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Num outro seu poema, podemos ler: Quando toquei a pedra

2.3.1. O “Mundo do Imaginal” de Ibn Arab

Para uma melhor compreensão desta dimensão da experiência de existência e de transcendência, na experiência mística sufista teremos de ter presente a noção de “Imaginação Criadora” e de “Mundus Imaginalis” – o “Mundo do Ima- ginal”, de Ibn Arabi.

Vários autores responsabilizam o pensamento ocidental pela extinção da possibilidade de um espaço intermédio entre o mundo sensível e Deus, assim como a radicalização destes dois “mundos” ou, ainda, a aceitação de apenas um deles, o mundo sensível (Cromberg, 2003; Shoji, 2003; Schwartz, 2005; entre outros). Foi-se dando privilégio ao conceito do imaginário em detri- mento do conceito do Imaginal, conceito este que foi desaparecendo.

Segundo Cromberg (2003), o Mundo Imaginal, na mística de Ibn Arabi, refere-se a um espaço intermediário onde os espíritos ganham corpo e onde os corpos se espiritualizam. Estamos no domínio da perceção mística, em que os dados sensíveis são convertidos em símbolos, permitindo o acesso ao espiri- tual, através de uma “intenção” (himma) Imaginal Teofânica. Segundo Ibn Arabi,

os conteúdos espirituais, que designa por “significados” (ma’ana), revestem-se de formas sensíveis de “aparição”, sendo então considerados como “símbo- los”, isto é, signos (ou noemas). Estes “símbolos” não só têm procedência divina como possuem um carácter presentativo e não representacional, o que constitui o Mundo Imaginal como o mundo das imagens, apenas acessível pela imaginação e pela poesia.

Cromberg clarifica esta diferenciação dos dois termos – representação e presentação - que sustentam a noção de Imaginal e de “símbolo” para as for- mas teofânicas imaginais. No caso de “símbolo” ser entendido como repre- sentação – signo que se refere a algo exterior a ele – a aplicação ao nosso objeto, isto é, às formas sob as quais Deus se revela ao Seu servo, fica inviabi- lizada. Explica Cromberg que este conceito não traduz o verdadeiro signifi- cado da palavra árabe “mazahir”, do verbo “zahara” (manifestar, exteriorizar, expressar), usado por Ibn Arabi. No entanto, quando mazahir é traduzido por “símbolo” ou “forma simbólica”, a noção que queremos expressar é a de pre- sentação, ou seja, a manifestação de Deus ou de um “significado” espiritual, sendo interferida por uma forma sensível que O revela. Cromberg dá mesmo dois exemplos que nos ajudam a entender melhor estes conceitos: “A ban- deira de um país o representa, mas o rosto de Pedro o presenta. O rosto de Pedro não é algo diferente dele, embora Pedro o transcenda. O rosto não se ‘refere’ a ele – expressa-o, manifesta-o. Um símbolo, nesta perspetiva, é o rosto de uma Presença. Quando na ascensão do Profeta (mi’raj) ele vê e bebe do conhecimento em forma de leite2

,não se trata de uma alegoria3

,embora esse leite não seja feito de matéria física, nem de uma ‘simbologia’ humana, assim como as asas dos anjos também não são, na perspetiva Imaginal, mera alegoria” (Cromberg, 2003, p.7).

E Cromberg conclui, frisando a ideia de que “representações” marcam uma ausência; na sua essência, são substitutos, simulacros, referências emble- máticas, resíduos perceptivos; a representação pode ser, no máximo, metafó- rica ou alegórica. Por seu lado, a forma “presentação” reúne a dimensão pro- funda da experiência mística do Imaginal. Ela presentará a não separação, relação intrínseca entre servo e o Seu Senhor; presentará, ainda, o símbolo como origem divina (e não humana); presentará, igualmente, o simbolizado:

2

A autora cita a obra de Ibn Arabi: Fotuhat al-Makiya, II, cit. in cap. 58.7, ed. do Cairo.

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A autora refere que entende “alegoria” e “metáfora”, neste caso, como contraposição a “símbolo”, apesar da posição assumida por parte de diversos autores, nomeada- mente Aristóteles, para quem a metáfora é entendida como sinónimo de símbolo e para quem a alegoria é entendida como “metáfora continuada”.

Deus e Seus conteúdos espirituais. A criação do símbolo, por parte do homem, só é possível num estado de fana’, de aniquilação, ou de esvaziamento e de inspiração.

Assim, o referencial de representação e presentação, está intrinsecamente ligada à noção de Mundo Imaginal, à Himma. Por Himma, entende-se a imagi- nação impregnada de desejo ardente, “pensamento do coração”, ato de conce- ber e imaginar de modo ardente, desejo de apreendermos novas imagens e formas por meio da imaginação, a possibilidade de alcançar metaforicamente o mundo das imagens.

As realidades espirituais só poderão ser apreendidas pelo Imaginal, pela Imaginação Teofânica, sendo o coração, o lugar deste acontecimento. A razão, por seu turno, não tem acesso a elas de forma direta, nem a linguagem, tam- pouco, as pode comunicar de forma direta, caindo por terra, assim, a tentativa de proporcionar qualquer prova de sua validade noética.

Cromberg (2003, pp. 4-6) resume o pensamento do místico de Ibn Arabi desta forma:

A supressão, por parte da religião institucionalizada e purista, dos apoios simbó- licos fornecidos pelas imagens míticas, seria responsável pela dissolução do acesso à espiritualidade verdadeira. Quem virá a suprir esta lacuna será o impulso subli- minar do misticismo, ao qual não basta a consciência da Intangibilidade de Deus. A mística ocupa-se da “experiência” de Deus – da sua visão, audição e gosto. Para o místico, a prevalência da Transcendência e Incognoscibilidade de Deus não é nenhuma novidade – inclusive, porque a experimenta. Que ele veja Deus e O ouça, através de formas e sons imaginais, não diminui em nada sua consciên- cia da Irrepresentabilidade divina – ao contrário, a intensifica. Para o místico,

o mundo sensível é teofânico, é um véu que vela e revela a Presença (e cuja trans- parência depende do poder imaginal e da concentração – himma – do místico). (…) Na verdade, a própria religião exotérica incita à representação imaginal de Deus, quando, por exemplo, o Profeta diz: “Ore a Deus como se O visse; e se não O vê, saiba que Ele te vê.” (Hadith, tradição oral do Profeta). Ou quando se lê nas Escrituras: “Coloco o tempo todo Deus a meu lado.” (Sl 16, 8.) Ibn Arabi nunca deixa de enfatizar a “Incomparabilidade de Deus”, que ele contrapõe à Sua “Similaridade”. ‘Deus é incompreensível a todas as coisas porque está infi- nitamente além delas e lhes é semelhante porque manifesta suas qualidades através delas’ (a autora cita William Chittick, Imaginal Worlds, State University of New York Press, Albany, 1994). Para ele, o intelecto (‘aql) prova facilmente a Incomparabilidade de Deus, mas não capta sua Similaridade. A Imaginação, em contrapartida, percebe a Sua Similaridade, mas nada sobre Sua Incomparabili- dade. O conhecimento perfeito é, para ele, a função de ambos, ver e saber, ima- ginação e intelecto – os dois olhos de Deus. O movimento de integração desses dois elementos se dá, justamente, no Mundo Imaginal da alma. A alma, no seu estatuto de intermediária entre o corpo e o espírito, está incumbida de trazer o

espiritual às entidades corpóreas e fazer com que os dois se relacionem. A Ima- ginação teofânica, que seria o órgão do conhecimento espiritual por excelência, percebe todas as formas como revelações, ou aparições, de Deus. Ela, a respon- sável pela perceção mística (dhauq), é o lugar do reencontro entre o Mundo do Mistério (‘aalam al-ghaib) e o Mundo dos Fenómenos (‘aalam ashahada), e atra- vés dela, efectua-se o descenso do Criador e a ascensão da criatura. Ela consti- tui-se no entremundo que reconhece Deus e o cosmos por coincidentia opposito- rum: Hua La-hua, “Ele Não-Ele” – “Todos os mundos são ao mesmo tempo Ele e Não-Ele. (a autora cita a obra de Ibn Arabi: Fotuhat al-Makiya, Ibn Arabi, II, citado in Cap. 379, ed. do Cairo).

Torna-se assim mais clarividente que o Imaginal e o imaginário são duas atribuições da Imaginação (hayyal) diferenciadas; uma é inerente ao sujeito que imagina e dele é indissociável (hayyal muttassir) – falamos aqui das ima- ginações provocadas conscientemente e das espontâneas, que aparecem por si, como os sonhos – é, portanto, puramente mental; outra que é dissociável (hayyal munfassil) do sujeito e possui auto-subsistência – aqui a imaginação é autónoma, falamos do mundo intermediário, do Mundus Imaginalis – trata-se de uma realidade exterior, extra mentis, o que permite que seja possível ser vista ou percebida por outros místicos no mundo exterior (Cromberg, 2003).