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O grande interesse do ser humano por aspectos da linguagem e das línguas, revelado por estudos realizados desde a Grécia Antiga (II e III séculos AC), justifica-se pela importância desses fenômenos para nossa sobrevivência. A capacidade de linguagem é o que distingue o homem dos outros animais. É o que lhe permitiu transfigurar o espaço à sua volta, dominar a natureza, criar culturas, fazer ciência. A faculdade da linguagem foi o que possibilitou ao homem a construção de sistemas altamente complexos para a comunicação com os seus semelhantes, para poderem cooperar e superar, ao longo do tempo, muitos dos obstáculos que a natureza lhes impôs.

Linguagem e língua, portanto, não se confundem. A palavra ‘linguagem’ pode ser tomada como um hiperônimo a que estão subordinadas categorias de linguagens de diferentes naturezas, incluindo-se as línguas naturais. Lyons (1987, p. 16) explica que a palavra ‘linguagem’ “aplica-se não apenas ao inglês, malaio, suaíli etc. — ou seja, ao que todos concordariam em chamar adequadamente de línguas — mas a uma série de outros sistemas de comunicação, notação ou cálculo, sobre o qual se possa discutir.” A palavra linguagem é também freqüentemente usada, e não apenas em nosso idioma, para referir outros sistemas de comunicação, de acordo com o mesmo autor, “tanto humanos como não-humanos, que são sem dúvida naturais ao invés de artificiais, mas que não parecem linguagens no sentido estrito do termo.” Assim, usa-se a palavra ‘linguagem’ em expressões como “linguagem corporal” e “linguagem das baleias”. A palavra ‘língua’ designa todo sistema abstrato de signos arbitrários e convencionais, de que dispõem as comunidades humanas para o modo de cooperação por meio da interação verbal.

A maioria das línguas humanas são de natureza oral-auditiva, pois se realizam por meio do sistema articulatório-perceptual, que possibilita a interação através da fala, captada pela audição. Secundariamente, muitos grupos humanos também usam a escrita como modalidade de realização de suas línguas, embora ainda haja sociedades ágrafas. Mas a escrita é apenas complementar à fala (MARCUSCHI, 2001). Não é um modo natural de realização de uma língua. Evidentemente, tal como afirma Lyons (1987, p. 24), “a língua falada é mais básica do que a língua escrita”, o que, segundo o mesmo autor, não significa que a língua deva ser identificada com a fala, uma vez que esta é apenas um dos meios através dos quais a língua se realiza.

imposta pela natureza, mas o autor diz que a natureza do signo convencional é indiferente. Para ele, a “questão do aparelho vocal se revela, pois, secundária no problema da linguagem.” Por outras palavras, apesar de supor que o modo natural de realização da língua se dê por meio da fala, Saussure admitiu que o homem pode se valer de outro meio para realizar a língua, os gestos. Esse ponto de vista de Saussure é bastante pertinente para ser tomado por nós como ponto de partida para a explicação do fato de que a LIBRAS, assim como as outras línguas de sinais, é uma língua.

A LIBRAS é a língua de sinais utilizada pelas comunidades surdas brasileiras. Em 2003, foi reconhecida pelo Senado brasileiro como meio legal de comunicação e expressão das comunidades surdas do país. A LIBRAS é apenas uma das línguas de sinais atualmente existentes. Cada país tem uma língua de sinais. Existem, portanto, a língua de sinais americana, a língua de sinais francesa, a língua de sinais britânica, entre outras, que são diferentes entre si. No Brasil, além da LIBRAS, existe a Língua de Sinais Urubus-Kaapor, utilizada pelos índios da tribo homônima, que vivem na Floresta Amazônica, numa parte situada ao sul do estado do Maranhão, com alto índice de surdez.

Os leigos acham que uma língua de sinais é apenas uma mistura de pantomima e de gesticulação, que pode ser decifrada por observadores não familiarizados com essas línguas e por meio da qual se pode interpretar, de modo precário, uma língua oral-auditiva. O aspecto da LIBRAS que induz a essa concepção diz respeito ao modo de expressão da língua de sinais, que é gesto-visual. No lugar das palavras, constituídas por sons produzidos pelo aparato articulatório, existem os sinais produzidos por movimentos das mãos e, às vezes, pela combinação de movimentos das mãos e expressões faciais e/ou corporais, que são captados pela visão. O fato é que a LIBRAS, assim como o português, o inglês e o francês, é um sistema abstrato de signos arbitrários e convencionais, de que dispõem as comunidades surdas brasileiras para o modo de cooperação por meio da interação verbal.

Para as pessoas em geral, o único modo natural de realização de uma língua é a fala, mas há estudos que comprovam o contrário. Pesquisas sobre aquisição da linguagem demonstram que é principalmente por meio da vocalização (choro e balbucio) que os bebês interagem com os adultos à sua volta, desde os primeiros momentos de sua vida. Os gestos e as expressões faciais e/ou corporais também funcionam como meio de interação entre as crianças da mais tenra idade e as pessoas que lhes estão próximas. À medida que a fala ganha contornos mais específicos, os gestos e as expressões faciais assumem estatuto

complementar ao meio de expressão vocal, por isso mesmo denominados recursos paralingüísticos. Contudo, na impossibilidade do desenvolvimento da fala, tal como ocorre com crianças surdas, paulatinamente, os movimentos corporais e as expressões faciais passam a ser tomados por essas crianças como meio primordial de expressão lingüística. Na pesquisa sobre aquisição da linguagem por bebês surdos e bebês ouvintes, realizada por Petitto; Marantette (1991), as pesquisadoras observaram que dois modos de expressão da capacidade de linguagem — vocal e gestual — são comuns a bebês surdos e a bebês ouvintes. O resultado dessa pesquisa indica que a maturação da capacidade humana da linguagem pode não estar ligada a um mecanismo específico de realização da língua. Por outras palavras, essa seria uma capacidade amodal, ou seja, que pode ser realizada através de outro meio de expressão, que não o oral-auditivo, mas o gesto-visual.

Petitto; Marantette coletaram, em 1991, os dados de cinco crianças com idades de 10 a 14 meses. Duas crianças eram surdas profundas, filhas de surdos e estavam em processo de aquisição da Língua de Sinais Americana (ASL); as outras três crianças ouvintes, filhas de ouvintes, em processo de aquisição da língua falada e sem nenhuma exposição a uma língua de sinais. As pesquisadoras constataram que tanto o balbucio oral, quanto o meio de expressão gestual, que as pesquisadoras nomearam — estabelecendo uma analogia com a vocalização — de balbucio manual, são comuns a crianças surdas e a crianças ouvintes até determinado estágio de aquisição da linguagem e que cada uma delas desenvolve o balbucio da sua modalidade. É importante pôr em relevo que as autoras dessa pesquisa ressaltam que o desenvolvimento do balbucio manual só se dá em bebês surdos profundos em processo de aquisição de língua de sinais, pois, segundo as pesquisadoras, é o tipo de input que favorece esse desenvolvimento. Nos bebês surdos, foram detectados dois tipos de balbucio manual: o balbucio silábico, que apresenta combinações que fazem parte do sistema das línguas de sinais, análogo ao sistema fonológico de uma língua oral auditiva, e a gesticulação, que não apresenta organização interna.

Mas o que há de comum entre a LIBRAS e as línguas orais-auditivas? Primeiramente, a LIBRAS, assim como as demais línguas de sinais, reflete a capacidade psicobiológica humana para a linguagem. Quer dizer, na impossibilidade de desenvolver a capacidade de fala, as pessoas desenvolvem outra forma de expressão, “devido à necessidade específica e natural dos seres humanos de usarem um sistema lingüístico para expressarem idéias, sentimentos e ações”. (QUADROS, 1997, p. 47). Além disso, as

conclusões de Petitto; Marantette apontam outro importante aspecto a ser aqui abordado: o da organização interna das línguas de sinais.

As autoras supracitadas distinguiram combinações de sinais de gestos aleatórios. As combinações de sinais apresentam organização interna, ou seja, funcionam de acordo com regras de um sistema. Nas primeiras pesquisas sobre línguas de sinais, realizadas com a ASL (American Sign Language), na década de 60, Stokoe observou que os sinais não eram imagens, mas símbolos abstratos complexos, com uma complexa estrutura interior. O aspecto da iconicidade, que supostamente estaria na base da formação de todos os sinais de uma língua gesto-visual, não dá conta da constituição da totalidade dos signos de línguas dessa natureza.

Na verdade, muitos dos sinais (os signos nas línguas gesto-visuais) da LIBRAS não são icônicos, ou seja, não se parecem com os referentes que representam no discurso. Além disso, os sinais passam por mudanças ao longo do tempo e alguns sinais que são icônicos em determinada fase histórica de existência da língua podem sofrer modificações e perder o aspecto inicial, que o fazia ser formalmente semelhante ao referente que representava. Bellugi; Klima (1979) apresentaram um estudo sobre mudanças nos sinais da ASL (

American Sign Language) para verificar o papel da iconicidade nessa língua. Nesse estudo,

os autores verificaram que alguns sinais da ASL sofreram significativas modificações ao longo do tempo, decorrentes, sobretudo, das distorções nas formas dos sinais, que anularam ou mantiveram submersa sua iconicidade. Existe, pois, alto grau de arbitrariedade na constituição dos signos das línguas de sinais. Os resultados dessa pesquisa ajudam-nos a desmitificar um dos aspectos que levam as pessoas em geral a não considerarem a LIBRAS uma língua.

Outro importante aspecto que deve ser considerado para que se dê status de língua à LIBRAS é o fato de que por meio de uma língua de sinais é possível expressar idéias, sentimentos, emoções, raciocínios abstratos, agir socialmente por meio de conversação espontânea, apresentação de palestras, debates, entre outros gêneros textuais. Além disso, há o fato de que a LIBRAS apresenta variantes dialetais, assim como as línguas oral- auditivas. Em diferentes locais do país, existem sinais distintos para representar um mesmo referente, assim como existem gírias.

Poder-se-ia argumentar que por meio da mímica também é possível expressar idéias, sentimentos, emoções etc. Mas, ao contrário da mímica, a língua de sinais é um

sistema definido por padrões organizacionais mais ou menos estáveis, em que funcionam signos convencionais e arbitrários e que é usado por algumas comunidades lingüísticas para agirem socialmente. O fato de esse sistema ser compartilhado por uma comunidade e de possibilitar aos indivíduos dessas comunidades um meio de implementação de ações sociais efetivas são, a nosso ver, os aspectos mais relevantes desta exposição. A língua de sinais possibilita àqueles que enfrentariam muitas dificuldades de agirem e interagirem nos contextos sociais em que estão inseridos uma forma de acesso importante, que pode fazer muita diferença na vida dessas pessoas desprovidas de audição.