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Alguns aspectos da morfologia da LIBRAS

Os sinais pertencem às categorias lexicais ou às classes de palavras: substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, pronomes, numerais, preposições e conjunções. Em LIBRAS, não há artigos. Quadros; Karnopp (2004, p. 87) informam que a LIBRAS tem um sistema de criação de novos sinais em que as unidades mínimas com significados, os morfemas, são combinadas.

Entretanto, as línguas de sinais diferem das línguas orais no tipo de processos combinatórios que freqüentemente cria palavras morfologicamente complexas. Para as línguas orais, palavras complexas são muitas vezes formadas pela adição de um prefixo ou sufixo à raiz. Nas línguas de sinais, essas formas resultam freqüentemente de processos não-concatenativos em que uma raiz é enriquecida com vários movimentos e contornos no espaço de sinalização.

Existem, na LIBRAS, os processos de derivação e de composição para a formação de sinais. O processo de derivação de nomes a partir de verbos — pouco notável no uso da língua — se dá por meio da mudança do tipo de movimento. O movimento dos nomes repete e encurta o movimento dos verbos. Abaixo, a figura em que apresentamos o exemplo desse tipo de processo, com os sinais de TELEFONAR e TELEFONE, com a indicação do movimento encurtado.

_________________________________________________________________________ FIGURA 5 – Exemplo do processo de derivação em LIBRAS. In: Quadros; Karnopp (2004, p. 97).

Consideramos importante ressaltar que a derivação não se mostra tão clara no uso cotidiano da LIBRAS. A maioria dos surdos que conhecemos se vale de apenas um sinal

para diferentes palavras cognatas, pertencentes a diferentes classes de palavras. Um mesmo sinal pode significar, por exemplo, brincar, brincadeira ou brincalhão. Apenas recorrendo ao contexto é possível identificar a palavra em português a que o sinal seria equivalente em determinado momento de enunciação.

Já o processo de composição na LIBRAS, que, tal como nas línguas orais, é autônomo e se dá pela junção de duas ou mais bases preexistentes na língua para a criação de um novo vocábulo, é muito usual nas interações cotidianas. Assim como no português, Quadros; Karnopp (2004, p. 106) informam que “o distanciamento do todo e o significado das partes é normal nas formas compostas”. A figura a seguir exibe o sinal BOA-NOITE, composto a partir dos sinais BO@ e do sinal NOITE.

_________________________________________________________________________ FIGURA 6 – Exemplo do processo de composição em LIBRAS. In: Quadros; Karnopp (2004, p. 97).

Quanto aos mecanismos de flexão na LIBRAS, usam-se os sinais de HOMEM e MULHER antes ou após o sinal equivalente à palavra em português, para indicar, respectivamente, o gênero masculino e o gênero feminino. Para a flexão de número dos nomes, existe um sinal (que significa “muitos”) para a flexão do plural. Existe, ainda, a possibilidade de indicação de plural por meio da repetição do sinal.

Em relação às classes de palavras, em LIBRAS existem sinais equivalentes a muitos substantivos, adjetivos e advérbios do português. Como já afirmamos, não existem artigos na Língua Brasileira de Sinais. Já para os verbos, em LIBRAS, existem sinais específicos equivalentes a vários verbos dinâmicos, mas não há sinais para os verbos não-dinâmicos, ou estativos. Os verbos, em LIBRAS, sempre aparecem em formas simples. Não há locuções verbais.

Os verbos são classificados em LIBRAS em direcionais e não-direcionais. Apenas os verbos direcionais, como ‘ajudar’, ‘dizer’, ‘dar’ e ‘entregar’, dispõem do mecanismo de flexão, equivalente às desinências número-pessoais em português, que se dá por meio do recurso à direção do movimento, em que se marca, no ponto inicial do movimento o sujeito e, no ponto final, o objeto direto, o objeto indireto ou o adjunto adverbial de lugar. Para indicar a concordância número-pessoal nos verbos não-direcionais, é preciso se valer da apontação ou da datilologia.

___________________________________________________________________ FIGURA 7 – Exemplo do processo de composição em LIBRAS. In: Quadros; Karnopp (2004, p. 97).

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FIGURA 8 - Exemplo 2 de verbo direcional. Nota-se que o corpo acompanha a direção do olhar. In:

Quadros; Karnopp (2004, p. 158).

Os sinais manuais que equivalem aos verbos em português são freqüentemente acompanhados por expressões faciais que podem ser consideradas gramaticais, como a marcação da concordância gramatical através da direção dos olhos, marcação de negativas

e interrogativas por meio do movimento de sobrancelhas.

É importante salientar que não há flexão modo-temporal, e os sinais equivalem sempre à forma do infinitivo em português. Pode-se marcar a noção de tempo, por meio do uso dos sinais equivalentes às palavras ‘ontem’, ‘hoje’ e ‘amanhã’. Também é possível indicar o aspecto verbal, de continuidade, por exemplo, por meio do recurso de repetição ou de intensificação do movimento do sinal. Ainda existe um dado importante a ser informado aqui: alguns verbos em LIBRAS dispõem de dois sinais, sendo um para sentenças afirmativas e outro para sentenças negativas. Assim, verbos, como ‘gostar’, ‘saber’ e ‘conhecer’, dispõem de sinais que incorporam a partícula negativa.

______________________________________________________________________ FIGURA 8 - Exemplo de sinal com incorporação da negação. In: Quadros; Karnopp (2004, p. 110).

Em LIBRAS, a apontação ostensiva para um referente específico ou para um ponto no espaço em que se estabelece convencionalmente o posicionamento de um referente ausente no momento da interlocução é o recurso existente para alusão às pessoas do discurso, que, em português, podem ser representadas lingüisticamente por substantivos ou por pronomes. A apontação funciona para representar os pronomes pessoais de 1ª, 2ª e 3ª pessoas sem distinção entre as categorias de pronomes retos e oblíquos. No singular, o sinal para todas as pessoas é o mesmo, o que difere um do outro é a orientação direcional da mão. Segundo Felipe (2001, p. 32),

o sinal para “eu” é um apontar para o peito do emissor [...], o sinal para “você” é um apontar para o receptor [...] e o sinal para “ele/ela” é um apontar para uma pessoa que não está na conversa ou um lugar convencionado para uma terceira pessoa que está sendo mencionada.

Esses sinais são compreendidos pelos usuários da LIBRAS como equivalentes aos pronomes ‘eu’, ‘tu’ ou ‘você’, ‘ele’, ‘ela’. Diferentemente do português, os pronomes pessoais de terceira pessoa não possuem marca de gênero. Em se tratando do plural, há um sinal específico que representa a 1ª pessoa (nós), que também pode ser representada, quando se deseja indicar a quantidade de pessoas a que o pronome se refere, por meio da apontação com a mão no formato dos numerais dois, três ou quatro. Essa estratégia também pode ser usada para fazer-se referência às 2ª e 3ª pessoas do plural. Pode-se, ainda, indicar o plural de qualquer uma das três pessoas do discurso, por meio da apontação às pessoas mencionadas mais o sinal GRUPO. Em LIBRAS, não existem sinais específicos para pronomes de tratamento. É usada, também, a apontação em direção à segunda pessoa ou a um local estabelecido no espaço que represente a segunda pessoa quando ausente.

______________________________________________________________________ FIGURA 9 – Estabelecimento de formas pronominais. In: Quadros; Karnopp (2004, p. 131).

De acordo com Felipe (2001, p. 33), os pronomes demonstrativos e os advérbios de lugar6, que estão relacionados às pessoas do discurso e representam, na perspectiva do

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emissor, aquilo, quem ou o lugar que está perto do emissor, próximo ao receptor, ou distante de ambos, têm a mesma configuração de mãos dos pronomes pessoais. O contexto já os diferencia dos pronomes pessoais, mas os pontos de articulação e a direção do olhar são diferentes.

TABELA 2 - ESPECIFICIDADES DOS PRONOMES PESSOAIS, PRONOMES DEMONSTRATIVOS E ADVÉRBIOS DE LUGAR EM LIBRAS

PRONOMES PESSOAIS PRONOMES DEMONSTRATIVOS OU ADVÉRBIOS DE LUGAR

EU (olhando para o receptor) EST@ / AQUI (olhando para a coisa/lugar apontado, perto da 1ª pessoa)

VOCÊ (olhando para o receptor) ESS@ / AÍ (olhando para a coisa/lugar apontado, perto da 2ª pessoa)

EL@ (olhando para o receptor) AQUEL@ / LÁ (olhando para a coisa/lugar distante apontado)

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Adaptado de Felipe (2001, p. 33).

Os pronomes possessivos, como os pessoais e os demonstrativos, também não possuem marca para gênero e estão relacionados às pessoas do discurso e não à coisa possuída, como acontece em português. Segundo Felipe (2001, p. 35), para a 1ª pessoa (ME@), há duas configurações de mão: “uma é a mão aberta com os dedos juntos, que bate levemente no peito do emissor; a outra é a configuração da mão em ‘P’ com o dedo médio batendo no peito – ME@-PRÓPRIO”. Para a 2ª e 3ª pessoas, a mão também tem a configuração em ‘P’, mas o movimento se dá em direção à pessoa com quem se fala, ou à pessoa que estiver sendo mencionada. De acordo com Felipe, “não há sinais específicos para os pronomes possessivos no dual, trial, quadrial e plural (grupo). Nestas situações são usados os pronomes pessoais, correspondentes. Exemplo: NÓS FILH@ ‘nosso(a) filho(a)’”.

Quanto aos pronomes interrogativos em LIBRAS, Quadro; Karnopp (2004) informam que os sinais manuais estão sempre associados a marcas não-manuais de franzir da testa e arqueamento de sobrancelhas. Os pronomes interrogativos ‘onde’ e ‘quando’ têm sinais específicos na LIBRAS e aparecem, geralmente no início das sentenças interrogativas. O pronome ‘onde’ também pode aparecer no final de uma sentença interrogativa, assim como o pronome ‘quem’, quando usado no sentido de “quem-é” ou “de quem é”. Já os pronomes ‘que’ e ‘quem’ dispõem de um mesmo sinal, que consiste na apontação feita por meio da mão semi-aberta, com os dedos indicador e polegar juntos

dirigindo-se à coisa ou pessoa referida, ou a um local no espaço convencionado para o referente ausente no ato de interlocução.

Quanto aos numerais, existem sinais tanto para os cardinais, quanto para os ordinais de 0 a 9, podendo ser combinados para a expressão de numerais maiores que 9. Há sinais diferentes para a referência à idade, à quantidade, aos dias da semana, aos meses do ano e a horas.

Em relação às palavras de ligação, embora não tenham sido citadas por Quadros; Karnopp, uma participante voluntária desta pesquisa, pedagoga surda usuária de LIBRAS com certificação do Prolibras (Exame de Proficiência em Língua Brasileira de Sinais), que prestou assessoria para esta pesquisa, informou que existem em LIBRAS sinais equivalentes às conjunções ‘mas’, ‘ou’, ‘porque’, ‘por isso’, ‘se’ e ‘como’; e sinais equivalentes às preposições ‘até’, ‘após’, ‘com’, ‘contra’, ‘sem’ e ‘sobre’. Embora existam em LIBRAS, esses sinais são pouco usados nas situações de interação, o que cria um sistema bastante peculiar na estrutura dessa língua quanto aos fenômenos de coordenação e subordinação de termos e de orações.