• Nenhum resultado encontrado

VIOLÊNCIA CONJUGAL CONTRA AS MULHERES

1 Individualização e conjugalidade

1.1 A filosofia de empoderamento da mulher

Uma filosofia ou uma ‘cultura de empoderamento’ (Kelly, 2008:23) assume como pressuposto que, inerente à violência contra as mulheres, está o facto de se ser sujeito ao poder e controlo de outro ser humano, sendo-se socialmente considerado e tratado como possuindo menos valor. Esta depreciação estende-se a todas as áreas da vida, desde as relações de intimidade até às relações sociais menos pessoais. Assim, os efeitos da dominação pessoal e da desvalorização social fazem-se sentir ao nível do auto-conceito (o self), da confiança (em si mesmo e nos outros) e das interacções sociais.

O modelo de empoderamento assenta em três pressupostos elementares21

20 Apesar de a designação inglesa do conceito de empowerment ser universalmente utilizada (Carmo,

2007) a tradução directa para a língua portuguesa tem vindo a ser cada vez mais aceite. Assim,

passaremos a usá-la daqui para frente. De igual modo, o disempowerment, termo que define o contrário de empoderamento, será usado na tradução directa ‘desempoderamento’ mantendo o significado atribuído no original.

. O primeiro estabelece que o poder é uma capacidade e não deve ser entendido como um recurso.

21 As perspectivas teórico-conceptuais do empowerment e advocacy são relativamente recentes

constituindo ‘produtos das décadas de 80 e 90’ (Payne, 1997:267). A publicação da obra clássica de Salamon em 1976 sobre as comunidades oprimidas (em especial as minorias étnicas e nesta a comunidade

Isto significa em primeiro lugar, que para o poder ser efectivo tem que ser exercido, isto é, não basta estar-se detentor de poder (como recurso) para se ser actor com poder (enquanto capacidade). Em segundo lugar, significa que podem existir situações em que o poder, estando presente, não é usado.

O segundo pressuposto estabelece que os sujeitos podem estar destituídos de poder, encontrando-se numa situação de desempoderamento. Uma das manifestações desta situação é a falta de acesso aos direitos, incluindo a falta de mecanismos para que o seu cumprimento possa ser exigido.

O terceiro pressuposto é o de que a vontade e a realização de mudança colectiva decorrem da (re)união de vontades e da conjugação de acções individuais. De um ponto de vista teórico, a perspectiva crítica tem sustentado que a mobilização social se faz a partir da identificação com o outro (principalmente por via da identificação entre as experiências de vida). No que diz respeito à família e às situações de violência conjugal em específico, a identificação entre experiências parece ser difícil de concretizar, criando dificuldades à mobilização colectiva para a mudança social.

A prática de empoderamento consiste em desenvolver nos indivíduos, grupos, famílias e/ou comunidades a capacidade para estar detentor de poder, incluindo:

- Ser capaz de agir a seu favor, exercendo controlo sobre a sua vida e tendo consciência do seu valor próprio.

- Aperceber-se de que a sua experiência pessoal não é única, evitando, ao mesmo tempo, um sentimento de isolamento e uma validação da experiência pessoal através da experiência do outro (reduzindo desta forma o sentimento de culpa que possa existir decorrente da auto-atribuição de responsabilidade pela sua experiência).

negra), assim como os estudos realizados em contexto americano por Gutiérrez a meados da década de 1990 constituem dois marcos no desenvolvimento destas perspectivas teórico-conceptuais.

- Exercer consciência crítica sobre os factores, de ordem interna (crenças, valores, atitudes) e externa (remetidos para as estruturas sociais) que influenciam os problemas que afectam a sua vida.

- Assumir a responsabilidade pelas suas acções, agindo no sentido da mudança das circunstâncias pessoais em que se encontra e das situações sociais que as contextualizam.

O empoderamento consiste nesta capacitação para influenciar as decisões sobre a própria vida através de estratégias específicas tendentes a reduzir e a reverter as concepções negativas ou depreciativas impostas nas sociedades por determinados grupos ou categorias sociais, afectando outros grupos ou categorias sociais (Payne, 1997).

Na intervenção com mulheres vítimas de violência conjugal, o empoderamento tem como finalidade específica ‘ajudá-las a optimizar as potencialidades que têm e que, devido à crise22

22

Segundo Payne (1997), em termos abstractos, uma situação de crise implica uma intervenção social num período de seis a oito semanas. O potencial de sucesso da intervenção é elevado por estar associado ao facto de uma pessoa em situação de crise estar mais disponível ou predisposta para ser ajudada, comparativamente a outras ocasiões da sua vida em que lida com os problemas assumindo o controlo na procura de um equilíbrio satisfatório. O potencial de sucesso da intervenção na crise também se verifica depois da intervenção. A teoria estabelece que a aprendizagem de resolução de problemas, feita com base na experiência, melhora a capacidade individual para lidar com problemas semelhantes no futuro. A intervenção na crise compreende sete estágios: avaliar o risco e as condições de segurança da vítima directa de violência e de vítimas secundárias; estabelecer o relacionamento promotor de confiança como base para se desenvolver um processo de intervenção; identificar os problemas, hierarquizando-os por ordem de gravidade e de perigo; prestar suporte emocional imediato para atenuar os efeitos de tensão gerados pela situação de crise; explorar as alternativas de intervenção em relação aos problemas

, estão desacreditadas por si, logo, não exploradas e/ou desenvolvidas’ (Manual Alcipe, 1999:17). Os serviços de apoio que se orientam por uma filosofia de empoderamento têm como preocupação assegurar que as mulheres definem (identificam e dão nome às suas experiências), se familiarizam com os direitos que têm (sendo informadas e esclarecidas sobre os mesmos e sendo-lhes dado tempo para os interiorizarem) e tomam as decisões que lhes dizem respeito, envolvendo decisões em relação à sua vida em termos gerais e em relação ao processo de intervenção em específico. Partindo destes princípios, o ambiente dos serviços e o contexto em que se

desenvolve o processo de ajuda devem favorecer na mulher o desenvolvimento de sentimentos de segurança e de liberdade, caracterizando-se por serem relações de dignidade e de respeito entre as pessoas directamente envolvidas na relação de ajuda.

É neste sentido amplo que se estabelece que o empoderamento ‘deve capacitar os indivíduos no seu desenvolvimento pessoal assim como melhorar a sua influência sobre os serviços’ (Barnes, 1992:381). A ‘influência’ dos indivíduos sobre os serviços de apoio faz-se através da sua participação - que não deve ficar circunscrita à avaliação da satisfação pelos serviços prestados. Os serviços de apoio que se limitam a este tipo de participação podem fazê-lo guiados por boas intenções (Sousa et al., 2007), procurando melhorar os serviços prestados, mas, na realidade, não estão a contribuir para o empoderamento do sistema-cliente (Tower, 1994).

De acordo com Tower (1994), o elemento fundamental que distingue a intervenção social participada é que a pessoa seja entendida como o foco e razão de ser do processo de intervenção. A autonomia das mulheres é o objectivo principal dos processos de intervenção. Daqui que, na maior parte das vezes, estes integrem acções que permitam manter as mulheres economicamente independentes a longo-prazo, como por exemplo a formação profissional e escolar, a inserção no mercado de trabalho e o acesso a uma habitação. O que Tower (1994) sustenta é que esta constitui apenas uma das dimensões de empoderamento, orientada pela necessidade de inserção social das mulheres.