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VIOLÊNCIA CONJUGAL CONTRA AS MULHERES

3 Modelos de intervenção

2.3 A intervenção dirigida à violência conjugal

A partir dos anos 1990, do ponto de vista das políticas públicas, a violência conjugal tem vindo a ser alvo de uma atenção crescente, que se traduz na existência de um quadro que permite uma intervenção reguladora e sancionatória, marcando uma sociedade em que ‘se aceita falar de violência doméstica’ (Frade e Madeira, 2007:34). Apesar disso e de a ‘violência doméstica’ ter natureza de crime público, mantém-se um assunto reservado ao universo fechado que é a família (Lourenço e Carvalho, 2001). No relatório da Direcção-geral da Administração Interna (DGAI, 2008) afirma-se que a intimidade do lar permanece como um espaço mitificado, manifestando efeitos de ter sido sacralizado, também pela lei, durante anos55.

É neste sentido que é possível que a definição da violência conjugal como uma questão de género coexista com uma tradição cultural de família patriarcal. Mesmo uma regulação assente numa mensagem clara e coerente perde significado se não se traduzir em evidências acessíveis ao senso-comum (Allen, 2005), sobretudo em contextos em que a cultura jurídica e o conhecimento do aparato institucional são baixos e nas sociedades em que os cidadãos desconhecem os seus direitos e dificilmente os reivindicam (Santos, 2006). A perda de significado das mensagens destinadas a ser entendidas pelo senso-comum pode ser ilustrada com a análise do conteúdo de uma brochura de ampla divulgação, colocada em circulação pela CIG no final do ano 2007.

55 Neste documento, o Ministério da Administração Interna (MAI) admite que a ruptura com esta

concepção tem sido difícil, não obstante o esforço na formação dos agentes das forças policiais (com a alteração dos procedimentos no acolhimento das vítimas nos postos da GNR, enquadrada inicialmente nos Núcleos de Mulher e Menor criados em 2002 e actualmente pelos NIAVE; e nas esquadras da PSP, enquadrada em Equipas de Proximidade e Apoio às Vítimas de Crime, existentes desde 2006). O número de denúncias de violência doméstica registadas na PSP e na GNR vem crescendo ano após ano desde que este foi considerado um crime público: 11.162 ocorrências em 2000, 12.697 em 2001, 14.071 em 2002, 17.527 em 2003, 15.541 em 2004, 18.193 em 2005, 20.595 em 2006 e 21.907 em 2007. A evolução no número de arguidos por ano também é consistente: 284 em 2001, 463 em 2002, 680 em 2003, 864 em 2004, 1035 em 2005, 1033 em 2006; assim, como o número de condenações: 128 em 2001, 228 em 2002,

Mencionando como objectivo ‘ser útil no conhecimento de formas de apoio e ajuda para lidar com situações que se configurem ser de violência conjugal’ (Violência, 2007:4), esta brochura não faz referência alguma à criminalização da ‘violência doméstica’ nem às sanções em que os agressores incorrem.

Esta questão assume importância quando os estudos nos indicam que o sucesso da intervenção na violência conjugal é influenciado pela clareza e consistência da mensagem enviada à comunidade (Allen, 2008; Estratégias, 2003; Pence e Shepard, 1999; Troy, 2007). A teoria sustenta que a visibilidade na comunidade de vizinhança de uma actuação imediata nas situações de violência conjugal produz um efeito de ‘palavra que se espalha rapidamente levando a que a população aprenda que as consequências em relação a um acto de violência doméstica se farão sentir’ (Uekert, 2003:134). O que sabemos é que uma mensagem por muito clara que seja perde impacto se não for consistente com as actuações e se não for coerente com todas as outras mensagens que tenham a mesma origem e/ou o mesmo propósito.

Freire (1975) analisa a questão do ponto de vista do oprimido afirmando que é preciso que este comece a ver exemplos da vulnerabilidade do opressor para encetar um processo de desconstrução de uma ‘crença difusa, mágica, na invulnerabilidade do opressor’ (p.70).

Na sociedade portuguesa, pouco se conhece acerca do sistema-interventor que lida directamente com situações de violência conjugal. Os estudos têm incidido sobre as formas como as vítimas reagem à violência (Lisboa, 2008; 2006) e sobre os factores relacionados com a procura de apoio fora da família (Dias, 2007; Vicente, 2005). Mesmo neste subtema as questões não têm sido colocadas em relação aos tipos de apoio disponíveis nem à forma como a prestação de apoio está estruturada. O que se considera em termos genéricos para os Estados-membros do Conselho da Europa manifesta-se também em Portugal: o aumento do conhecimento científico sobre o fenómeno social da

344 em 2003, 460 em 2004, 527 em 2005, e 495 em 2006. Do número total de denúncias, 3.324 chegaram à fase de julgamento e destas 2252 foram objecto de condenação (DGAI, 2008).

violência conjugal não tem correspondido a um aumento do conhecimento na área das respostas ao problema (Hageman-White e Kavemann, 2004). Faltam estudos sobre a forma como as organizações de apoio lidam com as vítimas de violência conjugal, sobre o tipo de apoio que lhes prestam e sobre o modo como cooperam entre si na prestação de um apoio integrado e abrangente (Hagemman-White et al., 2006).

De um ponto de vista cronológico, sabe-se que na sociedade portuguesa, os serviços de atendimento a mulheres vítimas de violência conjugal antecederam a criminalização do comportamento do agressor e o acolhimento especificamente dirigido a vítimas de violência conjugal em casa-abrigo. O aumento desta resposta institucional verificou-se a partir dos anos 1990, associado à criação desta valência no quadro institucional das respostas sociais tuteladas pela segurança social (na categoria equipamentos e serviços). Este procedimento administrativo permitiu estabelecer acordos de cooperação, viabilizando o financiamento público das actividades aí desenvolvidas.

As organizações da sociedade civil que intervêm directamente na violência conjugal confrontam-se com a existência de poucos recursos para o acolhimento protector das vítimas (Baptista, 2003; 2004), com obstáculos legais que impedem actuações céleres e eficazes, capazes de demonstrarem uma efectiva protecção da vítima (Silveira, 2002) e com uma profunda falta de articulação entre as várias instituições (Cardoso et al., 2000; Franco, 2005).

A ‘modernização do sistema de bem-estar’ (Carvalho, 2005:172) é um processo em curso ligado à adesão de Portugal à União Europeia (Mozzicafreddo, 1997; Pereirinha, 2008) representando uma oportunidade para tornar efectiva a autonomia dos sujeitos (para que não fiquem dependentes das famílias para lhes assegurarem o apoio social). Esta modernização na área da família e da violência conjugal em particular é exigente por envolver a expansão de serviços orientados para as famílias, a regulação desses serviços, a existência de incentivos públicos para a sua prestação e o activismo do sector terciário e da iniciativa privada, sobretudo de mulheres (Carvalho, 2005).

De facto, a adesão do Estado português à União Europeia representou uma oportunidade (pelo menos) em duas vertentes (Geddes e Benington, 2001): uma oportunidade para aumentar o potencial de inovação e consolidar conhecimentos e uma oportunidade para o desenvolvimento de iniciativas de intervenção na área do bem-estar social, através da provisão de recursos financeiros e da troca de experiências entre Estados-membros. A adesão de Portugal à União Europeia foi uma via para a entrada na sociedade portuguesa de uma série de conceitos e de princípios que foram sendo progressivamente apropriados. Os discursos políticos sobre a construção de uma cultura de parceria na área social traduzem-no, tendo começado a emergir no contexto nacional no inicio dos anos 1990.

Foi através do III Programa europeu de luta contra a pobreza56 que a União Europeia definiu a parceria, a participação e a multidimensionalidade como princípios-chave orientadores da luta contra a pobreza e exclusão social. Nesta altura, o significado atribuído ao conceito de parceria era o de cooperação inter-instituicional, sendo esta considerada a estratégia de intervenção mais adequada no combate aos problemas sociais estruturais e persistentes. A expectativa era a de que da implementação desta estratégia resultasse a coordenação de recursos e a capitalização de conhecimentos de base empírica. O objectivo da União Europeia era produzir e disseminar conhecimento, aumentando as trocas entre actores sociais, entre sectores (público e privado) e entre os Estados-membros (Geddes e Benington, 2001).

Volvida uma década sobre as experiências do programa europeu de luta contra a pobreza, a realidade mostrava a quase inexistência de ‘histórias relevantes de parcerias sustentadas e duradouras que envolvam ONG’s’ (Lopes, 2000:60). Este facto é interpretado pela autora como um indicador de fragilidade da sociedade civil, limitando a sua ‘participação emancipada nas políticas sociais a domínios muito específicos de actuação’ (idem: 60).

56 O I Programa Europeu de Luta Contra a Pobreza decorreu no período entre 1975 e 1980; o II Programa

Em termos gerais, a sociedade civil portuguesa caracteriza-se por um dificuldade em mobilizar-se na defesa de causas sociais (Barreto, 1996) e por ser pouco participativa (Santos, 2006). Nas situações em que se mobiliza para agir, revela uma tendência moralizadora, assente numa matriz cultural judaico-cristã, que se traduz numa normalização dos comportamentos dos indivíduos e numa organização institucional baseada na subsidiariedade (Franco, 2005; Hespanha, 2002; Pahl, 2003; Santos, 1993). Um dos efeitos destas características de ordem cultural sobre a prestação de serviços sociais de proximidade é um predomínio de agentes pertencentes ao sector não-lucrativo que mantêm uma presença forte da Igreja católica (Deus, 2004; Franco, 2005; Pereirinha, 2003; Rêgo, 2001; Salamon e Anheier, 1996) com uma presença fraca de organizações feministas. As organizações feministas dedicam-se quase em exclusivo ao apoio a mulheres, desenvolvendo uma actuação segmentada e com poucas trocas entre si (Valente, 1998).

Como se expôs, a filosofia orientadora das opções do Estado na resposta à violência conjugal é a da co-responsabilização dos agentes sociais, implicando um maior envolvimento da sociedade civil. Esta opção política tem vindo a ser apresentada como a face de um Estado moderno, ao alinhar na ‘corrente emergente do reformismo solidário [manifesto na] reaproximação à sociedade civil’ (Lopes, 2000:250). O maior envolvimento da sociedade civil visa combater a cultura de honra instalada na sociedade (Santos, 2003), que se relaciona com a representação social de que os problemas da família devem ser tratados em família. Esta representação está ligada à definição de fronteiras entre o público e o privado e suporta uma atitude de rejeição de interferência externa nas famílias em que existe violência conjugal (Costa, 2005; Silva, 1995 e 1991), sobretudo interferência do Estado e com cariz regulador dos comportamentos.

Em relação à sociedade portuguesa, o que sabemos da intervenção em parceria em situações de violência conjugal é praticamente nulo. Estas iniciativas ainda não foram tomadas enquanto objecto de estudo sociológico. A face mais visível de transformação do modo de representar (ideologicamente) e do modo de agir (politicamente) sobre a

violência conjugal contra as mulheres é a legislação e os mecanismos reguladores congéneres (como os Planos Nacionais).

Como problema de estudo sociológico, a violência conjugal contra as mulheres emerge na confluência de vários olhares da Sociologia – sobre a família, o género, a acção social e o serviço social (área disciplinar que tem conduzido a definição teórica da intervenção social profissional nesta matéria, Banks, 2002; Pahl, Hasanbegovic e Yu, 2004). A Sociologia da família não apropriou este problema como objecto de estudo e tem-se debruçado sobretudo sobre a análise do comportamento individual das mulheres procurando compreender quando, porque razões e a quem é que elas pedem ajuda quando sentem que são vítimas de violência conjugal.

Síntese

A desigualdade de género mantém-se na sociedade portuguesa ficando patente na família analisando-se os papéis conjugais (Almeida, 2009; Torres, 2004; Vicente, 2000; Wall, 2007). Isto apesar de o quadro legislativo na protecção dos direitos das mulheres em geral e em situações de violência conjugal em particular ter vindo a ser enriquecido, com especial ênfase a partir dos anos 1990. O Plano Nacional contra a Violência Doméstica, em vigor até 2010, define entre os seus objectivos a protecção das vítimas e a prevenção da revitimização, através de uma capacitação com promoção de competências sociais e pessoais das mulheres capazes de incrementar o seu empoderamento e a sua auto-determinação (objectivos 2 e 3 do III PNCVD, 2006). O modo como o Estado planeia implementar as acções de apoio às mulheres vítimas de violência conjugal separa a sua contribuição da contribuição das organizações da sociedade civil, deixando-lhes a prestação de serviços em meio comunitário, enquanto para si reserva o papel de gestor de uma rede pública de casas-abrigo, organizando a resposta de protecção que implica o acolhimento das mulheres e a sanção criminal dos agressores.

A atribuição à sociedade da responsabilidade na resolução do problema social (Kelly, 2003), a par com um reforço da actuação reguladora do Estado através da actuação técnica (de ‘especialistas da relação’, Leandro (2001:251) ou ‘peritos’, Giddens, 1997), define o mainstreaming na acção de combate à violência contra as mulheres.

O empoderamento das mulheres complementa-se com uma ideologia (liberal) de valorização da autonomização dos indivíduos, pressupondo a sua capacidade (racional) para procurarem ajuda. O recurso às forças policiais e os estudos de prevalência do fenómeno revelam, no entanto, que procurar ajuda não é a primeira acção das mulheres que reconhecem ser vítimas de violência conjugal. O discurso sobre a intervenção social parece dirigido a uma realidade distinta desta. Que desfasamentos existem na sociedade portuguesa entre as estratégias de intervenção discursivamente definidas e as práticas de intervenção na violência conjugal?

PARTE II