• Nenhum resultado encontrado

Uma resposta – a centralidade do Amor

e gozo do Absoluto Presente

9. Lembrança da morte: contemplar a morte poderá ser um meio possante

3.10. Uma resposta – a centralidade do Amor

Como tivemos ocasião de referir já, ao longo da nossa obra, quer a mística cristã quer o sufismo insistem no amor, como foco central de toda a União Mística.

Amar “alguém” é gostar muito que esse “alguém” exista e tudo fazer para que esse “alguém” seja cada vez mais feliz e completo. O amor não é anó- nimo, nem impessoal. Esta é a experiência vital de todo o ser humano e que o místico diz padecer, face à intensidade com que a vivencia. Porque, para o místico, nesta centralidade do amor, a dimensão do gozo da presença do Amado, felicidade do amante, é, em igual proporção, o sofrimento da ausência não suportável do Ausente. O amor místico não suporta a ausência, por- quanto ela poderá indicar não só o abandono do Amado, mas também o falhanço de toda a sua expressão de amor e de todo o caminho percorrido para o seu encontro. O amor confirma, assim, não só a existência do amante, como a sua própria identidade e felicidade. A centralidade do amor liga-se, aqui, à intensidade, que nem a razão nem a linguagem humana conseguem traduzir, apenas afirmar na expressão joanina:

Estas Canções foram compostas no amor de abundante inteligência mística, por isso não se poderão explicar exaustivamente (…) A sabedoria mística, que se comunica por amor …, não precisa de ser perfeitamente entendida para causar

na alma efeitos de amor e afeição. É como na fé: amamos a Deus sem O enten- der.

(S. João da Cruz, CB prol. 2)

Para o místico, o amor surge como um processo intranquilo; não surge como uma mudança sossegada, realizada de forma racional, paulatinamente “sensata” passo a passo. Pelo contrário, o místico vive o amor que derruba os ideais do equilíbrio progressivo, da prudência, do desabamento do já ante- riormente fixado. É este o desassossego de um tu e de um eu. É o “sou eu e tu”, que o místico descobre na dimensão do amor, segundo Pitaka (1992).

Há uma geografia do amor, característica nestes místicos; caminhos que denotam a centralidade gravitante do amor, em que se movem o Divino e ser humano, num saírem de si, cada um da sua solidão, para o encontro de amor. Tomemos, como exemplo, a geografia do amor de S. João da Cruz.

Na geografia do amor sanjoanina, expressa no “Aonde Te escondeste?” (CB 1,1) e na procura pelo seu Amado por montes e ribeiras, bosques planí- cies… (CB 2-4), podemos desvendar, no discurso intenso que utiliza, o sofri- mento da sua agapologia mística: a aventura da sua vida, porque “irá” à pro- cura do Amado (CB 3, 2); adoece, porque sofre a ausência do Amado, não por doença corporal; pena, porque vive esta angústia interna, uma ferida espiri- tual da alma; morre, porque sente-se fora de si, descentrado do amor que a ausência provoca. O amor, assim sendo, transforma-se mais uma vez, no ato místico, como o único meio para conectar os dois, homem e Deus (Kim, 2006).

Pitaka (1992) apresenta-nos a expressão de S. João da Cruz “buscando os meus amores” (CB 3, 1) como o amor capaz de se converter em força cria- dora. Diz-nos o autor que, aqui, o místico surge não como uma mulher repri- mida, escrava, vacilante, aguardando à porta de casa, esperando que lhe sejam resolvidos os seus problemas, mas pelo contrário, como uma mulher (sujeito) que se sabe dona de si mesma e que expõe, abertamente, o seu projeto e pro- grama de vida. Do saí inicial de “atrás de ti clamei” de (CB 1,1) ao “irei por esses montes e ribeiras”, ganha-se, com este místico, a universalidade espacial da procura do amor: o amor faz-nos vagabundos, retira-nos do sistema orga- nizado, diz-nos Pitaka.

O místico revela, assim, o não limite humano para o amor, uma vez que legitima a ação do sujeito de objetivar que “nenhum lugar do mundo é a minha morada; em nenhum lugar habitarei para sempre, mas em tudo posso e devo plantar a minha tenda no meu caminho até Ele” (Pitaka, 1992, p. 200).

A geografia do amor joanina assenta, deste modo, na sua antropologia do amor, personifica-se. É a “pergunta” de quem ama; é o solilóquio – enquanto

forma de meditação existencial comprometida – do caminho do amor: “Ai quem virá curar-me?” (CB 6, 1), “Mas como perseveras, ó vida (…)?” (CB 8, 1-2). A geografia inicial finita do amor é transposta pela inquietação, pela pergunta, a partir de dentro, do próprio amante; é um parar e tomar cons- ciência que para descobrir os rasgos pessoais do amor, necessita da presença pessoal do amado (Pitaka, 1992). A ipseidade toma, assim, consciência da importância da existência e da necessidade da proximidade do Outro; do toque, da cura, do matrimónio, do dizer-se quanto e como se ama, na analogia mística da união. Ama-se na esperança do Amado. O místico descobre que a sua essência existe e faz-se fora, pois vive, a partir de dentro, no Outro.

O amor, na experiência mística, reúne duas propriedades: a primeira, é a essência do amor e, a segunda, é a sua operação ou manifestação:

A sede da essência do amor está somente na vontade; quanto mais vontade alguém tiver, tanto mais amor tem. Entretanto, quem tem mais vontade, se um, se outro, ninguém poderá saber; isto fica escondido na alma, porquanto Deus está escondido na profundidade da alma. (…) Mas existe também a segunda propriedade: é a manifestação ou operação do amor. Ela se faz visível como inte- rioridade, devoção e exuberância de alegria. (…) E quando estas pessoas cres- cem em amor, então não têm mais tantos sentimentos e emoções; evidencia-se então que elas possuem o amor.

(Mestre Eckhart, CE 10, in Mestre Eckhart. A mística do Ser e do Não Ter, de Leo- nardo Boff, 1983, p. 113)

Muitas vezes, os místicos sufis tentaram apresentar a interação entre o amor e o conhecimento, chegando mesmo a encarar o amor como uma forma de conhecimento (Schwartz, 2005). O amor pressupõe um conhecimento, ainda que indireto, do objeto amado. Deste modo, se entende que as últimas etapas da jornada mística sejam o amor (mahabba) – que, por vezes, assume a primazia – e a gnose (ma’rifat), gnose não alcançada pela razão discursiva – que assume, também, por vezes, a primazia face ao amor.

O amor é a estação suprema da alma e a ele está subordinada qualquer outra perfeição humana possível, assim entendia Ibn Arabi. É um amor integral, que absorve por completo a vontade humana devido à atração – o estado de “louco de amor” (Schwartz, 2005). A autora afirma, ainda, neste contexto, que a mística de amor de Ibn Arabi, “mostra-nos a profunda experiência do amor, que implica o êxtase e a dissolução do eu no insondável. Deus e a/o amada/o não são outra coisa além de maneiras intransferíveis, mas equiparáveis, de registar a emoção parti- lhada do inconcebível que resulta na aniquilação” (p. 89).

O amor é, essencialmente, o anseio por algo que permanece ausente, fazendo com que se dececione:

O Teu deleite ou o Teu suplício são os mesmos para mim, pois o meu amor a Ti não muda nem aumenta,

o meu amor terá por alvo o que Tu queiras de mim. O teu amor, como a Tua criação, é novo para mim. (Ibn Arabi, citado por Pareja, 1975, p. 325)

E é um gozo, um deleite:

Eu mesmo experimentei a infinita subtileza que se pode encontrar no amor. Sen- tes um afeto intenso (‘ishq), uma paixão penetrante (haw), um desejo ardente (shawq), um poder de amor (gharm), um esgotamento total (nuhl), uma impos- sibilidade de conciliar o sono e de saborear a comida. Não sabes em quem e por quem ocorre. O Teu amado não se mostra a ti de maneira clara. Essa é a graça mais deleitável que senti por experiência própria.

(Ibn Arabi, in Traité de l’amour, p. 49)

É um princípio cosmogónico, uma vez que do amor – qual suspiro omni- compassivo – nasce, subsiste e a ele retorna todo o universo (Schwartz, 2005). Há, em Ibn Arabi, a noção clara que o cosmos não poderá suportar o peso do Amor Divino, apesar de ter consciência que Deus lhe deu uma excessiva cota de amor, na sua experiência mística, assim como uma capacidade capaz de controlar toda a intensidade desta força, em nada igualável à do “chefe dos amantes”, Maomé.

Ibn Arabi termina o Tratado do amor com um capítulo – Designações do amante – onde nomeia as Epifanias do Ser Divino aos gnósticos amorosos, nos aposentos nupciais dos esposos, para conferir aos amantes os atributos do amor. A partir da evidente ambivalência do amante no texto, Aquele que Ama ou o que por analogia a Ele O ama, obtém-se a cartografia do caminho do amante para a Beleza, expressão suprema do Amor que conduz à visão de Deus, através das realidades por Ele feitas pelo e no Amor. Os nomes dos amantes de Deus configuram-se, assim, como expressão do itinerário da che- gada à visão unitiva do Amor: