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infantilismo psíquico, evasão, despersonalização, desontologização? – um diálogo com a psicanálise

4.1. Freud: a religião e a mística

4.1.3. O Mal-Estar na Cultura (1930)

Freud escreve, em 1929, O Mal-Estar na Cultura, texto que só foi publicado em 1930.

A cultura surge, neste texto, como tudo aquilo que diferencia o homem da vida animal, que o afasta da sua natureza. A cultura abarca, segundo Freud, o controle do homem perante a natureza, assim como o conjunto de regulamentos que regem os relacionamentos humanos.

Há, neste texto, uma reflexão por parte de Freud sobre esta angústia resultante da relação do homem com o mundo, uma incompatibilidade entre as exigências da pulsão e as exigências ditadas pela civilização.

Retomando o seu texto Totem e Tabu (1913), Freud relembra o mito da horda primeva em que inicialmente existiria um pai omnipotente, de vontade arbitrária e absoluta, possuidor de todas as mulheres. Após o parricídio surge um contrato social, assumindo-se assim que nenhum dos filhos tomaria o lugar do pai. Estava lançada, no entender de Freud, a origem da civilização, com uma organização social, ditando o incesto como a primeira lei social.

O papel desempenhado pelo homem e pela civilização em geral não é fácil nem pacífico, na visão de Freud. A civilização, travando uma luta cons- tante contra o indivíduo isolado e a sua liberdade, deixa-lhe a soberania do poder da comunidade e exige-lhe o seu sacrifício a favor do desenvolvimento da sociedade. A civilização é, para Freud, responsável pela desgraça da huma- nidade; a sua ausência significaria uma vida sob o princípio do prazer, garante de felicidade para todos. Em causa está a renúncia da satisfação pulsional. A existência em todo o indivíduo de tendências destrutivas, antissociais e anti culturais posiciona-o como inimigo da civilização. E, no entanto, é nesta civi- lização que nos faz sofrer que procuramos a nossa proteção. Deste modo, tornamo-nos neuróticos, pois temos de tolerar as restrições impostas pela sociedade, que nos impede de sermos felizes. Freud afirma que se efetuou uma troca do poder do indivíduo pelo poder da comunidade, originando, deste modo, a civilização. Ela conterá, consequentemente, a perda da liber- dade individual e a luta constante pela sua reconquista.

Porém, a civilização tem uma função de evitar o sofrimento assim como de oferecer segurança, passando o prazer para segundo plano. Freud coloca, aqui, a questão da felicidade como algo subjetivo e que constitui um problema da economia da libido do indivíduo. O homem procura incessantemente a felicidade que, por sua vez, pode apresentar-se de duas formas: uma ausência de desprazer ou um sentimento de prazer. Freud clarifica, no entanto, que o nosso aparelho psíquico é dominado pelo princípio do prazer desde a prima-

zia do ser, sendo, portanto, a decisão do propósito de vida da ordem deste princípio.

Para o autor, as possibilidades de felicidade são restritas, atendendo ao facto de a satisfação pulsional ser sempre episódica. Nesta sequência, enumera o corpo, o mundo externo e os relacionamentos como os fatores responsáveis pelo sofrimento do homem. Mas, para Freud, a sociedade contém métodos que ajudam a evitar o sofrimento e alcançar a felicidade e destaca o uso de drogas, a sublimação das pulsões (fundamental para o desenvolvimento cultu- ral, possibilitadora de atividades psíquicas superiores), o trabalho, as fanta- sias, o remodelamento delirante da realidade, o amor (um dos fundamentos da comunidade) e a enfermidade neurótica (sintomas entendidos como satis- fações substitutivas para desejos não realizados).

Ainda no seu texto, faz destaque aos aspetos que se enleiam à própria noção de civilização, a saber: a angústia, a agressividade e o sentimento de culpa. Focando o seu texto Mais Além do Princípio do Prazer, de 1920, chama, aqui, a noção da pulsão de morte (existente em todos as pessoas) e destaca dela o carácter conservador e a tendência à repetição visando reconduzir o indivíduo ao seu estado inorgânico – pulsão que representaria grande impe- dimento para a civilização. Os limites destas pulsões agressivas do homem encontram-se no narcisismo das pequenas diferenças; um grupo unir-se-ia no amor, manifestando sua agressividade para fora. No entanto, Freud clarifica que toda a agressividade não externalizada é introjetada, dirigida ao próprio ego; uma parte do ego coloca-se contra o resto do ego, na forma de superego. Freud desenvolve então, nesta sequência, o conceito de sentimento de culpa (central da relação do indivíduo com a cultura), entendido como a tensão entre o ego e o superego, onde existiria uma necessidade de punição. Como causas deste sentimento de culpa estão o medo de uma autoridade exterior (anterior à formação do superego) – em que a renúncia pulsional seria sufi- ciente para evitar o sentimento de culpa – e o medo do superego – esta renún- cia seria insuficiente, uma vez que, se o desejo persiste, a culpa aparece. A comunidade desenvolve, também, um superego e será sob esta influência que se produzirá a evolução cultural.

É no contexto desta sua reflexão que Freud chama a público, de novo, a questão da religião, agora referenciada numa função conservadora da socie- dade humana. Parte de uma interpelação do seu amigo Romain Rolland, sobre a existência em todos os seres humanos de um “sentimento oceânico” – expe- riência essencialmente subjetiva, afirma - fonte de toda a religiosidade. Não sendo, para Freud, uma ideia de fácil entendimento e até de aceitação, ele

atribui este “sentimento de eternidade” a uma fase precoce do desenvolvi- mento do ego, fase de indiferenciação entre o eu e o mundo externo.

A raiz de toda a religião encontra-se na defesa do homem contra o estado de desamparo infantil que persiste até a vida adulta, reanimado sempre pela angústia da omnipotência do destino. Deste modo, a religião é a resposta à nostalgia do pai poderoso garante de segurança e proteção. Assim sendo, nesta procura da origem da religiosidade, o “sentimento oceânico – que pode- ria originar o restabelecimento do narcisismo ilimitado, no entender de Freud – passa para um segundo plano. Relança para a religião o atributo de ser a única capaz de responder à interrogação lançada pelo homem sobre a finali- dade da vida.

Para Freud, torna-se irrefutável a ideia de que as necessidades religiosas resultam, precisamente, do desamparo infantil e da nostalgia por esse pai poderoso. A religião, neste sentido, proporciona um estado de infantilismo psicológico, um delírio de massa, evitando, por seu turno a neurose indivi- dual, expressa ainda Freud. É quase uma realidade inevitável, segundo a lei- tura freudiana da religião; face a uma extinção da religião, o homem criaria outro sistema de doutrinas com as mesmas características, a fim de dar res- posta às suas necessidades, receios e anseios. A própria natureza do homem reclama este controle a fim de que a vida em sociedade seja possível.