser da datilologia (alfabeto

manual) ou outras formas feitas pela mão predominante (mão direita para os destros), ou pelas duas mãos do emissor ou sinalizador.

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FIGURA 2 – As 46 configurações de mãos (CMs) da Língua de Sinais Brasileira. In: Ferreira-Brito e Langevin (1995)

apud Quadros; Karnopp (2004, p. 53).

• Ponto de articulação - é o lugar onde incide a mão predominante configurada, podendo esta tocar alguma parte do corpo ou estar em um espaço neutro vertical (do meio do corpo até a cabeça) e horizontal (à frente do emissor).

• Movimento - os sinais podem ter movimento ou não.

• Orientação/direcionalidade - os sinais têm uma direção com relação aos parâmetros acima. Assim os verbos IR e VIR se opõem em relação à direcionalidade.

• Expressão facial e/ou corporal - muitos sinais têm como traço diferenciador também a expressão facial e/ou corporal, como os sinais ALEGRE e TRISTE. Há sinais feitos apenas com a bochecha, como LADRÃO.

alguns casos, com uma mesma configuração de mão e com um mesmo movimento, mas cuja realização se dê num ponto de articulação diferente, temos sinais diferentes. Essa propriedade dos sinais é semelhante à propriedade dos fonemas nas línguas oral-auditivas. Como no caso em que a mudança de timbre, por exemplo, da vogal da última sílaba das palavras colher (ato de fazer colheita) [ko‘λeR] e colher (utensílio de mesa) [ko‘λ∈R] é o que indica o referente, os sinais APRENDER e SÁBADO distinguem-se quanto à locação: o primeiro é realizado à frente da testa; o segundo, à frente da boca.

_________________________________________________________________________ FIGURA 3 – Exemplo de um par mínimo na Língua Brasileira de Sinais: sinais que se opõem quanto à

locação. In: Quadros; Karnopp (2004, p. 52).

Os parâmetros e os sinais constituem a dupla articulação da LIBRAS, uma das propriedades comuns a todas as línguas, que apresentam unidades mínimas sem significado e unidades mínimas com significado. Segundo Quadros; Karnopp (2004, p. 53), o fato de as línguas de sinais apresentarem estrutura dual, apesar de o conjunto de articuladores ser completamente diferente daquele das línguas orais, atesta a abstração e a universalidade das línguas humanas. Outra consideração das autoras para sustentar o status de língua à LIBRAS e às demais línguas de sinais existentes em todo o mundo é a seguinte:

As língua de sinais, conforme um considerável número de pesquisas, contêm os mesmos princípios subjacentes de construção que as línguas orais, no sentido de que têm um léxico, isto é, um conjunto de símbolos convencionais, e uma gramática, isto é, um sistema de regras que regem os usos desses símbolos. Existe também a hipótese de que a forma das línguas de sinais é determinada pela gramática universal inata e pela interação entre a percepção visual e a produção gestual. (2004, p. 48)

Para a produção de palavras que não têm sinais equivalentes em LIBRAS, ou para a apresentação de nomes próprios, existe o alfabeto manual, cuja utilização se dá por meio

da datilologia.

_________________________________________________________________________ FIGURA 4 – Alfabeto manual. In: Felipe (2001, p. 24).

Assim como nas línguas oral-auditivas, a LIBRAS pode ser descrita nos níveis morfológico e sintático, que apresentam particularidades devido à sua natureza gesto- visual. Discorreremos sobre alguns aspectos da morfologia e da sintaxe da Língua Brasileira de Sinais nas duas próximas seções deste capítulo.