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no conhecimento de Deus pela experiência mística

Partimos da perspetiva de que para o místico o Divino é considerado como uma referência de presença intencional ao sujeito.

No conhecimento místico, a par do conhecimento racional, intervêm as tendências e condições afetivas (Licciardo, 1965). Também a inteligência e a vontade intervêm na contemplação, pois a própria contemplação é ela mesma fruto do exercício harmónico destas duas faculdades.

A memória condensa, em si mesma, a experiência do ato humano e do “ato Divino”. À memória recorre o místico permanentemente, pois ela, para

além de mediadora entre o ato e o relato, é, também, um presente ativo da sua experiência subjetiva, é regeneradora constante da sua vida, é elemento fun- damental da leitura dos acontecimentos. Como Bion (1975, p. 23) nos relem- bra: “sempre e sempre, nomes como o ‘passado’, o ‘futuro’, ‘os velhos bons tempos’ são, na verdade, nomes de um sentimento presente, e por isso é que são tão importantes”.

2.4.6. A contemplação mística

Numa possibilidade de equacionarmos uma meta-estrutura da experiência mística, a contemplação mística surge como o ponto clímax de toda a expe- riência.

Qualquer definição do conceito “contemplar” encerra a ideia de mirar um objeto, observar atentamente, olhar com admiração, meditar sobre. A oração mística ornamenta-se ela própria como habitat estético e meditativo deste tipo de olhar. Olhar que penetra, olhar concêntrico, olhar calado. Outro tipo de olhar e observar impossibilita, na óptima mística, “ver mesmo”; isso seria, portanto, ilusão, pura imaginação. Daí a singularidade da contemplação mística, porque só ela possibilita ver e sentir a presença da Deidade, sem duvidar, sem confundir, logo sem se iludir – só contemplar.

No entender de Licciardo (1965), os místicos distinguem de forma clara o que são toques da experiência percebidos na contemplação e o que são os fenómenos extraordinários que por vezes acompanham o estado místico, sem que lhe pertençam propriamente.

A Contemplação Infusa é o lugar-momento por excelência da experiência mística. Licciardo (1965, p. 88) afirma-o desta forma:

Na contemplação, com efeito, dá-se a presença de Deus de forma sentida, capaz de comportar o seu ritmo de ausência; a irrupção das realidades sobrenaturais que afectam o fundo mesmo da alma, o conhecimento experimental correspon- dente a esta presença e a certeza e segurança moral da mesma; a impossibilidade de alcançá-la pela própria atividade e iniciativa e sobretudo a passividade da alma debaixo da ação especialíssima de Deus que a visita, …, é o rasgo funda- mental da contemplação, o que a determina propriamente no seu carácter de infusão e experimentalidade.

Partindo dos relatos místicos, é na Contemplação Infusa que se verificam as condições do conhecimento experimental da Deidade e das suas realidades. A Contemplação Infusa é “ciência de amor, (...), é ciência infusa e amorosa de Deus” (2N 18, 5) a que podemos fazer corresponder, também, o texto tere- siano Vida 27, 7-8.

2.4.7. A conaturalidade

Há na experiência mística uma particular qualidade: a conaturalidade. Esta qualidade mais não é do que a participação de facto no conhecimento da Dei- dade e das Suas realidades. Trata-se de uma qualidade que coloca o sujeito em vibração, convertendo-o num transformado, que lhe permite não intuir, não concluir, mas perceber o modo da presença.

A conaturalidade, transcendência e imediatez da contemplação é, para o místico, a causa da veracidade da experiência mística. A conaturalidade dá-lhe também a razão da “experimentalidade” (Licciardo, 1965). Há verdadeira e real- mente uma experiência, diz ainda Licciardo, “enquanto esta implica o conheci- mento de um objeto como presente, e que consiste no sofrer da alma a ação que Deus exerce sobre ela, e em perceber na razão da paixão que suporta como tér- mino daquela ação” (p. 169).

Esta qualidade de conaturalidade, deste conhecimento experimental da Dei- dade, imprime, na experiência própria do místico, o carácter da intrinsidade, da simplicidade e da inconcetualização. Isto, porque o místico entende que as suas faculdades humanas não seriam suficientes para possibilitar a vivência de tal experiência nem para expressar o que diz ter vivido. Ultrapassado o reino da imagística na mente do místico, este atinge um ponto em que nem os conceitos nem a imaginação conseguem levá-lo mais além (Armstrong, 1996).

2.4.8. O clarobscuro

A experiência subjetiva mística evoca, ainda, outra qualidade a que Licciardo (1965) designa por clarobscuro. Trata-se de uma qualidade que mistura no ato místico a dimensão do obscuro – enquanto sombra, ignorância, renúncia do saber, etc. – e a dimensão da claridade – enquanto brilhante, super lúcida, douta ignorância:

Todas as nuvens significam a escuridão da fé em que a Divindade está encoberta quando se comunica à alma. Esta escuridão acabará quando, como diz S. Paulo, o que é imperfeito acabar (1 Cor 13, 10), isto é, as trevas da fé, e vier o que é perfeito, ou seja, a luz divina.

(São João da Cruz, 2S 9, 3)

Mestre Eckhart expressa-o, de forma análoga, dizendo:

O homem não se deve deixar contentar com um Deus pensado; pois quando o pen- samento passa, assim também Deus passará. Deve-se, pelo contrário, ter um Deus substancial, que se situa muito acima dos pensamentos do homem e de todas as criaturas. (…) Quem assim possuir Deus no Ser, receberá Deus divinamente, e Deus

brilhará para ele em todas as coisas. (…) Deus cintila sempre nele, nele cumpre-se uma renúncia libertadora e imprime-se nele o seu Deus amado, presente.

(Mestre Eckhart, Tratado do discernimento, in Mestre Eckhart, 2009, Sermões e Tra- tados, pp. 40-41)

E, no sufismo, a inquietação do clarobscuro é dito desta forma:

“Os meus bem-amados, onde estão eles?” Eu te suplico: “Onde estão eles?”

Em imagem avistei-os, Mostraste-mos tu de verdade?

Tantas vezes, tantas vezes os procuro, Tantas vezes, peço os seus favores

Tranquilizado pela proximidade/pelo afastamento, Temo pelo meu aniquilamento.

Possa a minha felicidade se interpor entre eles e a distância, A fim de que a vista se alegre,

E que cesse: “Onde estão eles”.

(Ibn Arabi, in Le Chant de l’ardent désir, 13, p. 41)

Todas estas características, que consideramos transversais na experiência mística, estão todas elas entrelaçadas no coração do místico. E, por serem estas características tão claras nos textos místicos por nós estudados e par- tindo da perspetiva que, de facto, há pontos em comum entre as diferentes místicas independentemente da cultura e crença a elas associadas, entende- mos ser de sustentar a ideia de uma possibilidade estrutural da experiência mística, no que toca à analogia do conhecimento do Absoluto. Autores como Licciardo (1965), Estarriol (1983), Baruzi (2001), Schwartz (2005), entre outros, seguem esta mesma ideia.

O discurso místico parece, de facto, denunciar uma arquitetura de alicer- ces da experiência mística, onde surgem pilares como a conaturalidade, a inconceptualidade, a intensidade, a intencionalidade, a indistinção, a clarobs- curidade, a contemplação, que acima deixámos.

Mais ainda, esta estrutura tem um dinamismo peculiar: a de um encontro ocorrido no carácter silencioso místico. Um Outro, que por amor, se comu- nica a um eu que, por procura e desejo, O sente e O contempla. Este amor, por sua vez, motoriza todo o processo, o desejo do eu, dizima a multiplici- dade, a dispersão e tudo o que fragmenta a possibilidade desta união como nos escrevem os místicos.

O que está em causa não é uma demonstração racional da existência de Deus. Mas mais o sentir a presença do Divino através da experimentação e da interiorização. O que está em causa é a experiência da união com o Divino, como “um pré-gozo da vida futura” (Miquel, 1992, p. 17).

A experiência subjetiva mística