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Enquadramento biográfico e conceptual

1.2. Síntese de conceitos essenciais

1.2.3. Teologia e antropologia apofática

A mística é uma experiência de relação. De um lado, surge-nos um ser humano, com características bem definidas como a humildade, a centralização no essen- cial, a incessante procura e desejo do Absoluto, a aniquilação, o esvaziamento de si, entre outras; de outro lado, a divindade, que nos é apresentada, nos diver- sos discursos religiosos, pelos seus atributos, títulos, natureza, ação, etc.

Em teologia, encontramos duas formas de falar e compreender Deus: o Deus da ação ou Deus catafático e o Deus do silêncio e do mistério ou Deus Apofático (Neves, 2009). A primeira forma, corresponde à teologia positiva ou catafática, do termo grego k, que significa afirmação, declaração; a segunda forma, liga-se à teologia negativa ou apofática, do grego ó, significando negação ou, ainda, declaração, uma vez que o verbo grego ó quer dizer “declarar algo contrário”, “dizer (abertamente) o contrário”, indi- cando “negação”, “dizer não” e “recusar”.

Na teologia catafática, o referencial do discurso sobre Deus é a “afirma- ção” que se fundamenta nos textos bíblicos. É nesta teologia que encontra- mos, segundo Neves (2009), a afirmação de Deus criador do universo, criador de um povo “eleito”, judeus ou cristãos, com quem estabelece um pacto – um povo, uma lei, uma terra para os judeus, ou, um povo, uma igreja (uma Escritura Sagrada, para os protestantes), e um Salvador universal, ou seja, um Deus que é o Deus do bom, do belo e da liberdade (Cf. Gn 1, 13). Deus é, assim, compreendido e falado, sempre pela afirmativa como Deus de bondade, omnipotência, Senhor da vida e da morte, do bem e do mal, do julgamento final, última palavra na condução da história, acrescenta, ainda, Neves.

A par desta teologia catafática da afirmação, encontra-se a teologia apo- fática da não-afirmação, do dizer-não-dizer. Nela encontramos o Deus inefá- vel, o totalmente Outro, o inatingível, o indizível, o transcendente a tudo o que seja analogia e criação. Este Deus do silêncio, o Deus sem-nome, o Deus- -sem-fala, o “Eu-Sou-o-que-Sou”, o Deus escondido, encontramo-lo em vários textos bíblicos como Ex 3, 14; Is 45, 15; Jo 1,18; Rm 11, 33-36. Dois peque- nos textos, um veterotestamentário, outro neotestamentário, ajudar-nos-ão a compreender esta teologia e a força da sua expressividade:

Os meus planos não são os vossos planos, / os vossos caminhos não são os meus caminhos. / Tanto quanto os céus estão acima da terra, / assim os meus cami- nhos são mais altos que os vossos, / e os meus planos, mais altos que os vossos planos. (Is 55, 8-9)

Oh, que profundidade de riqueza, / de sabedoria e de ciência é a de Deus! / Como são insondáveis as suas decisões / e impenetráveis os seus caminhos! / Quem

conheceu o pensamento do Senhor? / Quem lhe serviu de conselheiro? / Quem antes lhe deu a Ele, / para que lhe seja retribuído? / Porque é dele, por Ele / e para Ele que tudo existe. / Glória a Ele pelos séculos! Ámen. (Rm 11, 33-36)

No Ocidente, a tradição apofática remonta a Plotino, tendo este erigido a linguagem apofática como um atributo Divino. Sendo Uno, dispensa-se de predicados, logo não tem lugar no plano do discurso (Schwartz, 2005). Plo- tino, com esta linguagem apofática, influenciará, posteriormente, quer judeus, quer cristãos, quer muçulmanos.

Vamos reencontrar, então, esta teologia apofática ou negativa nos escritos dos Padres do Deserto, dos Capadocianos, dos teólogos gregos, inspirados pelo neoplatonismo. Nos séculos IV-VI, vamos encontrá-la, por exemplo, nos escri- tos de Pseudo Dionísio. Posteriormente, há-de surgir, de novo, na Idade Média, no Ocidente, na mística renano-flamenga, com Mestre Eckhart, Taulero, Suso, Ruysbroeck e, ainda, com o cardeal Nicolau de Cusa; em seguida, na Espanha do século XVI, com Santa Teresa de Ávila, S. João da Cruz (Varenne, 1989); já no nosso tempo em Sophia de Mello Breyner, por exemplo (Neves, 2009).

Há, de facto, na teologia negativa, a eliminação de possíveis definições; a realização de sucessivas negações constitui a base da teologia apofática. Deus não pode ser apreendido pelo pensamento, nem pela linguagem, mas pelo “Nada” – termo ao qual nos dedicaremos mais adiante. Esta teologia enfatiza o facto de Deus ser diferente e superior a qualquer uma das nossas palavras ou dos nossos pensamentos. Deus não é tudo aquilo que conhecemos; no pensar de outro modo reside o nosso erro. Nega-se o todo, na presença do incompreensível e inefabilidade sobre o todo de Deus, como surge na Subida do Monte Carmelo de S. João da Cruz (2S 24, 9), como nos sugere Augustine (2002).

A experiência mística negativa, diz-nos Varenne (1989, p. 18), “não é uma ‘modificação’ ou uma redução ontológica; antes pelo contrário, ela abre uma afirmação, uma possibilidade, um espaço onde o ser pode defender-se livremente, independentemente das contingências e das atribuições ordiná- rias”.

Não é o corpo fenomenalizado nem os discursos teologizados que nos apresentam o essencial da experiência. A teologia apofática surge como um instrumento conceptual alternativo de expressividade da experiência indizí- vel. As negações sucessivas através de afirmações do que não é nem isto nem aquilo, aproxima o não místico da realidade mística. A existência no Nada e no Vazio místico – onde ocorre a união com o Absoluto – é comunicada pela negação da negação, levando o não místico, provavelmente sem intenção

prévia, a um exercício da experiência do Nada e do Vazio. Este facto, resulta, muito provavelmente, porque ele vai excluindo de qualquer raciocínio as analogias redundantes, as associações, os preconceitos, enfim, as inúmeras operações mentais, pois tudo acaba num “não sei”. Estamos, assim, perante a desapropriação, expressão preconizada pela mística renano-flamenga.

A tradição apofática procura, antes de mais, através do discurso, passar ao silêncio; como se o silêncio circundasse a linguagem. A apófase cresce naturalmente numa intensidade que lhe é peculiar, até alcançar a linha última em que a proposição face ao transcendente não mais pode ser mantida.

Concretamente, na tradição apofática medieval, o que assistimos é a um funcionamento a dois níveis, em que há, num momento, a utilização catafá- tica de imagens afirmativas-negativas e, num outro momento, em que se usa a negação apofática da negação. Neste estilo de funcionamento descobrimos uma unidade semântica: a da “sentença dupla” ou proposição dupla, em que encontramos uma justaposição de proposições mutuamente contraditórias. O chocar levará, assim, o leitor a um outro nível de compreensão (Schwartz, 2005). No discurso místico, podemos encontrar uma afirmação, seguindo-se a negação da mesma; podemos encontrar expressões do género “nem…nem”.

Deus é Nada, oposto ao nada das criaturas. É o Nada, porque não é “isto” ou “aquilo”. Distante de qualquer compreensão, não tem predicados, está para além do ser. É o Tudo em tudo como Criador e o Nada em nada como trans- cendente. Desta consciência mística surge a importância do silêncio místico, porque a palavra é imprópria, a compreensão limitada, a razão impotente.

A teologia negativa e a antropologia negativa contêm, no seu cerne, a dimensão dos limites absolutos da experiência possível para qualquer sujeito. Elas contêm, ainda, no centro da experiência da União Mística, tudo aquilo que furta à própria experiência. As inevitáveis vivências místicas da noite, do nada, do vazio, do ir e vir, da ausência e presença, da dor e do gozo, da transformação do eu – que analisaremos mais à frente no nosso trabalho – inserem-se, nesta linguagem apofática, quer em termos teológicos quer em termos antropológicos, num sentido de para além da experiência, tal como ela poderá ser entendida. É o limite que a União Mística impõe à experiência e ao entendimento; a alma levada para além do seu ser, da sua linguagem, do seu próprio pensamento. Como Schwartz (2005) frisa, é um limite, onde a lin- guagem e o pensamento permanecem sempre “do lado de cá” da fronteira, sem possibilidade de poderem passar esse limite.

Não nos podemos esquecer, no entanto, que a mística medieval se impu- nha contra a perspetiva de sobrevalorizar a dimensão da experiência mística,

valorizando, muito mais a dimensão da interioridade, da escuridão divina, do desconhecimento, de ascensão mística pela aniquilação e abandono de tudo o que distrai do Divino. Trata-se de uma linguagem apofática que rejeita os termos descritivos da experiência.

A linguagem apofática exige-nos, hoje, precisamente, esta descentraliza- ção de uma mera caracterização da experiência mística – de um ato, ao qual não temos acesso, a não ser pelo discurso místico – e a uma centralização no sujeito, enquanto, simultaneamente, arquiteto de um caminho a que se pro- põe viver e tradutor de uma vivência complexa cuja língua desconhece. Tur- ner (1999, citado por Schwartz, 2005) ilustra bem esta complexidade quando diz que os movimentos mais negativos da linguagem mística se prendem, não tanto com a “experiência de ausência”, mas, antes, com uma “ausência de experiência”. Há um excesso do impossível numa linguagem que se pretende possível.

A linguagem apofática empurra-nos, então, para o limite conceptual do que podemos entender e validar como experiência ou, por impossibilidade de experiência, como não-experiência. Como equacionar, em termos das facul- dades humanas, a experiência de uma aniquilação do eu que ocorre no centro da vida, ou de um Ser Infinito no coração finito do ser humano, o desenho do espaço onde o Tu se encontra num eu, ou a medição de um tempo num calendário humano?

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Da experiência