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VIOLÊNCIA CONJUGAL CONTRA AS MULHERES

1 Individualização e conjugalidade

3.3 Contributos da perspectiva individual

3.3.3 Paradigma Criminal

A intervenção pretende afectar ao mínimo a família, não contrariando a representação dominante sobre a sua autonomia (Kurz, 1989). Neste entendimento, resguarda-se a família através de uma sobreposição entre intimidade e privacidade (Kelly, 2008). O que acontece é que esta ideologia liberal (Johnson, 2005) justifica uma atitude de permissividade da mulher em relação à violência exercida pelo cônjuge sobre ela e justifica que se mantenham praticamente inalterados o estatuto e os papéis femininos tradicionais (Silva, 1989). Santos (2006) coloca o problema da intervenção sobre a violência conjugal nesta divisão entre o público e o privado, dizendo que na sociedade portuguesa ‘a recusa em passar as fronteiras da privacidade familiar tem sido o grande obstáculo à intervenção sobre o problema da violência doméstica’ (p.252).

Quando a interferência externa quando é acentuadamente reguladora dos comportamentos (como no caso do sistema de justiça criminal) é considerada uma intromissão na vida do casal (Kelly, 2003). O sistema de justiça criminal usa modelos genéricos de actuação, porém o crime de ‘violência doméstica’ (previsto no artigo 152º do Código Penal no ordenamento jurídico nacional) possui uma especificidade por ocorrer em contexto de relacionamento íntimo com crianças em comum, na maior parte das vezes.

Quando caracteriza o paradigma criminal, Cramer (2004) afirma que ‘o amor complica a eficiência do sistema de justiça criminal’ (p.175). Ao avaliar a interpretação dos agentes do sistema judicial sobre a violência conjugal, a autora verificou uma mudança no entendimento do comportamento (desidentificando-o como patológico e interpretando-o como um crime), porém, esta mudança ao nível dos significados não foi encontrada ao nível das práticas dos agentes. Do seu estudo concluiu que a avaliação da violência conjugal feita pelo sistema judicial é influenciada por mitos e estereótipos sobre a família, o matrimónio e os papéis de género, reflectindo-se depois nas práticas dos profissionais. O paradigma criminal assenta na protecção da vítima de violência conjugal, todavia acaba por ter ‘consequências indesejáveis’ decorrentes das práticas do sistema judicial.

Em linha com o que temos vindo a dizer em relação às perguntas que dominam esta linha de pesquisa (recordando, porque é que elas ficam na relação violenta e quando é que elas pedem ajuda), também a capacidade protectora do sistema judicial tende a ser discutida em relação ao uso do sistema pelas mulheres para a sua protecção. Aquilo que Cramer (2004) estabelece é que o próprio sistema criminal pode promover falta de protecção, decorrente do seu normal funcionamento.

A base deste paradigma é a protecção da vítima com punição do agressor responsabilizando-o, a ele, pelo seu comportamento. Porém, na prática de funcionamento do sistema de justiça criminal, pode ficar-se aquém do pretendido e até promover efeitos indesejados, tais como:

- A subutilização do sistema de justiça criminal por mulheres de minorias étnicas ou imigrantes e/ou cidadãs com comportamentos ilícitos (por exemplo o consumo de drogas).

- A discriminação dos agressores mais pobres e desempregados na aplicação de medidas (tendo maior probabilidade de ser enviados para programas para agressores).

- A falta de investimento na prevenção primária da violência conjugal pelo facto de o sistema de justiça criminal delinear principalmente medidas reparadoras, em que a intervenção é subsequente à ocorrência dos factos criminais.

- A revitimização (com desempoderamento da vítima) associada ao modo de actuação próprio do sistema de justiça criminal, havendo uma perda de autonomia por parte da vítima na condução do processo criminal ao ser representada pelo Estado no litígio com o agressor.

- A decepção da vítima com o resultado do processo em relação à sua expectativa de justiça. A decepção aumenta nos casos em que ‘elas vão a tribunal, testemunham sobre a agressão e eles recebem uma pena suspensa ou uma multa mínima’ (Cramer, 2004:172).

Na realidade, o sistema judicial cria um espaço de conhecimento técnico ‘hiper- especializado’ que deixa o cidadão vulgar ‘desarmado’ e quase sem recursos para fazer valer os seus direitos, tendo que recorrer a especialistas por desconhecer os direitos que possui e as formas de os fazer valer (Santos, 1989)14. Isto tanto pode constituir um obstáculo logo na fase da denúncia, inibindo-a, como pode fazer com que a vítima se sinta desempoderada por não ser capaz de lidar com o sistema de justiça. O consenso gerado em torno da necessidade de disciplinar o uso abusivo do poder nas relações conjugais contribuiu para a afirmação do paradigma criminal, mas a capacidade de intervenção do sistema de justiça parece ter parado respeitosamente às portas da privacidade das famílias (Pais, 2007).

Em termos conclusivos, enquadrando os paradigmas definidos por Cramer (2004) verifica-se que o poder é a variável comum. No paradigma biomédico, a violência conjugal é interpretada a partir do uso abusivo (considerado patológico) do poder masculino e a intervenção é questionada do ponto de vista do poder pericial dos profissionais para interferirem no comportamento de forma terapêutica, mantendo

14 Este é definido como o primeiro de quatro axiomas fundamentais da modernidade que estão na base

dos problemas contemporâneos da sociedade portuguesa. Tem origem na hegemonia de uma

praticamente inalterada a ideologia patriarcal e sujeitando a vítima a outra manifestação de poder. O paradigma feminista define a tese de que a auto-atribuição de poder masculino é reforçada pelas instâncias de controlo social (quer informal, com destaque para a família, quer formal, identificado com o Estado pelas feministas) devido à tolerância para com a hegemonia masculina na sociedade patriarcal. O paradigma criminal emergiu impulsionado pelas reivindicações do movimento feminista, exigindo maior protecção das mulheres e a sanção dos agressores numa actuação pública sobre um problema que é social (e não privado).

O poder do agressor é confrontado pelo sistema criminal enquanto representante do Estado, garante do bem-estar colectivo e agente legitimado para exercer poder – protector da vítima e repressor do comportamento do agressor. Interessante é verificar que, quando a partir da perspectiva individual se questiona porque é que elas ficam na relação conjugal violenta e quando é que elas pedem ajuda, o foco das questões é dirigido para o comportamento individual em reacção a uma situação que provoca dano (pessoal). No entanto, as respostas àquelas questões implicam factores de ordem estrutural, remetendo para a definição cultural de papéis de género e para a organização institucional das sociedades, como factores que estão na base do comportamento das mulheres.

4 A construção da violência conjugal num enquadramento de género: Perspectiva Cultural